A invenção da solidão

“ Meu pai trabalhou duro a vida inteira. Com nove anos teve seu primeiro emprego. Com dezoito possuía uma oficina de consertos de aparelhos de rádio em sociedade com um dos irmãos.[…]

Trabalho era o nome do país onde vivia e ele era um dos maiores patriotas. Isso não significa, porém, que para ele trabalho fosse prazer. Trabalhava duro porque queria ganhar o máximo de dinheiro possível. Trabalho era um meio para alcançar um fim – um meio para o dinheiro. Mas o fim não era algo que lhe pudesse também proporcionar prazer. Como escreveu o jovem MARX: ‘Se o dinheiro é o elo que me liga à vida humana, ligando a sociedade a mim, ligando a mim a natureza e o homem, não será o dinheiro o elo de todos os elos? Não pode ele desfazer e atar todos os laços? Não é ele, portanto, o agente da separação universal?

Meu pai sonhou a vida toda se tornar milionário, ser o homem mais rico do mundo. Não era tanto o dinheiro em si que ele queria, mas aquilo que o dinheiro representava: não só sucesso aos olhos do mundo, mas um modo de se tornar intocável. Ter dinheiro significa mais do que ser capaz de comprar coisas: significa que as privações do mundo jamais nos atingirão. Dinheiro no sentido de proteção, portanto, não de prazer. Por ter vivido sem dinheiro quando menino, e portanto vulnerável aos caprichos do mundo, a ideia da riqueza tornou-se para ele sinônimo da ideia de fuga: fuga da injustiça, do sofrimento, de ser uma vítima. Não estava tentando comprar a felicidade, mas simplesmente a ausência de infelicidade. Dinheiro era a panaceia, a objetivação de seus desejos mais profundos e mais inexprimíveis como ser humano. Ele não queria gastá-lo, queria possuí – lo, saber que estava ali. […]

Em um nível mais geral, isso se traduzia em um estado de permanente privação sensorial: ao fechar os olhos para tantas coisas ele negava a si mesmo contato estrito com as formas, texturas do mundo, suprimia de si mesmo a possibilidade de experimentar prazer estético. O mundo para o qual olhava era um lugar prático. Cada coisa tinha um valor e um preço, e a ideia era conseguir as coisas de que precisava por um preço mais próximo possível do valor. […] De certo modo, imagino que isso tenha feito o mundo parecer um lugar enfadonho para ele. Uniforme, sem cor, sem profundidade. Se vemos o mundo só em termos de dinheiro, não estamos sequer vendo o mundo. (p.63-64) Paul Auster – A INVENÇÃO DA SOLIDÃO – Editora Companhia das Letras – 1982

até um dia, até quem sabe

Leituras quietas, empurradas. O corpo ‘reclamão’ e a memória impertinente, poeira por todos os lados. Crítica, azeda, e aquele olhar pelas frestas a espiar. Intransigente vontade. Preguiça e deslocamento: trabalho malfeito, mal-executado, sem continuidade… Persistência. Ah! E as cartas, as mensagens, as visitas, o colorido daqueles bilhetes? Sei lá. Vez que outra uma amiga, uma ideia generosidade conversa. O cheiro do bolo, o excesso. Ufa! Entusiasmo, depois, depois, um cansaço inexplicável… Mudar, sair para outro lugar, aquela ideia constante: Porto Alegre, Alegre Porto, rodovia, via, rua, cinema, idas e não vindas, aeroportos, cafés de calçada, amigos achados, novos encontros. Perco as coisas, as chaves, o rumo. E o pior, o sono, a vontade. Bife com fritas, padaria, confeitaria, esquina. Vitaminas. Frutas maduras: laranja, bergamota, limão, maças, italiano, francês, alemão. Ficar. Pois é – frio. Vontade de ficar / voltar Rio ao Janeiro, não, São Paulo, Montevidéu, Buenos Aires… Também Torres / também Porto Alegre. Voltar para mim (uma música / uma letra de canção, a nossa melodia) e o piano, o violão, o canto: ‘até um dia, até talvez, até quem sabe [] sem mais saudade’. Encontrei a solução, vou escutar música e rejuvenescer, sem vender a alma ao diabo. Elizabeth M. B. Mattos – junho de 2023 – Torres

Até um dia
Até talvez
Até quem sabe
Até você sem fantasia
Sem mais saudade

Agora a gente tão de repente
Nem mais se entende
Nem mais pretende
Seguir fingindo
Seguir seguindo

Agora vou
Pra onde for
Sem mais você
Sem me querer
Sem mesmo ser
Sem me entender
Vou me beber
Vou me perder pela cidade
Até um dia
Até talvez
Até quem sabe

Até um dia
Até talvez
Até quem sabe

Fonte: LyricFind

Compositores: João Donato De Oliveira Neto / João Neto

vaidade vai ou fica

Vaidade desorganizada a minha. Tão acentuada! Resultou num certo desleixo, descuido, ‘vamos ver como fica’ – assunto interessante: a vaidade… Como ela se aloja, quando beira ao ridículo, quando estimula, quando pode ser decadência de quem se esqueceu dela… E como funciona positiva ou negativa. O passado é uma vaidade. Funciona. Uma foto, uma omissão, uma anedota (historinha), ou as raízes, o outro (marido, pai, filho, neto, namorados), pois é, tantos potes de vaidade, crescem como massa de bolo, ou… Quando a vaidade sobe e desarruma um bom escritor, um bom cineastra, um bom pintor. Um ator…, tô aqui a pensar, quando a vaidade azeda?! E como a pessoa sem vaidade nenhuma, acertiva, mas sem cuidado. Aonde está o bom limite. Um pouquinho de maldade, um pouco de covardia, um pouco de vilania, de descaso, falta de escrúpulo não, roubo também não, assassinatos não, violência não. Vaidade, um pouquinho, por que seria não. Excesso de bondade, de sorrisos, de verdades, gentilezas também não. O bom meio termo. Sinceridade sim, nem sempre possível… Estas virtudes enfileiradas…Difícel pensar. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2023 – Torres

Uma vez você disse que qualquer pessoa é capaz de qualquer fraqueza nas circunstâncias certas!” (p.319) Robert Musil O HOMEM SEM QUALIDADES

tempestades espirituais

“[…] tempestades espirituais, horas ainda mais loucas que transtornam um homem e uma mulher antes da tempestade, e horas de esgotamento, que gastaram toda a paixão e jazem como prados depois da chuva, no puro ar da amizade.

[…] Clarisse não conseguia mais distinguir direito aquele anos e meses há tanto passados, mas afinal era indiferente em que época acontecera uma coisa ou outra; depois da hesitante aproximação com Walter, viera um tempo romântico, com passeios, confissões e posse espiritual, ao mesmo tempo repleto daqueles incontáveis, pequenos, infinitamente torturantes excessos que arrebatam dois apaixonados, aos quais falta a coragem para se decidirem, mas já se afastaram da castidade. Era como se Meingast tivesse deixado para eles seus pecados, para os experimentarem novamente num sentido mais sublime, e levá-los ao ápice do esgotamento; assim pensavam” (p.315) Robert Musil O HOMEM SEM QUALIDADES – tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth – Nova Fronteira – 1989

todas as horas são inglesas, francesas e mexicanas – e, estamos a catar experimentar e acertar, chatice mesmo, envelhecer em qualquer hora, mas, sigo as migalhas do amor, que se esparrama na mesa do chá com bolo, sugestão da amiga, sem culpa. Elizabeth M. B. Mattos – junho de 2023 – Torres querendo ver o ciclone passar…dentro do livro, ah! leitura de 864 páginas que leio sem terminar, pois é.

isso

Não penso nisso nunca mais, posso dizer que isso me “saiu da cabeça” da cabeça completamente. E um dia, eis que me ocorre de novo… Quase inacreditável… Como é possível que eu tenha passado por isso há tão pouco tempo, mal faz um ano que elas chegavam, introduziam-se em mim, ocupavam-me inteiramente… “minhas idéias”, que eu era a única a ter, que viravam tudo de cabeça para baixo, eu me sentia, (p.109) Nathalie Sarraute INFÂNCIA / Tradução de Luiz Carlos de Brito Rezende / Editora Nova Fronteira / 1985

abraço de palavras

Palavras se soltam deslocadas, achadas, banais… Algumas dizem, outras fazem, outras sentem. Ou nem fazem, nem dizem, escrevem. O tempo não escorrega, abraça. Num recorte a imagem: ordenada beleza. Gosto das tuas palavras. E da imagem. E deste abraço em /de palavras. Elizabeth M. B. Mattos – junho de 2023 – Torres

descola desgruda desarruma, com certeza

Estranhezas do tempo descascam, desenrolam, desempacotam lembranças; reviram alicerces. A vulnerabilidade surge com raízes robustas e floresce… Enfileiradas lembranças, ramagens coloridas: conversas interiores, anteriores. Assombram e aquecem este gelado dia de junho, os pares se apertam, mas, assim mesmo, gelado…

Este danado envelhecer que se quer justo, alegre, ou guloso, mas se avizinha suspirando, gemendo. É o frio poderoso escondido no sol! Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2023 – Torres

desordem

…vou limpar e organizar: começo a empilhar o passado nos armários da garagem. Ufa! parece que está tudo no lugar agora, desapeguei / organizei, maravilha! aspirador, pano, escovas, louça brilhando. Fiz.

quando estes eventos? esperando o André? fantástico dia de limpar?

hoje resolvi verificar o passado nos armários dos guardados: acertei o tempo: uma ‘montanha’ de papel, de caixas e caixinhas e surpresas e vontade nova. revirei a lembrança e acertei a memória…

Ah! este calor adocicado da chuva e o do frio.

Carpinejar na Zero Hora deste domingo: ‘as minhas raízes são as minhas asas’. com certeza certíssimo O sotoque do coração: o coração tem sotaque, e a vida se remexe. Ontem em pilhas, hoje pela sala, esparramo este eu aprisionado no armário da garagem. Elizabeth M. B. Mattos – junho de 2023 – Torres