Senhor, tende piedade, piedade dos loucos e das loucas! Charles Baudelaire

Em Mauriac, o homem vive, respira, choca – se com outros homens, vai para casa com o peso das misérias acumuladas do dia, dorme, acorda angustiado e retoma os miúdos deveres quotidianos. É vulgar, não aspira ao heroísmo, resvala mais facilmente para a decadência. Mas pode -se sentir nele o silencioso nascer da barba, o cheiro íntimo, individual, do seu corpo, o cheiro que cada corpo carrega sobre a terra (faro de cão e de romancista). E isso é mais sugerido do que contado.” Carlos Drummond de Andrade no Prefácio de Thérèse Desqueyroux – Cosac Naify – François Mauriac

Sim, eu sempre retomo, transcrevo porque “vai para casa com o peso das misérias acumuladas do dia, dorme, acorda angustiado e retoma os miúdos deveres quotidianos” não acrescenta, nem retira nada do que faço brincando de ser feliz. Somos estes seres tão minuciosamente descritos, vivos que Mauriac descreve. Estamos atolados em todas as frases, em toda insanidade, em todo desespero. É assim mesmo que amamos e odiamos. Por que não posso sublinhar? Ao retomar o livro para reler sinto o prazer…, e prazer importa sempre. O perfeito existe. Quando penso um pouco na minha vida acalmo o coração: tu existes. Mas, volto ao Mauriac. “É a galope que ele nos conta a história de Thérèse Desqueyroux, com resíduos de monólogo interior, fazendo luz sobre os objetos e os fatos, mas a lembrança deles. Dir-se-ia que a história se desenvolve no escuro, apenas, de quando em quando, uma lanterna passeia nas trevas, e a essa claridade sem aviso as coisas se apresentam na sua humanidade e ignóbil realidade.”

Detesto indicar leituras, não leias se não te fisgou: todos os livros são, por princípio, horríveis / desagradáveis / inúteis horríveis, apenas serão mágicos e perfeitos quando chegou a tua hora de ler / o teu encontro. Como fazer sexo com paixão. E a intimidade de vocês será diferente. Eu amo de um jeito. Eu me atiro, eu enlouqueço, e, outras vezes, eu me contenho, não consigo beijar, nem sentir, dor, nem cheiro. O amor ao amado é sempre novo. Mas posso mencionar os olhos castanhos, a estatura média, o sorriso a seduzir, o beijo apressado, e a palavra… Os braços certos para me apertarem no abraço certo. Então, relerei Mauriac pela quarta vez…Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2021 -Torres –

dia com jeito de verão, alegria de grande alegria, presença de amar muito, e certezas, todas as certezas

estranheza

Esquisitice! O dia entrou cansado pela janela! Perfeito fazer, perfeito acordar. Mas não escapei do cansaço! Ele se instalou ao meu lado, espiou o jornal, atravessou a sala, recolheu as almofadas espalhadas… E já com sono, fechou, devagar, os olhos. Estranheza logo no amanhecer! Vou voltar para cama. Estou cansada, como o dia cansado! Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2021 – Torres

pessoal

Ir às comprar, florir a casa, pendurar roupas no varal. Arrumar/limpar, filosoficamente, a geladeira. Dezembro espiando. E sempre, sempre, te amar um pouco mais. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2021 – Torres

O que era mesmo que eles queriam mandar ao diabo? A experiência. Aquela experiência pessoal, por cujo calor de terra, por cujo realismo, o Impressionismo se apaixonara há quine anos, como se fosse uma planta miraculosa. Agora, diziam que o Impressionismo era lânguido e confuso. Pediam controle da sensualidade, a síntese intelectual! Síntese para eles seria o contrário de ceticismo, psicologia, análise e dissecação, em suma, das tendências literárias dos seus pais. Até onde se podia entender, não falavam num sentido muito filosófico: o que compreendiam por ‘síntese’ era antes o anseio de seus jovens ossos e músculos desejosos de movimento livre, saltar e dançar, recusando qualquer estorvo da crítica. Quando lhes servia não hesitavam em também mandar a síntese ao diabo, junto com a análise e toda a reflexão. Então afirmavam que o espírito tinha de ser estimulado pela seiva da vida. […] Que palavras fantásticas usavam! Exigiam o temperamento intelectual intelectual. O estilo de pensamento rápido, que salta ao peito da vida. O cérebro afilado do homem cósmico. […] A reformulação do homem dentro do plano de trabalho mundial americano, através da força mecanizada. O lirismo aliado à mais imensa dramaticidade da vida. O tecnicismo, espírito da era da máquina.”[…] p.(p.287) Robert Musil O Homem sem Qualidades

Neusa Demartini

“As recordações são maldosas, pois vêm quando não as queremos e deixam de vir quando mais as necessitamos. Stacha, querida avozinha, tu mesma evocaste tuas memórias quando quiseste recordar, ou elas vieram, traindo-te, quando tu as querias esquecer. Pensaste friamente em proteger-te contra tuas lembranças, e esqueceste-as, deliberadamente, para não sofrer?”(p.104) Neusa Demartini – Vozes da Ancestralidade

A leitura atravessa. Estremeço. Não adianta ponderar / o texto se explica. Eu sinto.

azul

Madrugada azul e pensamento azul e vontade de estar contigo, e afinal, estar… Escuto o piano. Escuto tua madrugada, e me aconchego. Sinto o teu cheiro. Que o sono /volte/chegue! Sem dor, e voltamos a adormecer nos sonhos. Elizabeth M.B. Mattos / Torres acordando o verão

reflexo

Em ti existe / permanece / acontece tanta luz! Reflexo / ou pó de ouro em teus cabelos! Aperto os olhos para poder te ver/enxergar/ olhar, quase me cegas! Abraço o teu brilho. No olhar, tua força. Ah! não imaginas a falta que me fazes! Teu beijo. Esta dor modula o dia na despedida. Eu ainda tenho tuas lágrimas… ElizaBeth M.B. Mattos – novembro de 2021

fisionomia

Sa physionomie annonçait son âme. Il avait le jugement assez droit, avec l ‘esprit le plus simples; c’ est, je crois, pour cette raison qu’on le nommait Candide!” (p.137) Voltaire Candide, ou L’ Optimisme / Romans et Contes

Voltaire, pseudônimo literário de François Marie Arouet, nasceu em Paris, França, no dia 21 de novembro de 1694. Descendente de família burguesa, entre 1704 e 1711, foi aluno do Collège Louis-le Grand, em Paris, uma das mais importantes instituições de ensino da França. Iniciou o curso de direito, porém não terminou. (Google)

trama da vida

Amigo querido! Quase perco tua carta e-mail entre as cartas eletrônicas, e, tanta agitação! A vida não veio para nos cobrir de fofuras (mimos), mas nos endurecer. O que escreves da mãe e do teu pai, enriquece tua história pessoal. Eles são assim mesmo, os pais, guardiões, e escrevem/ definem nossa história/vida do nascimento ao destino: parece um detalhe, foi definitivo interferir, e terminaste americano / terminaste francês / terminaste cidadão do mundo. O sonho, excesso de amor. Por excesso interferiu no serviço militar: excessivo. Vida excessiva no maltratar, raiva e covardia. Enfim! Acabaste americano maior: cheio de sonhos e projetos como os dela, cheio de doçura como teu pai. Longe de dos Pampas. Astros alinhados quando nós nos encontramos, mas teu destino já era o outro mundo / outro planeta. América. Detalhados sonhos sonhados ao longo de anos, mas sempre medrosos, paradoxal sentimento. Eu ‘quase’ fui te visitar, ‘quase’ fui ao Canadá…, cheguei a França altiva, mas, no final, pouco aventureira, presa pelos pés no certo incerto de viver em casa, perto da janela que se abre ao mar. Aqui. Escrever foi sempre um vício: a cada carta, um envole azul bordava nossa amizade: os detalhes.

Ah! Quero te escrever muito e mais. A vida na beira da Lagoa do Violão é boa, tranquila, quase perfeita. Os filhos entre Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Eu viajo. Eu me agito entre estados. A carta se interrompe com chamadas telefônicas, mas, volto a te escrever ainda hoje. Beijo. E te cuida. Muito carinho. Nunca te desculpes pelo teu português, eu deveria me desculpar por não falar nem ler espanhol. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2021 – Torres

doar um pedaço/colorir

A vontade sufoca/engasga quando eu não te alcanço. Dia com sol / dia com vento / dia com música e flores / tantas flores! Dia de palavras, tantas muitas! Todas a se acotovelarem para chegarem mais depressa aos teus ouvidos. Vontade de tirar os livros todos da estante e fazer torre, castelo. E das janelas e portas deste castelo derramo estórias que descem como água, sobem como nuvens! Quero te ensinar tudo e te animar/amar com alegria. O tudo não é pretensão minha, sou professora, viciada em ensinar, cavar, e plantar e…, ensinar com palavras, com tintas, com lápis ou com a voz… Eu cantaria / eu dançaria / eu te abraçaria mais vezes para te ver sorrir! Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2021 – Torres

vou inventar

Mamão, laranja (apenas uma), bananas, morangos. Um livro, duas revistas. Sol, sol inteiro e quente. Avanço até a segunda metade, a estrutura e a narrativa bordam a ancestralidade, o tempo. Estabeleço paralelos: não conseguirei fechar um texto e assinar, assim vou afundando nas novas leituras. O corpo cansado, pensei / senti / comi demais. Carrego / levo o silêncio pesado; estou exausta. E todas as lágrimas me afogam… Não posso atravessar a invenção do amor, nem acreditar no possível. Apenas imaginação. Não posso emagrecer. Não posso mudar, não estou preparada para ser outra. Hoje inventei na cozinha, igual senti fome. Não. Vou arrastar a vontade de falar, vou perder o gosto, vou inventar outra história… Vou doer contigo. Vou sentir tua falta. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2021 – Torres