O que é o amor?

‘O que é o amor?’

‘Não sei.’

‘O amor é o nome que se dá ao laço que une Kemal a Füsun sempre que eles se deslocam pelas ruas ou calçadas; entram em casas. jardins ou salas; ou sempre que ele olha para ela sentada no pátio de uma casa de chá ou num restaurante, ou sentada à mesa de jantar.’

‘Hummm …Gostei da resposta.’, dizia Füsun. ‘ Mas amor não é o que você sente quando não me vê?’

Nesse caso o amor se transforma numa obsessão terrível, uma doença.’ (p.458)

[…] Por um breve instante de acanhamento, eu vi o corpo de minha amada, e então ela se afastou a nado, tão depressa que dava a impressão de fugir de mim. As bolhas e a água agitada no rastro de seu mergulho, a luz maravilhosa, o azul muito escuro do Bósforo, seu biquíni preto – tudo isso se combinou em minha mente para formar uma imagem indelével, uma sensação à parte.” (p.462) Orhan Pamuk – O museu da inocência – 

Eu tive um biquíni preto. E um dia perdi a parte de cima  numa onda do mar. Foi um susto, mas ninguém viu. Beth Mattos – julho de 2018

ninho

No que ficou da poda. Nas ramas do jasmim, dois zelosos  passarinhos, rolas eu acho, preparam o ninho. Ora um, ora outro. Chegam com a rama no bico. Sentada na minha cadeira de leitura, desconcentro porque nada melhor do que este fazer cuidadoso e simbólico: o ninho. E o domingo fica perfeito. Elizabeth M.B. Mattos – julho de 2018 -Torres

grande fogueira

Domingo. Outono. Arrumações na preguiça, curiosidade. Vontade de escrever. Minha amiga querida, comecei a carta, e logo bateram, tocaram.  Ontem, antes de ontem, mandei do jeito que estava. Vou assim passando de um lugar para outro, sem foco. Lavo louça aspiro tiro o pó. Arrumo a cama, leio dois parágrafos, escrevo outros dois. Olho pela janela. Tomo um banho. Volto. Caminho com a Ônix, volto. E o dia terminou. Esquisito. E…, estou atrasada nas notícias, nos afetos, nas minhas intenções. Esta ansiedade me surpreende: tudo misturado, remexido, não apenas gaveta, e armário. Livros. Revistas. Louças. Fotografias. Queria ordenar a casa, deixar tudo catalogado. Jogar fora o que não serve. Como que preparar esta papelada pro amanhã. Se eu morrer ninguém vai conseguir achar nada. Fogo. Uma grande fogueira. Esquisito. Na verdade nos preocupamos com o depois. A vida se tornou apertada como um novelo de lã descuidado … Haja paciência e calma! Nada de tesouras, ou puxões. Há que se conseguir devagar. O quanto devagar?   Por que não se posso ser livre, solta e produtiva! Não. Vou arrastando o me fazer, o tempo. A casa de vidro? Não, como se pinicasse, espetasse. Sei lá. Entrar de costas. Bicho esquisito o ser humano! Esquisita compulsão.  Viajar sair ir e voltar é para recuperar o tempo perdido. Perdido em quê?  Suponho tantas coisas! Deveria me preocupar com o meu nada, meu vazio, meu difícil, minha língua ferina, minhas mágoas, esquisitices. Este marasmo difícil! A.C. não consigo acomodar as coisas, nem o pensamento. Os móveis, as caixas da L. seguem empilhadas, o apartamento se aperta nesta confusão! Assim mesmo ajusto aqui, ali, troco as tomadas, a porta do box, compro panelas. Leio. Espero. Caminho. Gavetas prateleiras, eu mesma, a se reordenar Que desordem! O J. é o meu ponto… As seis horas da manhã fazemos uma caminhada curta enquanto o ônibus não chega, no fim da tarde, ele vem me ver. Chega às 18 horas. Adorando a escola. […] Gosto do sossego, do meu tempo. Estou a recuperar espaço. […] O telefone toca. Vou terminar logo.  Um beijo. Desleixada, eu me sinto. E as questões políticas, inflação, desgoverno me assusta.  Feridas remexidas! Saudade amiga. Elizabeth M.B.Mattos 22/03/2015 14:04:28 -resgate Torres

Beth, fico pensando o lugar que o J. ocupa na tua vida… isso que disseste da vida suspensa entre os dois pontos em que encontras com ele… pensa mais sobre isso.  […]. E aí volta a questão da mudança para Porto Alegre. Como se nada pudesse ser resolvido por causa do jeito que os fios se entrelaçaram: um puxão e tudo vem ao chão. A vida, assim, aprisiona. Que prisão é essa em que nos metemos de livre e espontânea vontade? A perfeição é uma delas: a casa perfeita, o momento perfeito, o corpo, a beleza, etc, etc, ad infinitum …

“A forma como me libertei da voz foi incrivelmente simples. Coincidiu com a época em que me libertei de umas dores musculares que sentia na nuca. Por minha decisão, deixei de ouvir a voz. Decidi subtraí-la. Não parei de avaliar a pertinência do que dizia, não comecei a contrariá-la em tudo, porque a voz deixou de existir. Criei um lugar de vácuo e atirei-a para lá. Esse lugar está selado por camadas e camadas de Zé Luís. Não sei com exatidão qual a matéria que impede a voz de chegar aos meus ouvidos interiores; sei, no entanto, que essa matéria é constituída por algo que encontrei em mim, uma espécie de minério, um filão desse minério. Alerta: metáfora de gosto duvidoso. A voz continua a existir, mas não voltou a assombrar-me. Hoje, sou eu que me rio dela, do seu snobismo, da sua mesquinhez. Mas o futuro vai chegar a qualquer momento. Por isso, este texto fica aqui, como uma espécie de mapa. Se a voz voltar algum dia, irei relê-lo para que nunca me esqueça de mandá-la embora imediatamente. E viver.” (Lá estás tu, p.487, Abraço, José Luís Peixoto).

Amiga, leio e releio este texto. Como tu, também preciso expulsar essa voz que exerce uma crítica feroz e cortante. Talvez, a confusão externa melhore.

Acordei no dia do meu aniversário dentro de um avião […]  Viver. Parece simples, mas como é difícil!!!Vive, amiga, vive a vida possível e não a vida que querias que fosse. Aceita a beleza que existe e não a que gostarias de ter (e a mesma fórmula serve para a escrita, a casa, o talento,…). A minha vida ficou melhor com a tua presença. Por que a tua vida não pode ser boa? Queria que morasses mais perto… Beijos!!!!!!!!

 

desesperar do sonho

É preciso descobrir o erro, e não a verdade. Carlo Suares

Para poder ter esperança no que não engana, é preciso primeiro desesperar do que engana. Georges Bernanos

O inimigo que se combate com mais tenacidade é um morto. Émile Faguet

Estou em estado de amor / apaixonada por uma sombra que se fez sombra sendo pessoa, e sei, não passa de um sonho.  Acho/penso/ imagino que vivi por muito/tanto tempo com os olhos embaçados. Eu não vi/olhei/enxerguei o caminho. Caminhei  mecanicamente empurrada pela necessidade, absorta, distraída, mergulhada num Eu que se dissolve inseguro medroso, bobamente, alegre e distraído. O que estou sentindo/pensando? Imagino ser do vazio do nada a desesperança… Até hoje não compreendo o mundo nem as pessoas, nem o olhar. Eu que busco um abraço no pote de ouro do arco-iris. Que infantil e boba criança sou neste envelhecer lento, arrastado de um inverno forte e decidido de 2018.  Elizabeth / Liza ou Beth Mattos

Como diz Morin, “Cada um de nós, quando ama outro ser, ama – o realmente / miticamente; cada amor é entretecido de carne e de sonho … Assim, o problema não é viver num real puro, livre de mitos, pois, deste modo, este real desmoronaria. O problema é reconhecer e elucidar a realidade do imaginário e do mito, é viver uma nova geração de mitos, os mitos reconhecidos como mitos, é manter uma nova relação não mais doente, não mais sangrenta, com os nossos mitos; é possuí – los tanto quanto eles nos possuem.”(p.81)

Citações (p.195)  Edgar Morin – Para sair do século XX

Beth guriazinha

“Estamos passando por um desencanto necessário. Temos que viver num mundo desiludido. Mas o mundo desiludido não é o mundo chão e prosaico dos interesses egoístas: é o mundo que se livrou da estupidez das soluções definitivas, do futuro radioso, do progresso indefinido e infinito: é o mundo estranho, terrível, patético, alucinante em que estamos, em que podemos e devemos arriscar nossas forças de amor, mas não nos falsos messias.”(p.80)

enlaçada laço apertado

Quando a vontade desaparece no desencontro e na incerteza há que apertar o laço e reconhecer as outras tantas vidas que acontecerão nas tantas e diferentes formas. Elas nos abençoarão com possibilidades novas, diferentes, sendo assim mesmo as mesmas. De qualquer forma, as escolhas devem ser rápidas e decididas ousadas porque o tempo segue jorrando tempo. E as águas do mar são infinitas. Oportunidade, encantamento, facilidade de olhar o olho, entrar no sangue do outro, e sentir o gosto.  Estas certezas me invadem, e se agitam inquietas. Estou fragilizada, vulnerável e triste, não domino. O susto não impede que eu escreva. Escrever pode ser o jeito de acertar.  Desejo de aconchego povoado no que se diz começo e vida = alegria. Elizabeth M.B. Mattos – julho de 2018 Torres

11208641_986234538078120_306245406231381812_n

nostalgia aos pedaços

Falar ‘tirar um pedaço’ de alguém traz implícito, é claro, que aquele pedaço faz parte do corpo da pessoa adorada. Mas dali a três anos,  cada objeto e cada pessoa daquela casa de Çukurcuma – a mãe, o pai, a mesa de jantar, a fornalha, a cesta de carvão, os cachorros de louça sobre a televisão, os frascos de água de colônia, os cigarros, os copos de raki, os potes de balas – tinha se misturado com a imagem mental que eu tinha de Füsun.”(p.397) Orhan Pamuk – O museu da Inocência

Todo gesto, palavra que não consigo dizer no momento de consciência pesa. O não dito, o que poderia ser, e não foi, se perde, se esconde na caixa que cuida do que poderia se, e talvez …, volte. Ganha dimensão desproporcional na memória. Fico a pensar o porquê de  tanta ausência-presente a povoar minha vida como se cada fragmento de memória não tivesse já o gosto do fracasso, sabor definitivo. O pequeno insignificante e apertado mundo que escolhi para viver me faz reconhecer o medíocre estado de alma, a essência fluída de cada momento no esvaziamento amontoado. A caixa transborda. A negativa. O lugar de morrer. O poder de alterar, mudar, gerenciar meia dúzia de certezas de encantamentos de risadas possíveis desaparece. Neste momento não seguras a minha mão. Tanto o desejo!  Onde coloquei aquele alegria natural, aquela vontade de recomeçar, e acertar… Por que me aperto dentro deste casaco? Sinto as pernas pesadas, os braços sem comando. Vou me despedaçando devagar. Tanto desejo! E tu não estás lá!  Livros espalhados  folhas pelo chão. A pequena mesa se submete a mesa maior…, finalmente, consigo que o espaço se alargue nesta sobreposição. Embora me sinta povoada há solidão. Escapa a preenche o quarto a tristeza. Talvez eu deva correr para dentro de mim e dormir, e dormir. Elizabeth M.B.Mattos – julho de 2018, quase aniversário do Pedro, – o tempo daquele jeito sorrateiro e lento que se esvai entre uma refeição e outra, sorri matreiro. Todos os abraços serão necessários. Todas as energias.Pedro e eu desenho em São Paulo adoro

vou

Vou até Porto Alegre,

Outra vez na corrida.

E já me agito inquieta. Onde estão os óculos?

Se tu estivesses a me esperar! Já faz um ano.

Se existir outro mundo,

Quem sabe volto a te encontrar! E.M.B. Mattos – fevereiro 2018

 

conversa

Domingo. Outono. Arrumações que se transformam em preguiça, curiosidade. Vontade de escrever, conversar. Estou de um lugar para outro, sem foco. Lavo a louça aspiro tiro o pó. Arrumo a cama leio dois parágrafos escrevo outros dois. Olho pela janela. Tomo um banho. Volto. Caminho com a Ônix, volto. E o dia terminou. Esquisito. Estou atrasada nas notícias nos afetos, nas minhas intenções. Esta ansiedade me surpreende. Tudo misturado. Tudo remexido, não apenas gaveta, armários livros. Revistas. Louças. Fotografias. Queria ordenar / arrumar a casa, deixar catalogado este amontoado de papel. Jogar fora o que não serve. Como que preparar o amanhã. Se eu morrer ninguém vai entender/ achar nada. Fogo. Uma grande fogueira. Esquisito. Na verdade nos preocupamos com o depois. Mas o depois, no depois, nada deste hoje/agora importa. Seremos outros, noutro mundo. Se retornar não saberei o que fui, ou como foi. A vida se apertada como um novelo de lã dificulta tudo. Haja paciência e calma! Nada de tesouras, ou puxões. Há que se conseguir devagar puxar a lã pra tricotar. O quanto devagar é a questão.

Quis te contar que os episódios de dezembro, simultaneamente, seguem vivos, presentes, e me aborrecem, incomodam. Por que não posso ser livre, solta e produtiva! Não. Vou arrastando o  tempo. Bicho esquisito o ser humano! Esquisita compulsão. A pressa tem o sentido do mais em menor tempo. Recuperar o tempo perdido, suponho. Suponho. Perdido em quê?  Suponho tantas coisas! Deveria me preocupar com o meu nada, meu vazio, meu difícil, minha língua ferina, minhas mágoas, esquisitices. Este marasmo difícil!  Não consigo acomodar as coisas, nem o pensamento. Móveis caixas seguem empilhados. O apartamento se aperta nesta confusão! Assim mesmo ajusto aqui ali troco as tomadas. Compro panelas. Leio. Espero. Escrevo. Caminho. Gavetas  prateleiras, eu mesma. Que desordem! Paradoxalmente  gosto deste sossego vazio. Questões políticas me inquietam. Eu volto. Elizabeth M.B. Mattos – Torres –  março 2015

vou caminhar

Escrever é estar junto. Tenho que reler, ler com atenção tua carta.  Voltar a terapia, ao  José Luís Peixoto, aproveitar tudo, devagar.
Hoje pensei na prisão: deixa de ser quando nos damos conta de que é mesmo prisão? Acho que sim. Aprisionamos limitações. Carências da solidão. Aprisionada ao medo. Ansiedade e pecado. Pequenas fugas escondem o limite de poder fazer ou não fazer. Sigo ordenando (palavra repetida, o mesmo ranço)  livros, e não encontro o livro citado… Não há tempo para esta desordem que faço, inclusive, com a leitura. Estou a te escrever inquieta neste cinzento da manhã. E tanta chuva!
Do teu aniversário. Gostei. Gostei da ideia de ires ao encontro do amado. Do deslocamento. Bom que já estás bem. Adoecer é como voltar ao perigo. Coisa boa ter este desdobramento de saber do trabalho, mesmo deslocada. O lugar passa a ser apenas  passagem. Sinto uma doce inveja do teu foco. Preciso viver. Intensificar.  Vou caminhar. Elizabeth M.B.Mattos – janeiro de 2017 – Torres

desilusão

Somos vítimas da ideologia quando ignoramos que vemos o mundo por intermédio de nossas ideias. Em consequência, acreditamos que nossas ideias são o real, o que nos torna desconfiados em relação a todo dado ou experiência que contradiga nossas ideias: é o real que está errado quando contradiz a ideia.” (p.70)

” A desilusão necessária traz sempre o desânimo, que provoca o fechamento cínico sobre si mesmo ou traz de novo, à baila ou ao trono, os antigos mitos abandonados: a decepção pode até não passar de uma pausa antes de nova ilusão. Quanto a mim, já conheci uma época de grande decepção e de uma dúvida radical, os anos 1956-1958, marcados pelo relatório K., a ‘Revolução húngara’, o ‘Outubro polonês’, a derrocada da IV República francesa ante a revolução argeliana” (p.80)   Edgar Morin – Para sair do século XX

Ideias retiradas do cotexto, ao fazer isso nem sempre explico o que o autor quer dizer. Peço desculpas, aviso. Vale uma leitura completa.