Aquarela de Carmélio Cruz – 1964 – Porto Alegre
Porto Alegre, 23 – 8 – 82
Elizabeth, encontraste felicidade nas coisas simples: marido, casa, arvoredo, gado, e para alimentar a tua fantasia, as nuvens que, nos dias ensolarados, povoam o campo com um rebanho de sombras. Reencontraste o sabor do pão feito em casa, tu que por tanto tempo, te nutriste com o pó do asfalto da grande cidade. Eu te compreendo, mas não deixo de pensar na tua formação esmerada, nos teus companheiros, clássicos e modernos, da língua francesa. Tu os abandonaste?Também gosto da vida da campanha – bem a conheço -, vida arrastada, modorrenta, feita de dias longos, demorados. Em Porto Alegre também há muito remanso, muito sossego. Mas eu não me deixo adormecer na madorra. É preciso, Beth, estar atilado, ouvindo atento como cão. Se não, Beth, a gente vira coisa, morre por dentro. Sim, amiga, no verão aceitarei teu oferecimento, iremos para o campo. Tenho saudade das rosetas, dos mata-cavalos, das marias-moles, das guanxumas e dos carrapichos que jogava, por judiação na corujinha da minha irmã preta. Hoje tudo isso é lembrança. Lamento os teus desacertos com os Moog, e as atribulações de teu marido. Espero que tudo termine bem. Eu também sinto falta dos amigos do Rio, não da cidade. Tenho trabalhado muito, de sol a sol. Envio-te um catálogo da minha exposição, realizada este mês. Escreve sempre que puderes. Maria te manda um abraço. Abraço também para teu marido. Conta sempre comigo. O Iberê
Porto Alegre, 7 – 6 – 84.
Cara Beth. Era uma noite muito escuro. Ao longe avistei um luzeiro: Santa Cruz. Pensei comigo: Beth mora numa estrela. Então passei silencioso, abafando os passos, para não acordar a princesa. A estrada, um lamaçal escorregadiço como sabão.À beira, no café, um magote de alemães beberrões e barulhentos.Gente boa, pacífica. Na carta pus junto o catálogo da exposição de Santa Maria. Um abraço afetuoso. O Iberê
Porto Alegre, 24 – 11 – 86.
Querida Beth. Lamento que tenhas perdido tua mãe. Eu ignorava este transe. Espero que meu carinho te sirva de conforto. Minha amizade te faça companhia. Continuo pintando, pintando e pintando. Acabei mais um quadro de grande formato intitulado Reminiscências. Neste quadro eu me transformo no pescador da Emulsão Scott, com um grande peixe às costas. Quando guri fui obrigado a tomar esse fortificante, o que fazia com repugnância. Acho que toda a minha geração foi lubrificada com esse óleo de bacalhau. Beth, quando vires a Porto Alegre vem ver o que faço. Tá bom? Não cultives a solidão, amiga. É bom que voltes ao trabalho. Dispõe sempre de mim. Do amigo de sempre, o Iberê.