decepção

decepção passa / desânimo também passa / e vamos seguir estudando para ensinar algumas coisinhas, apreender outras, mas não desistir: brincar de poder pode, se famtasiar também, ter boncos de louça, borracha também pode. ventão e frio no verão também acontece. o tabuleiro é de todos!faz parte do jogo assistir o ramalhete de geniais soluções e ver as reações…Elizabeth M.B. Mattos – outubro, ainda, de 2022 – Torres

ISABELA FIGUEIREDO

“O prazer de ler um livro amortecia humilhações, e era muito maior do que o de brincar sozinha com os bichos ou imaginando guerras com as roseiras do jardim. Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal distância. Os livros podiam conter sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia uma redenção qualquer. Alguém se revoltava, lutava, e morria, ou salvava-se. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção alguma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência. Nada nos meus livros, que recorde, estava escrito desta exata forma, mas foi o que li!” (p45-46) Isabela Figueiredo Caderno de Memórias Coloniais

Isabela Figueiredo nasceu em 1963 em Maputo, Moçambique, e mudou-se para Portugal em 1975. Professora e escritora, é uma das vozes mais poderosas da literatura portuguesa contemporânea.

formiguinhas

as formiguinhas começaram a trabalhar, a cigarra deve estar cantando. a chuvarada e a ventania não chegou, apenas acinzentou tudo. tem gosto de sol no ar, e o sono não se acomou bem esta noite, sinto o corpo a reclamar… hoje vou comer bolo com sorvete. Elizabeth M.B. Mattos – 2022 – Torres

28 de outubro de 2022

Terminei de ler ORLANDO Uma biografia de Virgínia Woolf extraordinário, incrível, como disse minha mãe Anita quando me deu o volume em francês. O inacreditável! Penso que O Lalo tem razão: a leitura tem o mistério da grande batalha, e incomunicação Usar um código comum, não é o suficiente), no entanto, ler os mesmos livros deve ser um pouco com entender japonês e chinês e se deliciar… Caverna iluminada por uma fresta, fresca, inviolável, mas conhecida. Escrever: uma pólvora a ser queimada, céus! É o prazer ao máximo: sexo, desejo, secreções, odores e uma certa violência libertadora. Isso existe? Sim, um caminho no meio da charneca, da floresta, de planícies e a finitude triste…Escrever / ler pode ser escrever às avessas. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2022 – Torres

raiva cega : como se o ato de amar fosse vingança

a traição / a crueldade / o todo complicado passado que se esquece, às vezes, volta assim: raiva da inocência roubada, das expectativas, ah! as boas leituras! “ plena boca um desses beijos em que há sede e fome de infinito.”

Depois começou a andar pelo quarto. A olhar as coisas. Os livros. Os quadros. As revistas. O mármore impudico de uma ninfa. O bronze torturado de um atleta nú. E isto com a graça inocente, o cuidado sutil das pombas da piazza de São Marcos. Eu continuava afundado num daqueles compungidos silêncios do Meretíssimo depois de uns pataços.” (p.110) Aureliano de Figueiredo Pinto Memórias do Coronel Falcão

subterrâneo

No fundo do cérebro, a parte mais distante da vista, como um poço: coisas vivem na mesma escuridão, densa, não as distinguimos mais. Assim são os privilégios: foram dados, usados, facilitaram, e, de repente, alguém diz basta… no more / uaiiiii! Que gritedo! claro, conscientemente, vou lutar por eles, quero de volta. Não perdoamos quem nos arrancou, não esquecemos, esbravejamos. “Dizem alguns que nossas paixões mais violentas e a arte e a religião são os reflexos que vemos no sombrio buraco no fundo de nossa mente quando o mundo visível se torna momentaneamente obscurecido” (p.211)

GOSTO de pensar que estou montada nas costas do mundo. Estou prestes a compreender; terror, medo indefinido, – alguma coisa na qual vacilo em fincar um alfinete e rotulá-la com o nome de beleza. Alguma coisa que não consigo dizer por medo, sinto, mas não digo: venturas e desventuras. Não perdoar, se defender (lembro quando me despediram da Garagem de Arte, sumariamente, ah! Como esbofetear o amor, foi assim), e, neste momento, sem índole violenta, apenas aceitei o fogo… Os erros políticos, os acertos soam assim. Não quero ver o absurdo, mas quero de volta o velho amante traidor. De volta os atores a se balançarem e decidirem por mim. Nunca será tarde ” jogar pedras na Jenny” como cantou o Buarque. Mas, que desperdício de tempo! Elizabeth Menna Barreto Mattos – outubro de 2022 – Torres

Não pode ser visto por inteiro ou ser lido do começo ao fim. Os papéis, as cores, a música, a voz se vai. Caminham pela imaginação e são nuvens. “A verdadeira duração da vida de uma pessoa, não importa o que possa dizer o Dicionário da biografia internacional, é sempre uma questão controversa. Pois se trata de uma tarefa difícil, essa de cronometrar o tempo; […] p.200 Virgínia Woolf Orlando – Uma biografia

Nada parece mais fácil e equivocado como a certeza: palavras são redes, as fotos, montagens. A verdade, apenas as vantagens… Que chegue domingo: a pressão vai terminar, e vamos ter que voltar a trabalhar, a trabalhar e pensar tudo outra vez.

raiva grossa: chumbo pesado

ainda sou cruel e seca, pesada: nenhuma vontade de perdoar / e as facadas sangram em mim, não sangram nos outros porque detesto sangue, não apunhalo. percebo as leviandades / as crueldades equivocadas: as pessoas se permitem! e, tenho vontade de anvançar… a convicção não deve ser apenas emocional. acaba sendo. o outro vira diabo porque nos afetou, arrancou uma estabilidade, acertou numa regalia que me era de direito. não é, mas, acredito nisso ou naquilo, a estrutura por traz importa – com ataques e mordidas defendo o quintal, controlo a floração…, esta energia de guerra espicaça por dentro.

tenho raiva da impotência por ela, a raiva, ser assim, irreversível. tenho raiva porque o bolo não ficou com aquele gosto esperado, mas outro… tenho raiva por ter fugido e por não ter aguentado sobreviver ali, naquele quarto, com aquela sacada, naquele momento seguro. foi inseguro, e, invasivo, escorregadio, perturbante. avaliei. contraditória observação. tenho raiva porque me dou conta / tenho certeza que está no fim. não quero a doença, mas justo ela, a doença atiça a coragem, a tal generosidade, reaviva o sentimento, porque quero viver. ufa! tenho raiva do que não fiz, até dos sonhos que viraram pesadelo, das sobrecargas, descargas, do medo. danado do medo! vou chutar a porta, derramar água fervente na cabeça das pessoas, dizer nomes feios, os piores, e a verdade. vou olhar no olho do outro, e dizer a verdade…, mesmo que seja mentira, sem lógica, a minha verdade está no meu olho, na minha percepção, ele que revire / revide… palhaçada esta doçura carnavalesca / abençoada literatura, e, abençoados sejam os amigos de fé, não o sucesso alheio… Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2022 – Torrres

Miguel Torga

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer,
enquanto O nosso amor Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada
Miguel Torga

do outro lado, estás

E me perguntas, debruçado da tua vida guerreira, ativado pelo amor e
pela fé:”Como tu estás toureando os teus moinhos? Estás bem?”

Respondo, meu amigo: sinto que a vida te surpreende, e eu me alegro.
Inexplicavelmente debruçada, eu também, na tua vida… Devo estar ótima.
Tua carta devolveu…, não sei explicar ainda, vou com cautela, medrosa.
Devolveu um elo da corrente. E veio com ela, incríveis margaridas
frescas! Obrigada. Tua carta devolveu… Sempre me senti agraciada por
isso ou por aquilo, sempre foi preciso força forte para retomar o
acordar, e eu consegui empurrar um dia depois do outro, exatamente
neste ritmo. E sigo neste ritmo. Arrumo a casa, limpo, troco os
lençóis, seguidas vezes, caminho com a pretinha três vezes ao dia, e
luto pelos bons odores. Escuto piano, limpo os livros, luto com a
poeira. E o que te contar? Em desordem, em desordem as gavetas, o
armário, as estantes. Em desordem a vida e eu por dentro. Quase oitenta anos e sigo
sem mudar a criança, sem me empenhar, sigo estacionada, iludida. Como sugeres,
escuto um pouco mais da história do outro, um pouquinho. Não o
suficiente. Um egoismo latente de sobrevivência, eu acho. Penso e me
fortaleço quando leio o que escreves e quando tu me escreves: atravessas
o campo com a coragem que te é particular, o brilho natural E tua força! Mágico e perfeito. Dizes: “há lições de
reaprender e a escutar (não ouvir) por dentro, emocionar, perceber
como as pessoas são excepcionais e nunca termos dito a elas por não
termos nos dado conta.” E o que precisamos, de verdade? Deste olhar,
desta escuta, deste atravessar a prepotência de tudo saber, de
tudo ordenar…,apreender. És uma daquelas pessoas que eu gostaria de
ter tido mais perto. O JCKC me enternece sempre. Grande e poderoso,
generoso e atento, amoroso. Por ele meus melhores sentimentos.
Acompanho de perto / de muito perto, e, abraço, beijo, sempre que
possível. Teremos, ele e eu, outra vida para chamar de nossa / complementar, o primeiro pedaço foi intenso.Quem
sabe? Tua amiga R, consegue, na carta, descrever o sofrimento, ou
mais ainda a estupefação, com coragem, fé: outro mundo, sem espaço
para covardia, outra dimensão. E estas ‘transformações’ lhe trazem o
novo e a esperança, incrível! Não importam as vaidades, o estreitamento
e a presença da dor, ela acredita. Caminha noutra dimensão, domina o
sofrimento, esgrima com a possibilidade… Ler sua carta foi me ajudar a
redimensionar o raso do meu dia / ouvir, escutar e comparar. Tudo que
eu possa reclamar será ridículo e risível. Parabéns a ela! Um ser
humano em dimensões particulares. Contigo, meu amigo, aprendo a me
querer mais, estranho poder, eu abro os olhos: no começo do meu
processo lamento, lamento ter me deixado ficar em desânimo, lamento
não ter tido coragem para amar o L., por exemplo, mas eu me consolo
por sermos amigos. Quero mais vida, mais tempo, mais desdobramentos.
Mais fé. Já te contei que deveria ter entrado para o convento, mas
vês, rezo sempre, mas não estou mais envolvida com o ritual / poderei
ajudar e salvar e ser generosa? Teria sido uma boa freira? Passaram os
anos e não sei quem sou. Parece idiota isso. As pontes importam, as
referências, e, volto a te ver/enxergar com brilho, inteligencia e
força, o verdadeiro atleta guerrilheiro. Obrigada por teres me escrito. Eu te devia
uma carta / um cuidado, eu acho. Tenho tido muita dificuldade para
escrever. O importante ficou irrisório, e os meus assuntos
preferidos importam tão pouco! Estou aqui a conversar/pensar comigo
mesma. Os filhos preocupam e salvam, e me cercam como
escudeiros. Os netos, aventura. Planos de morar em Recife! Acertar detalhes,e o
medo. Sempre tenho medo.Talvez seja hora de tratar o
medo e viver a vida. (risos) Aos oitenta? Um ano e dois anos de vida vida deve
fazer a diferença. Esta dimensão de inteiro importa. Explode
completitude. Será? Enfim, meu querido, que estejas bem! Acolhido,
cercado, entre os teus. Pronto!Eu desejo. Claro,
não conseguiremos beber um café na rodoviária, e já não posso fazer
longas caminhadas. Preciso encontrar o caminho de ser eu e entender a
mim mesma antes de explodir: um vascular, um ginecologista, um
dentista, um cabeleireiro, um vestido novo, um sapato bonito, um
dermatologista. Uauuuu! Um caminhão de dinheiro! Irei a Porto Alegre
na outra semana. Tenho dificuldades de deixar a Ônix / somos
amigas, e atentas, nos /com seus já catorze anos caninos, não imaginas
como cuida da véia! Um beijo, dois beijos e melhor sorriso porque eu
te sinto. Beth Mattos (chove, chove, chove)

Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2022 – Torres