dor na cor violeta do caminho

atravessou-se na desordem inesperada,

tomou os braços, os dedos imobilizaram, as pernas doeram pesadas, inchadas

senti por dentro, atravessando o meu dentro.

li um livro, coloquei um disco, abri todas as janelas, voltei a um poema

sentei, deitei, caminhei

abri a caixa das fotos: namorei jardins, caminhei pelas pontes…

não saiu a dor, os remédios não resolveram, mas me amargaram mais

o doutor disse/explicou: as rosas cor de rosa se atravessaram no seu estômago, obstruíram a passagem, intactas: caule, espinhos e pétalas, rosas cor de rosa, mas tem uma vermelha aberta… talvez seja esta, a mais perigosa… depois explicou das margaridas, amassadas, grande quantidade, brancas e amarelas!

lindas margaridas! Eu sinto o perfume de rosas espalhado no meu travesseiro!

Elizabeth M.B. Mattos – 2022 – Torres

sem revisão

sem vontade de seguir; quero os teus pincéis, todos, e as cores também;

preguiça de riscar, então, esparramo amarelo no verde e tem calçada…

gosto de pisar no macio deste tapete, gosto de esperar o teu cheiro pêssego chegar, gosto das ameixas da terra, e deste dizer, ‘vem cá’, e, eu não vou…

agora, tenho pensado tanto nestas coisas boas de chegar: chegar mais perto, chegar no teu abraço, chegar na tua saudade, chegar naqueles lençóis brancos, macios,

chegar no teu desejo…chegar na areia da tua confusão: pedra, concha, e sal. Por favor, não importa qual idioma, explica o que sentes / faz eu entender um pouquinho disso tudo. No meio da tua conversa em chinês, ou foi polonês? Ah! Eu escutei, mas ainda não compreendi meu querido. Escreve. E me diz/conta como te sentes, como foi esta volta/este susto de arrepiar. Como foi tua dor, como foi voltar! Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2021 – Torres

sem dizer…

a maneira mais profunda de se penetrar em um ser é ainda escutando a sua voz, entender/compreender som/a palavra, exatamente, como é dita/feita, a nota

é preciso escutar com os olhos

a cada pessoa, para cada um existe uma certa maneira de se exprimir/dizer, de estabelecer a ligação entre a fala/ o som de quem diz e a pessoa a quem/com quem ela fala – não é fácil chegar no outro (a tal ponte larga/estreita/a balançar ou firme)

deve-se fazer um esforço para ouvir, fazer silêncio dentro de si próprio para ouvir

jamais colocar no outro coisas suas, ou então, inconscientemente, nutrir o outro com substância sua, como se o nutrisse de sua própria carne, o que não é a mesma coisa do que nutrir de sua própria e pequena personalidade,

ou desses tiques que nos tornam nós mesmos…, e, então, não o escuto, não posso socorrer, estamos, ainda ali a nos escutar…

o tal eterno monólogo interior que se faz diálogo porque existe o outro, o que narra/diz/fala, mas eu não escuto, eu escuto apenas o som de minha própria voz, na voz dele.

e não escutar quando alguém quer dizer dimensiona o tamanho da solidão! Ufa! Não sei se consegui vou voltar…, amanhã. Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2022 – Torres

desejo escondido

É tão forte! Veio tão cedo. E fiquei tentando, tentando me debruçar, fazer acontecer, alcançar, mas sem disciplina, sem método, sem alguém que creditasse em mim. Tentei sem jeito. “Quase todos os escritores começam, ou começavam, escrevendo poemas. O que é muito natural, pois ao mesmo tempo que se é apoiado, se é coagido por um ritmo. Existe um elemento de canto. Existe um elemento de jogo e de repetição, que torna as coisas mais fáceis. A prosa é um oceano, no qual se pode, facilmente, afogar.”(p.56) Marguerite Yourcenar De Olhos Abertos Entrevistas com Matthieu Galey

roupa branca

Meu amigo querido, meu querido amigo: duas semanas tem cor/cheiro/tamanho de tanto! Como se tivesse sido ontem o abraço. Eu me ocupo o dia inteiro, transformo numa maratona de fazer o dia que vai esquentando até estourar! Que verão! Tua viagem se prolonga, e teu sossego, teu brilho se energizam, eu sei. Logo estarás de volta! Enquanto isso, eu leio em voz alta para dividir as minhas vagarosas leituras. Eu atravesso o tempo, meu querido: “Naquela vez, o ano já estava avançando em várias semanas; era primavera, mas um daqueles dias muito quentes em que o verão se anuncia com ondas de fogo, que o corpo ainda não habituado suporta muito mal. O rosto de Gerda estava abatido e magro. Usava roupa branca, e seu perfume era como linho branco posto a secar numa campina. (Pode alguém escrever assim? não imaginas a campina e sentes o cheiro do linho e da mulher? que perfeição! precisava te mostrar.) As venezianas estavam baixadas em todos os quartos, e a casa pairava numa penumbra recalcitrante, com setas de calor de pontas quebradas varando aquele obstáculo pardo. Ulrich tinha a impressão de que Gerda era feita inteiramente dos mesmos panos de linho recém-lavados que vestia. Era uma sensação totalmente objetiva, e ele poderia calmamente vê-la despindo um a um esses invólucros sem sentir nenhum impulso amoroso. Essa mesma sensação se repetia agora. Aparentemente era uma intimidade muito natural, mas vã, e os dois tinham medo dela. (p.223) Robert Musil O Homem sem Qualidades

Lembro a longa/misteriosa conversa confidência (a bebericar o Pinot Noir): ‘mulheres a se vestirem eram/são as mais fascinantes’, confessas. Hora/momento em que tudo/ou nada vai acontecer. Sentido oposto: alguém deixa alguém, e a cabeça ferve. Despedidas roubam a cena! E tu me roubas o fôlego, eu me atravesso na tua voz para ler o parágrafo, na hora incerta: assistes ao jogo de Bia Haddad no Aberto da Austrália. E já me preveniste que não vais atravessar os livros sugeridos. Tu me olhas / é o beijo. Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2021 – Torres

Marguerite Yourcenar

Marguerite Yourcenar, penso FT, como se eu voltasse, ou ele voltasse ao Bazar Praiano para comprar livros, ou me vender ideias, escrever memórias. Nesta insônia natural / dormi tanto e muito! Noite e sonhos! Com minha tia Joana, com o pai e com a mãe: eles me visitam, ela mais vezes, gosto. Vou para a estante pequena do quarto, viajo pelas/nas possibilidades de encontrar um volume não lido / não rabiscado, porque o certo que são muitas leituras esquecidas, tantas picotadas, outras intensas, a ver. A grande dama, ao lado de Marguerite Duras, quietas.

Neste quarto banal, sem ligação com o passado e o futuro (onde por isso somos mais nós mesmos), no meio de um dia ou de uma noite qualquer, esse milagre que bruscamente se realiza, essa graça que por vezes desce: não um instante de felicidade, porque a felicidade não se conta em instantes, mas a súbita consciência de que a felicidade nos habita. Os objetos que compõem a vida regular de repente numa outra ordem voltam para nós sua face ensolarada.” (p.53) Marguerite Yourcenar A volta da prisão

“Era uma dessas naturezas amalgamadas de sonhos que, que pelo mais feliz dos instintos, negligenciam o lado irritante e falsificado da realidade, e caem com todo o peso sobre a evidência das noites e a simplicidade do dia.” (p. 37) Golpe de Misericórdia

Nosso corpo esquece tanto quanto nossa alma. É talvez essa capacidade de esquecer que, em muitos de nós, explica a renovação da inocência“. (p.77) Alexis ou O Tratado do Vão Combate

A leitura tem/é/ desenha esta viagem descabelada / desnorteada enfiava nas estantes. Por que existem estantes? E se os livros fossem lidos e largados/deixados em bancos de praças. Ou fossem lidos apenas nas bibliotecas, nas horas certas. Se as leituras não fossem desorganizadas assim, como ondas de tempestade ou ventania dentro de casa, e, sendo assim, atrapalham o sono, a lógica, a tal rotina chamada de vida organizada / convivência! Fica tudo fora do lugar, daqui escuto o mar, deve estar forte hoje, avançando… E misturo tudo com texto e leitura, desconcerto. Ah! Estas notas de saudade e inquietude, és tu no teu silêncio necessário, neste amar fora do lugar, neste amigo desejo e nesta loucura vazia de imaginar! Onde estás? Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2022 – Torres

passarinhada e rumores

Passarinhada e rumores porque já se movimenta a calçada. E domingo pode ser o dia perfeito nos detalhes dobrados do que terminou, ou do que irá acontecer. A preguiça desce dos lençóis para caminhar pelo apartamento, um pouco menos insatisfeita, ou já acalmada, ou até feliz, ora, ora! Não vou mesmo trocar o piso da cozinha, nem pintar as paredes. Os buracos estarão lá até o final, customizando a a sala cenário, minha vida palco. Algumas expressões, espontaneidades são acachapantes com a verdade objetiva, objetiva verdade! Estamos, normalmente, dando voltas no assunto, fazendo nós nas cordas que nos separam uns dos outros. A nudez afronta, ou grita a loucura na nudez de uma pessoa…, não importa quem seja, nos escandalizamos. Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2022 – Torres


21 de Janvier

Mathilde Roberty part ce soir. J’ai interrompu pendant qu’ elle était lá la redaction de mês Memóires. Il me tarde de m’ y replonger. Je n’ ai rien d’ abordé, rien effleuré, de ce qui me fait écrire. Peut-être m’attardai-je à l’excès à ces bagatelles du vestibule. Avec cela, l’idée de la mort ne me quitte pas, et il n’ est pas de jour où je ne me pouse cette question: si brusquement, aujourd’hui même, dans une heure, tout de suite, il me fallait tout interrompre, qu’ est-ce qui resterait, qu’est-ce qui paraîtrait, de tout ce que j’ avais dire? A force de prácautions, d’ atermoiement, et avec cette manie de réserver toujours pour le plus dignes temps le meilleure, il me sempre que tout encore reste à dire et que je n’ai fait jusqu’ à présent que préparer. Et pourtant je n’ai aucune confiance dans la vie, dans ma vie; cette appréhension ne me quitte pas, de la voir finir brusquement…au moment où enfin je commencerais à oser parler franc et dire des choses essentielles et véritables. Rien ne doit plus m’en détourner. (p.615) André Gide – Journal

JOURNAL d’André Gide

26 Juillet. En arrivant à Dudelange

Il n’est pas un jour où je ne me dise: tout de même, mon vieux, fais attention que demain tu pourrais te réveiller fou, idiot, ou ne pas te réveiller du tout. Cette merveille qu’est ton corps, cette plus étonnante encore: ton esprit, songe quel petit accident suffirait à endommager leur machine! Déjà j’ admire quand, sans te tenir à la rampe, tu descends l’ escalier; tu pourrais trébucher, t’abîmer, et après il n’ya plus à revenir… L’idée de la mort suit ma pensée, comme l’ ombre mon corps; et plus forte esta la joie, la lumière, plus l’ombre est noir. (p.679) André Gide JORNAL – 1919

transplantar e adubar

“Há uma vida anônima correndo no sangue de muita gente hoje em dia, uma consciência do mal, uma inclinação para o tumulto, uma desconfiança contra tudo o que é respeitado. Há pessoas que se queixam de falta de idealismo da juventude, mas no momento em que precisam agir, agem como alguém que, desconfiando de uma ideia, reforça o débil poder persuasivo dela com uso de um porrete. Em outras palavras: existirá algum objetivo piedoso que não se precise munir de um pouquinho de corrupção e cálculo, vindos das mais baixas qualidades humanas, para que o levem a sério neste mundo? Palavras como amarrar, forçar, encostar na parede, botar para quebrar, método de força tem um agradável tom de confiabilidade. Ideias como a de que o mais nobre dos espíritos, metido numa caserna, em oito dias aprende a saltar sob as ordens de um sargento, ou de um tenente e dez homens bastam para prender qualquer parlamento do mundo, só mais tarde encontraram sua expressão clássica, quando se descobriu que com algumas colheres de óleo de rícino dadas a um idealista se expõem ao ridículo as mais inabaláveis convecções; mas já há muito rejeitadas com indignação, tinham o selvagem impulso de sonhos sombrios. Acontece que pelo menos o segundo pensamento de toda pessoa colocada diante de um fenômeno arrebatador, ainda que o arrebate pela beleza, é hoje em dia: você não me engana, darei um jeito em você! E essa fúria de rebaixamento de uma época não apenas enlouquecida mas enlouquecedora, já não é praticamente aquela divisão, natural na vida, entre bela e fera, mas antes um ato de autoflagelo do espírito, um indizível prazer no espetáculo que é ver o bem rebaixando-se e deixando – se destruir com espantosa facilidade. Não é muito diferente do que um apaixonado apanhar-se-a-si-mesmo-mentindo, e talvez não seja a coisa mais desoladora de todas acreditar num tempo que nasceu ao contrário, e apenas precisa que as mãos do Criador o virem” (p.220) Robert Musil O Homem sem Qualidades – Sem comentários: texto denso / a ser repensado e relido e fatiado depois do susto! Torres – janeiro de 2022

haiku

Yo penso: las flores caídas

Retornan a sus ramas

! Pero no! Son mariposas

A Moritake

E o sono verde, no quarto rosado, naquele silencio azul da primeira hora da tarde, foi interrompido. Um copo rolou na sala e a criança gritou. “Molhou! molhou! Quero água mãe!” Então, abri os olhos e eu mesma bebi água, abri todas as janelas para a tarde. E senti a preguiça do bom sono da tarde. Coloquei as cobertas para lavar. A perna esquerda dói, e me aperta, e dói / logo será amanhã! Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2020 – Torres