figurante

Deve ser uma boa vida, a vida de um figurante. Depois de certa idade, porém, a ansiedade deve começar a se insinuar.  Depois de certa idade, a vida de um figurante deve começar a parecer uma perda de tempo precioso“(p.235) J.M. Coetzee – Elizabeth Costello

 

agora do passado

Da carta para o verbo – Torres cinzenta: vento, nuvem sem a chuva, e o desânimo

DO PASSADO

  1. 2003 Fundação Iberê Camargo: filme. Exposição de fotografia no MARGS. Ainda me importo com a cidade/movimento cultural, e acredito em solução. Escondida no preto, inconsciente da importância do evento, levo/carrego apressada urgência. Brota, ressurge esperança, não sei de onde. Existem mortes imperceptíveis, frequentes. Ser despedida da galeria no momento em que transferi tempo, empenho. Desastroso. Morri. Sonambula vago perdida. Concursos. Editais. CETEC e cursos infindáveis. Tento equacionar os passos. Faxina, lavanderia, contas telefônicas, pressa/agitação/ansiedade, insônia.
  2. Detesto o cheiro da poeira, a limpeza de ontem não foi suficiente. Obsessiva. Impotente. O coração se agita. Deve ser o tal de renascer. Coisas inacabadas! Preciso concentração para sair do atoleiro. Irei a Torres na segunda-feira ou na terça-feira. Irei sem os pacotes natalinos, esqueço a lembrança iluminada. Não seria hoje sem aquele feitiço. Trinta anos atrás, vinte anos atrás! Coragem menina! Vou resolver. Atropeladas coisas a contar, esmiuçar e a descrever: despedida, quase sem explicação, contenção de gastos. Escrevo a história na releitura sádica. Sem lágrima. Eu ainda podia.
  3. Escuto tua música, os dedos batendo no piano a sangrar. Sem parar. Prisioneiro do teclado a me consolar. Estou possuída pelo demônio das cordas. Eu te chamo! Não escutas. E estás aqui em todos os pedaços que estou a juntar pela casa, espalhados, vou colando um ao outro. Quero todo o teu corpo.
  4. Carta amorosa, e tens razão. A chave da alegria, o agora. Esperar amor, não o que não aconteceu. Não se afundar em lamento. Escreves: não alega que não estás na tua casa, não alega que não tens dinheiro, queira estar bem! Bem! Bem, não consigo estar. Bem! Encontro soluções imediatas, alugar o apartamento, morar com a irmã, aceitar ajuda dos filhos, e aceitar o limite. Agarro os limites. Recomeço. E guardo os cinquenta e nove anos com a marca do número nove. Navego no meu barco, seguro o leme, pode ser liberdade. Não estou alegando. Olho nos olhos, sinto. Volto a ser menina e assustada. Respiro, aguardo resposta, levanto, acordo da insônia, e sonho com amor. Eu vou melhorar. Obrigada. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 20192019-10-29 11.41.41

 

agora

estranha urgência!

quero seguir, agarrar, resolver,

caminhar e ser gentil;

mas não compreendo.

não aceito, não escuto o grito!

estranha urgência!

Pesam meu braços! E a cabeça se confunde com as nuvens: não aguento esta guerra, nem arrogância, nem o medo. Estranhos sentimentos! Caminhar pelo quintal, se deixar ficar no entardecer, acordar antes do relógio, um alerta. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2019 – Torres

jornal

 

 

dos concursos

Paulo, meu querido, estás bem. É isto, ao menos, o que eu acredito. Leio apenas o que desejo ler: pessoas surpreendentes, somos nós. Cegas. Surdas. Arranca de ti a dor…

A fresca do apartamento me ajuda neste verão porto-alegrense. Segue o sonho: acendo palitos de fósforo e imagino: passar no concurso, resolver as questões com o dinheiro (a falta dele), escrever um livro, voltar ao magistério. Quebro a lógica. Verdade? Sonhos, sonhos que oxalá terminem com a neve do inverno. Adaptando – me a Porto Alegre coloco na vida pedacinhos coloridos de confetes. Tua última carta deixou – me inquieta. Desejos se partem egoístas, tu radicalizas, e teu mal-estar me assusta. Desejo que vivas muito, muito, mito, mais do que eu posso viver. És imortal. Eu te quero perto de mim, sempre. Amigo querido! Eu, de natureza lenta, preguiçosa sequer me volto, para a luz, sigo no escuro. Paraliso. Outras vezes escrevo, outras dedilho o piano, e penso aos soluços. O que imaginas que faço melhor? Aguardo as cartas. Tenho lido menos, pecado mais. Rezo. Peço perdão. Não adianta. Ao cinema? Novas culpas. Se eu passasse no concurso! Uma das tuas boas ideias, vencer, mas sem estudar muito e muito, apenas milagre, perdoada. Reavalio a vida picada em pequenos e imediatos prazeres, cheia de confetes no cabelo, na boca, na fantasia deste carnaval. Estou como nasci. Estas meninas vieram ao mundo para ser abonadas pelos pais e ou pelos maridos. Filhos, abraços e beleza imóvel. Beleza imóvel, sorriso certo. Sem pecado.

Eu fiz tudo errado: separação, divórcio, abnegação, nada produtivo. Prazeirar. Sol do mar, risada leve, embalo distraído. Família cedo, separações imediatas, depois estudar… devagar estudar, mas tão pouco! Quase ao acaso. De uma cidade para outra, aos empurrões. Orgulhosa demais, obediente e passiva em excesso. Era uma vez...e, claro! Foram felizes para sempre! Fórmulas mágicas! O sempre imediato, azul e rosa sem contorno, e a floresta verde, verde e verde pontilhada de frutas coloridas, e perfume a embriagar. Ah! Meu amigo! Ri mais do que estudei, o piano estourou em festa! Dancei mais, e muito, não poupei, não guardei, não fui previdente. Hoje, hoje e agora. Céus! Dei aulas de arte de português e nada sei de acentuação, da pontuação e das letras, se apenas a sintaxe fosse minha! Magistério esticado. Nunca dividi dividendos: entreguei aos maridos o lucro. Sem lutar, a respirar empurro a vida. Errado. Não sou persistente. Fraca. Nunca estudei o suficiente nem o necessário! Escolho errado. Papel, plantas, lápis e canetas, livros. E as paredes? Extravagância no perfume, na seda dos lenços, no vinho e nos licores. Ah! E os discos de vinil! Brinquedos, fantasias, e copos de cristal. Fotos, tanta fotografia, tanto sonho de papel!

As coisas são pedras. Estas podem ser recolhidas / colecionadas. Perdi a ambição. Choro pedras. O voto de pobreza não me salva. Deslizo gulosa em direção as cerejas, as amoras, as uvas e as laranjas. As maçãs vermelhas, e o pão e o vinho. Sou tua guardiã. Colcha de acasos. Chavões. Por favor, te cuida, meu amigo querido. Elizabeth M.B. Mattos – de 2005 para 2019 – outubro – de Porto Alegre para Torres

palavras, reticências

Morar no hotel, caminhar o passeio, e amar a luz. O nosso poeta.

Amor não vai, estaciona na palavra: “Buenos Aires, maio 199…Elizabeth, gorda amada: Estou perdido no mundo. Não sei sequer que horas são, meu relógio de pulso, sem pilhas não me deu o norte do mundo. Estou sozinho no  meu apartamento (no meu, no nosso). Sei que é de tarde pela inflexão do sol. E que muito tarde porque estou  famélico e o frio aperta mostrando que estou sem me alimentar. […] escrevo – te na mesa da cozinha, no pouco que aqui restou intacto. Creio – creio – que eu também restei intacto.Intacto, mas começo a sentir o tiroteio. Ontem recebi tua enxurrada de cartas […] ” Transcrevo, uso reticências e vou dormir. Chove. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2019 – Torres

Carlos Nejar – “Tive com Quintana um relacionamento fraterno. Mais antigo e  sem idade do que eu, talvez minineiros ambos, […] Certa vez ao mostrar – me um poema, cometi a desfaçatez de corrigir as suas reticências. Dizia – lhe: Mário, o que está nas palavras não precisa da muleta das reticências! O mistério está nas palavras. E ele argumentou que  as reticências são cercas. Cada campo tem a sua cerca […].”

Estou a olhar o trovejar cinzento e pesado, a reler velhos jornais, janelas abertas. Gostei das cercas. Mário Quintana: “a bomba abriu um belo  buraco no teto, por onde o céu azul sorri para os sobreviventes, a mote é quando a gente pode, afinal, estar deitado de  sapatos”. Amar tanto muito e esticar. Coloco um ponto. E já posso amar outra vez. Trovejar relampejar e descobrir o novo a brotar do alerta. Juventude menina. Confiáveis olhos castanhos.Tão pouco poder de decisão em relação ao que não acontece! Tão pouco! Céus! Desisto. Acumulado de coisas desistidas. Mais uma, menos uma, que diferença faz? Sobrevivi. mas os fantasmas se enfiam dentro de mim, às vezes, fico sem saber o que fazer deles. Invento palavras, todas que deveria ter dito e não disse. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2019 – Torres  

 

círculo invisível

Desenhei, mentalmente, no invisível brinquedo de apaziguar o que poderia ser pessoa, árvore, surpresa. Trouxe flores e frutas e cor. Lápis, papel, livros, almofadas, luz e quietude. Carreguei as palavras e o inimaginável. Chorei sem lágrimas, estupefata.

“[…] entre o nosso hoje, o nosso ontem e o nosso anteontem, todas as pontes se romperam. Eu próprio não posso deixar de me espantar com a multiplicidade, a diversidade que comprimimos no curto espaço de uma única existência – naturalmente, muito incômoda e ameaçada -, em especial quando comparada com a forma de vida de meus antepassados.” (p.15) Stefan Zweig – Autobiografia: o mundo de ontem

Atravesso o caminho espinhoso de muito pensar ou saber / acompanhar / assistir, e mesmo assim me dar conta de enorme / gigantesca inocência / ingenuidade e, porque não dizer? Perplexidade. Os olhos jovens / as mãos lisas e o vigor se esconde. Em qual pequeno mundo posso ter certeza de uma verdade honesta? Nos depoimentos de um e de outro, na voz rouca, ou quase incompreendida deste ou aquele.  Que sentimento de completa impotência!  Escuros porões inacessíveis… Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2010 – Torres

madrugada

se a madrugada me acorda, volto  para te pensar, seguro a vontade de te saber aqui ou ali,…conversar.

dormes.

a chuva se fez dia frio, depois quente, depois não sei.

dormes.

os livros me esperam, desânimo.

não posso acertar! erro tanto! e já amanhecendo estou a pensar na noite!

a pensar em ti, mas

dormes

Ana Moog – outubro de 2009 – Osório /RS

proibição de lugar proibido

A vida do cotidiano, da caminhada pela lagoa, da compra na feira livre, de olhar o mar e da leitura se mistura entre real e fictício. As citações importam nesta travessia justa / única e perfeita: a voz do escritor. Leio com a voracidade inquieta. Não consigo respirar, perco o fôlego. J.M. Coetzee acena altivo.

O diabo está em toda parte debaixo da pele das coisas, procurando um jeito de sair para a luz.”(p.187) Coetzee  in Elizabeth Costello

Sentimento do mal, do perverso atravessa. Reagir, perdoar e escutar outra vez, mais uma vez para abraçar. Não se trata do definitivo. Estou sempre a querer/nem sempre a conseguir. Lacuna na conversa, na indignação. Não resolver apressado, resolvendo… O corpo a gritar por socorro! Deve ser o diabo!

Esta é minha tese de hoje: que certas coisas não são boas de se ler nem de se escrever. Vamos colocar a questão de outro jeito: levo muito a sério a ideia de que o artista se arrisca bastante ao se aventurar a lugares proibidos; arrisca, especificamente, a si mesmo; arrisca, talvez, tudo. Levo essa afirmação a sério porque levo a sério a proibição dos lugares proibidos.” (p.193)

Tenho eu também, lugares proibidos. Certamente proibidos. Interrompo a leitura. O inferno deste “porão, onde em julho de 1944, foram enforcados os conspiradores,[…]”. Penso rupturas a rasgar, danificar, sangrar. Existiam rosas. De certo toco no inferno. O purgatório do silêncio. Castigo. Gosto das conversas do dia: “o pastel estava delicioso”, “a sessão da tarde,  doce de leite”. Ou “Bermudas incríveis, mas coloca um chapéu.” “Hoje o sol ferve”, ou outras tantas banalidades importantes. Simplicidade de nada dizer no meio do abraço. Decisão difícil não te pensar! Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2019 – Torres

ÔNIX de perfil

 

altiva

Entrou altiva. Sentou no sofá de veludo, e se encostou nas almofadas macias. Com prazer esticou as pernas, como se voltasse de uma longa caminhada! Pediu água e sorriu satisfeita. Nós esperávamos bem uma hora e meia e seu atraso nos inquietava. Espanto ao ver tanta serenidade. De uma ausência de tantos anos, eu me perdi nas dobras do seu corpo nem tão gordo, nem tão magro. Na blusa polo e nos tênis brancos, nas meias curtas e naquela calça com riscas vermelhas. Os colares de ouro no pescoço. E brincos. A bolsa era grande, um couro leve, trabalhado em cores castanhas, um grande fecho atravessava a costura.

Cabelos ondulados presos por pequenos passadores, o rosto limpo, os olhos castanhos voavam curiosos. Tudo nela parecia perfeito confortável. Abusava da fartura.

Arrumei o vestido e  sentei na outra ponta do sofá, desconfortável. Talvez eu tivesse colocado perfume forte demais. Esqueci o casaco na poltrona do quarto. Com frio, cruzei os braços nervosa. Talvez fosse o cansaço da viagem, ou o tempo agindo no envelhecer. Suponho que umas pessoas sentem as horas como pregos, e outras livres, alegres ponderem o excesso de luz. Se trata de um negócio. Valor, decisão, acerto, tudo me inquieta. Valorizo a vírgula. Excesso! Elizabeth M. B. Mattos – outubro de 2019 – Torres