De volta no tempo

Esta coisa de envelhecer, encolher não é só dos velhos, mas das pessoas em geral. Do mundo. Desta parada que, a seu modo, cada um vai fazendo enquanto cresce. Desânimo impreciso, ou focado nesta outra coisa que todos nós fazemos, diariamente, consumir. Se sair com a lista de compras, aventuras de vitrine, voos de rotas imprecisas, o mundo interior se transforma, aplacamos ansiedade. Usufruímos. Esquecemos o que vai acontecer… Respiramos. Muito bom. Ufanismo colorido. Lucidez, felicidade engarrafada, alegria transbordante. Festa de todos os dias. Sorrisos e beijos. Esta coisa de ser feliz nos segura, e nos insulta também. Como posso entender tanto otimismo na mesmice? Agarrada em compulsiva solidão vai gemendo a vida surpreendida. A enganação se espalha esquisita, o que foi mesmo que fiz ontem? O que vou fazer amanhã? Por que estou imóvel e assustada? Tem alguém me ouvindo? Espera, quero ir contigo conhecer  a América do Norte, espera por mim. Elizabeth M.B. Mattos – Outubro 2015  – Porto Alegre

Sem pensar, deixar correr

1.

Desde que desmanchei o quarto do trabalho, nunca mais achei, ou me debrucei na  boa mesa boa, a certa…Sinto falta do Antônio, daquele socorro rabugento, mas amoroso, presente. Dá o abraço, esquece o chocolate… Dorme porque é inverno.

A perda responde à ansiedade. Será que posso ter carregado o passado? Lista, diz, pergunta. Outras coisas apenas somem do olhar… Comprar?Travesseiros. Perfume.

Lembro-me do fogão a lenha acesa, polido. Dos cobres. As sopeiras ordenadas. Festividade. Sempre para acontecer. A cada tempo um tempo. Jardim renovado. Cães estabanados. Diferente. Depois vem a coisa de habitar. Assim, minha filha, o tempo que parecia preguiçoso, grande, fica atormentado, atabalhoado. Espremido. E o amor com tentáculos, aperta. Sabes o que me ocorre? A vida como pequenos e grandes inventários. Doações, lavações, e escovações. Arrumar e arrumar armários. Redistribuir. Doar.  Os livros livros empilho. Revejo. Acaricio. É preciso  limpar.

Imagino a casa branca, móveis brancos, espaço. Sem tapetes apenas sol e calor. Quadros como janelas… Esta coisa de lembrar, e de dizer importa.

Estou atrapalhada. Não gosto do entardecer. Gostava quando morei contigo. Jardim iluminado. Cadeiras na varanda. Mar verde. Da tua casa se escuta o entardecer… E gosto de venezianas abertas. Conversas amolecidas, sem urgência. O tempo pode ser meteórico. Arrumar faz parte desta visitação ao passado. Limpar. Listar. Ordenar. Vou usar o ponto final. Desmarquei a manicure. Fiz a sopa, Tomei café.

Escuto o gotejar. Chuva ininterrupta. Encontros apressados, atravessados de lapsos. Outro café, um pedaço de bolo. Queremos  a vida como era, ou como deveria ser, não como é…

2.

Escrevo mentalmente todos os dias. Ou pelo menos ajusto a conversa no papel. Na tua casa falo, ou melhor, atropelo teus ouvidos. Liberada.  Avolumam-se queixas. O prazer. Estou no lugar certo. E vou ficando até me dar conta que estás quase fechando os olhos… O jantar que fizeste foi tão bom! Mas não parei de falar, nem um minuto.  Desculpa. Falo demais, rápido, engatando um assunto no outro como se mais que amiga fosses o anjo, o mestre, o médico, ou sei lá quanta coisa ao mesmo tempo. Abuso. Pessoa forte, vigorosa que és me instigas a pensar e processar, e revidar. Confio.  Cutuco. Mas escuto o que me dizes também. Gostei quando me perguntaste, tão diretamente, por que não expunha o sentimento de desconforto para a irmã. Ainda penso nisso embora tenha te dado uma explicação na hora. Não entenderia. Não mudaria nada. Talvez, apenas gerasse mal estar. Não encontrei outra resposta. Esquisito isso. Depois de certo tempo não importa mais o que dizemos dos velhos e sólidos sentimentos, soa falso. Explicações podem confundir. Ou romper o elo. Conversas importantes, fustigantes, doloridas! Necessárias? Não sei. Estas esquisitices que só a terapia explica, se é que explica. Tempo aberto, infinito, e já sem voz concluiríamos que não é o discurso que importa, mas estarmos um diante do outro. Escreve. Gosto da tua tenacidade.

Ler Boris Fausto, logo

O autor divide o diário em anos, e coloca pequenos títulos com datas. Long Live  Bukovina 5 de junho. Este começa assim:” Termino uma resenha de Tempos fraturados , o último livro de Eric Hobsbawm […]” Vale a leitura urgente. Segue no dia 7 de junho, com  o título Preconceito.

Páginas 152-156. Vou citando sem transcrever. De repente, num repente, pega-se o livro na Saraiva ou na Livraria Cultura e já se dá conta do recado. Não o dele, mas o meu é fácil. Estou mesmo presa na leitura.

Calendário

“Um dos efeitos da solidão consiste no modo como percebemos o calendário. Os fins de semana são difíceis, especialmente o domingo, em que a solidão torna ainda mais penosa a chamada neurose dominical. Os feriados prolongados, que despertavam uma expectativa gostosa, tornam-se um desafio. Como atravessá-los incólume? Natal e ano-novo, para quem não está para festas, são datas que mal se encaixam, momentos que fazem as recordações de outros natais, outras viradas de ano saltarem a nossa frente como cenas do passado esvaziadas de personagens vivos”(p.83)  Boris Fausto, O brilho do Bronze [um diário]

Bilhete com vinho

Fantasia. Bilhete eletrônico. Mágica do dia. Chegas no meio da manhã, risonho. O avião sobrevoa sinalizando. Almoçamos. Prosaico guisado, farofa, batatas, ovos cozidos. Salada. Vinho aberto, descontração, e passado. Faz sol, não venta. Primavera, buganvílias floridas. Somos os mesmos.

Encontro com Boris Fausto

Escreve bem. Vida perfumada pelo sucesso laborioso. Luxo cotidiano, lapidado. Conforto, fartura intelectual. Inchado  parágrafo. Ironia. Curta narrativa.Texto dois desdobra na citações. Subjacente… Envolvida pelO brilho do bronze [um diário] de Boris Fausto. CosacNaify, 2014. Leio o bom vinho a cada detalhe. Fecho os olhos e acompanho Cynira.

“O quarto dos mortos

Há algumas semanas li o livro de Michelle Perrot Histórias dos quartos, um bom exemplo da ampliação temática produzida pela Nova História. Quando fala dos quartos, Perrot se refere a duas atitudes opostas; de um lado, a de tudo preservar; de outro, ade tudo tentar apagar, até mesmo a lembrança da voz do morto. Fico rememorando a voz da Cynira, fazendo força para não esquecê-la , temendo que isso aconteça. Por quê, nas nossas longas conversas sobre a vida que em parte reproduzi em Memórias d um historiador de domingo, não gravei alguma coisa, preferindo deixar  a conversa escorrer livremente?

Michelle Perrot

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Objetos

 Em incontáveis memórias, passagens de livros de ficção e diários se fala da angustia ao contemplar roupas e objetos que pertenceram a alguém muito querido, Ao realizar essas tarefas incontornáveis, parece que apagamos, a cada passo, um pouco da lembrança de quem se foi. […] Se roupas e outros pertencem perturbam, não é fácil também encarar espaços vazios. Esses espaços tornam cômoda a vida de quem permaneceu e traduzem outro vazio, que não é material, deixado por quem se foi. Dramática e ironicamente, resolvi o problema da minha quantidade de livros que não tinha onde guardar, mas o sentimento não é bom, é como se ocupasse, indevidamente, espaços que não me pertencem”(p.55-56)

Boris Fausto

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O passado de frente

É preciso encarar o passado, de frente, não como um ser frágil e inocente, mas como uma pessoa inteira, independente. É preciso ver as coisas que precisa ver, e não as coisas que quer ver. Caso contrário, vai carregar o fardo para sempre…

Enquanto leva esta caixa fechada, pesada, de um lado para outro, não consegue avançar, nem começar, nem terminar. Prisioneira. A casa tem portas e janelas abertas… O passo definitivo. Avançar em direção ao portão. É a jornada… Aventura possível. No entanto, apenas colhe margaridas, corta a grama, apara arbustos, e volta para a cadeira de balanço.

Livro, música, palavra amiga. Revistas, jornais apontam inúmeras formas de viver. Intensifica-se o desejo. Contar a história? Sempre a mesma. Não se trata de inventar. E, como se sabe, no caso de histórias inventadas, os detalhes mudam cada vez que são contadas. Exagerados, ou quem contou esquece o que falou e como falou da vez anterior. É preciso encarar o passado, de frente, e sair…

Pensar livremente, em última análise, é se afastar do próprio corpo. É sair da jaula limitada chamada corpo carnal, soltar-se da corrente e fazer a lógica alçar voo de forma pura. É oferecer vida natural à lógica. É isso que está no cerne da liberdade, quando se trata de pensar.”(p.64)  O incolor Tsuku Tazaki e seus anos de peregrinação, Haruki Murakami

A música

“Como se chama o pianista? Lazar BermanÉ um pianista russo, e toca Listz como que desenha um cenário imaginário e delicado. As músicas para piano de Listz ás vezes são consideradas engenhosas, mas superficiais. Naturalmente algumas são assim elaboradas, mas, ouvindo todas elas com atenção, percebe-se que no seu interior está contida uma profundidade própria. Mas muitas vezes ela esta escondida de modo habilidosos por trás de toda a ornamentação. Podemos dizer isso em especial dessa coleção Anos de peregrinação. Não  são muitos os pianistas atuais que conseguem tocar Listz de modo correto e belo. Na minha opinião. dentre os relativamente novos, temos esse Berman e, denttre os antigos, Claudio Arrau.” (p.61), 

Haruki Murakami O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, Objetiva, 2014.

O piano de cauda Yamaha na sala da casa dela. Sempre afinado corretamente, refletindo a personalidade metódica de Branca. A superfície reluzente e límpida sem nenhuma impressão digital. A luz da tarde que adentra a janela. A sombra do cipreste do jardim. A cortina de renda que balança ao vento. A xícara de chá sobre a mesa. Os cabelos negros e presos atrás de forma meticulosa, e o olar compenetrado na partitura. (…) quando alguém pedia para tocar uma música, ela costumava tocar essa. Le mal du pays. Tristeza sem causa, evocada no coração das pessoas pelo cenário rural. Saudades da terra natal, melancolia.” (p.62)

Se ouvir a música o mundo interior da pessoa se modifica. Escrever música, dominar o piano foi sonho de menina. Mas, a professora, Dona Ondina não tinha um piano de cauda. As aulas, exercícios de escala…E a rua Vitor Hugo só fazia/tinha música saindo  na calçada dos Bordini. A filha do Dyonélio Machado, a dona da casa, Cecília, cantava. Tocava piano, e cantava.Ou a memória me escapa?

Mesmo nas Cônegas, no internato, as aulas terminavam e começavam com A Valsa do Papai. Nunca tive um piano. O amor, eu guardei.

Trabalhando com a memória

Do baú, apresentação provisória do texto, Memórias de Xico Stockinger. O livro saiu apressado do prelo. Xico Stockinger escreve com seriedade na serenidade. Confidência linear, memória seletiva. Se algumas pessoas ficaram menos próximas, afirma o escultor, nunca foi por desamor, mas certa incompatibilidade diante do que ele afirma/chama de lealdade. Incompatibilidade, a chave. Tudo que fez assumiu no peito, diz ele. Modesto. Homem de trabalho. Se a vida o reverenciou, ele aceitou, não alardeou, afirma. Grandes e pequenas curiosas histórias: um sorriso, reticências. Cautela para digitar tudo nesta conversa de memória, biografia, autobiografia. Vai margeando. Salta o espontâneo. Agarro e escrevo/transcrevo.

O pequeno livro é a memória dos seus oitenta e dois anos. O resultado faz parte de jornada programada. No artista Stockinger existe exatidão, cuidado com o perfeito. A vida não é leve, mas intensa, afirma. Ordem. Ansiedade também. Fazer tem polimento, cuidado. Instrumentos de trabalho. Este é o Xico. Depoimento entre perguntas, respostas e desabafos. Trabalhar, segundo ele, é a combinação certa com a vida de viver. Organização, tenacidade. Embarcamos. Elizabeth M. B. Mattos

Porto Alegre, junho de 2002.

Um bilhete de Xico: “Faço questão que continues perguntando, pois acabo respondendo tudo. Agora uma pergunta minha: como é que o Eddie Esteves entrou nesta história? E conta como saiu o teu bife de panela? Bem, vou indo. Um bom fim de semana; manda as perguntas, e lá vai um grande abraço. Xico82”