sol gritando

Amiga: cá estou numa labuta doméstica esquisita porque inquieta, tu na tua laboriosa atividade incansável. Eu te sinto assim, heroica e constante. Mais o tempo passa/corre mais lenta, e com mais calor… Ah! Calor único absoluto enlouquecido. No entanto, alguém, mais lúcido, diz que não é assim, apenas outro verão, o mesmo calor, um mês de janeiro esticado e fervente, apenas janeiro, o primeiro mês de 2019.

Tão bom foi te encontrar! Chocolates cogumelos beleza espaço, luz. Tua casa oferece o melhor. Ah! O gosto daquele vinho! A delícia da noite avançando… E o aconchego da irmã! Gostoso afável, caloroso. Sou eu que abro os braços festiva, sou eu que me derramo! Porto Alegre risonha neste janeiro.

Se te conto detalhes vou logo dizendo que os hidráulicos não vieram, que o desespero se acalmou em paciência. E os livros, a leitura acontece no bom ritmo, esperançosa, ela também, laboriosa. Se alguém quer me visitar estremeço, tudo está no outro lugar, não no correto, no bom lugar. A casa parece barco à deriva. Perdido. E como gosto da limpeza, da ordem, do colorido certo, das pilhas impecáveis, da música constante, das vozes ordenadas! Ufa! Aonde? Eu me desespero pouquinho, se o desespero pode ser assim diminuto meio ao terremoto. E me consolo: tudo voltará a ser como antes. E como é verde o verde, o azul, azul!  Amigo perto, sorriso chegando, e vozes se intercalando amistosas. Arregaço as mangas, abro sorriso, e vou caminhar antes que o sol grite mais alto. Elizabeth M.B. Mattos – janeiro, último dia – 2019, ainda em Torres, não Portugal.

2livro foto melhor grass

“[…] esse esforço é chamado também de amor. Depois disso, buraco, transtornos na imagem. Nada que pudesse ter o ressaibo de uma nova conquista ou pudesse ser apontado a fim de virar aventura. […] mas não houve mais montes de feno. Não tive lucros lendo a mão de alguém. Nada a não ser intranquilidade sem destino, à qual nenhum domicílio formal e regular queria parecer atraente.” (p.192) Günter Grass Nas Peles da Cebola – Memórias

Citações: Rousseau

A fonte de nossas paixões”, – escreve Rousseau – ” a origem e o princípio de todas elas, a única que nasce com o homem e jamais o deixa, enquanto ele viver, é o amor de si mesmo: paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras, e da qual todas as outras não são, em certo sentido, mais do que modificações. E nesse sentido, se quisermos, todas são naturais. Mas a maior parte das suas modificações procedem de causas exteriores, sem as quais nunca se verificariam; e essas modificações, longe de nos serem vantajosas, são prejudiciais; elas modificam o alvo primeiro e contrariam seu princípio: é então que o homem se afasta da natureza e se põe em contradição com ele.” (p.152) J. Herculano Pires in Rousseau e o Emílio – Livros que ABALARAM o MUNDO

leitura desdobra o tempo

O livro desdobra “Retalhos  de recordação, arranjados ora assim, ora assado, se juntam deixando lacunas. Eu desenho o perfil de uma pessoa que sobreviveu casualmente, não, vejo uma folha manchada, mas de resto em branco, e a folha, que sou eu, poderia ser ou gostaria de ser o esboço impreciso de minha existência posterior“. (p.181) Günter Grass Nas peles da cebola Memórias

Sufoco enquanto leio, não apenas do calor, mas da memória. Dói, ou melhor, escapa asfixiada. Não quero jogar pedras nem maldizer a interferência maléfica de mãe,  alienação paterna, e a vida despreparada. Tantas vezes usei o confessionário para jogar a raiva, despejar injustiça e ser perdoada. Calada. Este livro de Günter Grass na beleza honesta da palavra pesa e ilumina com holofote o amor dos desamores. Que medo sinto da verdade! Como confessar no fim do caminho que amei de amor apenas ele e nossa inocência, nossa luz própria? Não é tarde para mencionar, nem contrapor aos arremedos mascarados que redefiniram minha vida no Rio Grande do Sul. Ainda lembro quando nos conhecemos num almoço de domingo na casa dos Franciosi. Era verão, férias, eu estava de passagem em Porto Alegre. O livro me trouxe a história toda, as injustiças, o despedaçado da dependência. A minha fraqueza, fragilidade e despreparo. Eu que fui sempre/ e sou empurrada, manipulada. Não tive coragem de ser apenas eu! Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2019

A releitura dos Cadernos Memória, novas anotações e desabafos tímidos. Será que consigo contar? Detalhar, e voltar no tempo? Tenho costurado pequenas histórias na fantasia/narrativa da lembrança do outro,  agarrada no que pode ser bonito, mas nada é mais ou maior do que o amor. E a vida nem é bonita ou perfeita. Quiça a verdade seja.

cadernos memÓria 1

Além disso, imagens desenhadas pelo desejo se insinuam – o homem jovem, sério, meditativo, em busca de sentido entre os escombros -, e são jogadas fora, hesitantemente.” (p.181)

Caminho pelo livro e risco, sublinho, interrompo e penso. Redesenho a memória. E vou colhendo frases, costurando:

Não-sei-mais-o-quê poderia ser encontrado em palavras cochichadas em um monte de feno.”  É a juventude da primeira experiência sexual.

Primeiro, para o treinamento em GroB-Boschpol, depois direto ao front e, mais tarde, conforme ele havia escrito, apenas para construir pontes nas montanhas… (p.189)

Construir pontes nas montanhas, apenas para… A cada experiência interior pontos de reticências abnegados, nunca falei nele porque o amor amado, o único entre tantas narrativas e fatos anunciados. Lúcida, inteira esta memória, intocável.

“E fui eu, então, que cochichei isso e aquilo no monte de feno.”

Nunca pode ser a boa palavra, mesmo sendo fluída, ou rígida. Assim mesmo a memória detalhada daquele apartamento vazio, ou quase. Lembro do quarto, das árvores da rua, da cozinha aparelhada, completa, moderna anunciando o depois. E nós sentados no corredor, encostados na parede comendo maçãs e confabulando, saciados.

sobrevivente

Passados tantos anos a palavra sobrevivente não descreve, confirma.  Da guerra da vida, uma batalha depois de outra. Soterrada, ou no meio da lama, o espanto. Abro um velho Caderno de  Memória -1983, 28 de setembro, Dia da Fundação de Santa Cruz do Sul. “Acordei com foguetes, e festa anunciada pelo rádio, sonolenta. Tinha dormido pouco, já 5 horas da manhã. Ontem fui buscar o telegrama da POSSE, saiu a nomeação para o Concurso do Estado, assinei o ponto na E.E Colégio Estado de Góias. Vou começar a trabalhar no Rio Grande do Sul.” Continuo a ler…  Aos solavancos a vida. Elizabeth Menna Barreto Mattos – 2019 em Torres. Não, não quero transcrever a memória, tenho escrito no Amoras apenas a fantasia do amor, do colorido, mas leio tudo em branco a preto. Talvez a experiência tenha sido mesmo devastadora. Descrever o que acontece a nossa volta é bem mais fácil do que descrever o soterramento de experiências emocionais. Abrindo este caderno dou-me conta que autobiografias são reescritas nas lacunas. Quem diz a verdade?

cartas, o rabisco e a ponte

Tereza cortou cinco girassóis para mim. […] Havia uma carta sobre a mesa. Por trás das dores nas costas da mãe, estava escrito: Na segunda-feira de manhã deixou a roupa limpas para a avó. Ela as vestiu antes de ir ao campo. Pus as sujas de molho. Havia bagas de roseira-brava num dos bolsos. Mas, do outro, asas de andorinha. Meu Deus, talvez ela tenha comido a andorinha.  É uma vergonha chegar a esse ponto. Talvez você possa falar co ela. Talvez ela conheça você desde que parou de cantar. Ela sempre gostou de você, só não sabia quem você era. Talvez ela saiba novamente. Ela nunca gostou de mim. Venha para casa, acho que ela não vai aguentar muito mais” (p.162)  Herta Müller Fera d’ alma

Cartas são rastros de história maior. Quando leio “Tereza cortou cinco girassóis para mim.” Penso nas flores. Tintas. Terebentina, Iberê Camargo, Carmélio Cruz,  Glauco Rodrigues, Caribé. Por que estes e não outros? A vida, o rastro deles no meu rastro.  Contorno o contorno. Vincent Van Gogh, famosos girassóis vibrantes. Quero usar pincéis e tintas e girar também meus dedos fazendo ficar as histórias todas de lembrança uma memória. Caminho pelo teu apartamento, eu me detenho no autorretrato corajoso das tuas tintas. Não digo, mas te sinto inquieto e ativo. E a posição dos quadros.  Os tapetes, as cadeiras preciosas. O gosto/prazer da beleza está impregnado no teu olhar. Estranharás que passados tantos dias eu respiro, ainda, tuas palavras, e qualquer narrativa faz ponte.  Como posso te explicar? A vida,  tua e a minha, se cruzam de forma suave, discreta. Estes detalhes enriquecem vida sem rótulos, sombra e luz e a cena se define. Sabes o que mais gosto/desejo/sinto os pequenos prazeres do corpo represados. Disto a velhice, o entardecer, e as certezas escapam / escorregam. Estou atenta. Escrever/ler pode ser respirar. Alerta! Esta tragédia em Minas Gerais eriça sacode e não posso fazer nada, os que podem… Vês meu amigo, nada explico. Tudo se confunde caótico. Importa que eu te diga, ainda não voltei, estou na estrada, a caminho de mim mesma. Obrigada, quando te debruças, eu me sinto maior, melhor. Elizabeth M.B.Mattos – janeiro de 2019. Solidariedade amorosa precisamos. A terra se sacode, o céu azul ilumina, o mar conversa. Eu escuto.

 

os bebês acalmam

Se eu pudesse ficaria grávida outra vez, os bebês acalmam. Ou os projetos: não sair / não falar / não rir. Caminhar um pouco, e depois ficar / ir ficando, ou  chegar no N A D A, devagar. Às vezes penso que ter saído da Garagem de Arte tão sem explicação tenha sido mais dolorido que tudo, mas é assim, não tem volta, afundou comigo.  De que vale pensar? O que é a consciência senão a superfície do oceano da alma? Ninguém pode tirar a solidão de mim. Tem dias que sinto o tempo, o envelhecimento, o corpo sem frescor, as rugas das mãos, da pele, do tempo! Tem dias difíceis! Este é um deles. Quando lembro da sensação de juventude daquele encontro! Nos encontramos como se houvesse tempo, muito tempo para viver, e não tivemos. Entraste na minha vida – não se sei se sei como seguir. Chegar aonde é preciso. Leio tua voz nos bilhetes apressados, nas horas corridas, e ainda sinto / penso / procuro. Não sei o que apreendi, e…

Mais do que isso: aprendi a chamar à minha mesa convidados de longa viagem, que vêm inclusive de tempos distantes, e me faltam na condição de homens que morreram cedo demais – por exemplo os amigos de anos jovens – ou que apenas continuam falando por seus livros, e, ditos mortos, ainda continuam vivendo. Eles trazem notícias de uma outra estrela, continuam discutindo, mesmo à mesa, ou querem ser redimidos com a ajuda de histórias de mentira que se fingem piedosas, porque eles se enrijeceram se transformando em imagens de pedras medievais. Mais tarde eu estendi meu próprio tempo e escrevi o romance O Linguado,[…]” Günter Grass  Nas Peles da Cebola – Memórias

Quando penso, e eu penso: tocar pode tirar a sede, saciar a fome. Descansar o olhar no teu olhar. Não tocar… Olhar. Beber o café, ou a água, seguir o tempo, tua voz. N A D A. Vou voltar, tu sabes. Silencioso tu me esperas, eu te espero ansiosa. O tempo é que se cansa de nós dois, cansa de esperar. Elizabeth M.B.Mattos – janeiro de 2019 –  Já passou um ano inteiro.

valentina pequena no avião

 

fome, tantas! sentir fome

Embora o prato de cogumelos e o espinafre de urtigas me tenham transformado em cozinheiro e anfitrião, os pressupostos para minha vontade de juntar isso e aquilo numa panela, rechear uma coisa com outra, que continua firme até hoje, explorar o gosto especial de algo com diferentes ingredientes e imaginar convidados vivos e mortos junto de mim quando cozinho, já se anunciam nos primórdios da fome roedora, quando o ferido já se recupera e foi arrancado às mãos cuidadosas das enfermeiras, passando da estação de cura em Mariambad diretamente para o campo da fome no Palatinado Superior.

Entre dezenas de milhares, e até mais, prisioneiros de guerra, eu aprendi, depois de dezessete anos de fartura regular – só às vezes é que passei por apertos -, a suportar a fome, que era sempre dona da primeira e da última palavra, como uma tortura duradoura e roedora, e ao mesmo tempo aproveitá – la como fonte de inspiração continuamente borbulhante; quando minha força de imaginação aumentava, eu sempre emagrecia visivelmente.“(p.157) Günter Grass in Nas Peles das Cebolas – Memórias

Lembrei do Internato das Cônegas. No café da manhã, tínhamos uma fatia de mortadela e outra de queijo. Eu gostava. Amanhã vou fazer um feijão. Houve um tempo de penúria quando resolvi morar em Torres, teimosa, deixei para trás conforto e luxo. O que de fato definia, era a juventude dos 40 anos. Eu podia recomeçar.  Animadas, felizes e com planos. Livres.

Se eu pudesse recomendar um livro…, este seria o certo

Se eu pudesse…

Capítulo IX

“Espero ter desenvolvido, suficientemente, as minhas ideias nos capítulos anteriores para dar o que pensar ao leitor, e para por em condições de fazer descobertas nessa brilhante carreira: não terá senão que ficar satisfeito de si, se um dia conseguir saber o modo de fazer viajar sua alma a sós; os prazeres, que essa faculdade lhe proporcionar, compensarão, de resto, os quiproquós daí resultantes. Pode haver gozo mais lisonjeiro do que o de dilatar a sua existência, de ocupar ao mesmo tempo a Terra e os céus, e de duplicar, por assim dizer, o próprio ser? O desejo eterno e nunca satisfeito do homem não é o de aumentar o seu poder e as suas faculdades, o de querer estar onde não está, de recordar o passado e viver no futura? Quer  comandar exércitos, presidir academias, ser adotado pelas formosas, e se possui tudo isto, tem saudade dos campos e da tranquilidade, invejando a choupana dos pastores; os seus projetos, as suas esperanças naufragam sempre de encontro às desgraças reais inerentes à natureza humana; não lhe é possível encontrar a felicidade. Um quarto de hora de viagem comigo vai mostrar-lhe o caminho. […]”  (p.31-32)  Xavier de Maistre Viagem ao Redor do Meu Quarto

Estou limpando  estantes, e, a bem da verdade, levarei o verão inteiro, talvez mais… Visitas, conversas se esticam irritadas e tropeçam na desordem. Neurastenia seria uma boa palavra? Ostracismo,  egocentrismo. Quantas terminologias a serem revisitadas! Eu me divirto. E.M.B.Mattos – janeiro 2019