“Era estranho ver que cada árvore tinha uma personalidade diferente, expressa através da postura única que cada uma delas adotava, e também pela aura criada pelo conjunto de troncos e raízes, cascas e galhos, luz e sombra. Era como se falassem. Não como vozes, claro, mas com aquilo que eram, como se estendessem os galhos direção à pessoa que os observava. E era somente a respeito disso que falavam, a respeito daquilo que eram, e de nada mais.” ( p.80-81) A Ilha da Infância, Minha Luta 3 . Companhia das Letras. Karl Ove Knausgård
Mês: junho 2016
Tudo pode ser nada
Criatividade tem este lado reprimido que não se solta, não deixa acontecer. Ao contrário, segura, vigia, trava. É medo da exposição, da vitrine, do olhar crítico do outro. É preciso vencer a repressão. O trabalho exige a impecabilidade. O perfeito. No entanto, curiosamente, na imperfeição mora o que nomeamos original. Ceifar o que brota parece fácil porque não deixa acontecer. Meu amigo, no eventual, no casual, e também no rascunho o espaço. É tão eventual, tão só aquele momento que termina, e se conclui, e já estamos na outra página, na outra gaveta, no outro sonho. Fazer acontecer, e ponto. Percurso, espetáculo. Sem ensaio. E, num movimento rápido, outra vez o raso, vazio. O perfeito está lá dentro, escondido no olhar do outro. Sem exposição não há nada. Se for eu, apenas eu… Bem! Então, já não existe mundo. Tudo perfeito. TUDO pode ser NADA. Elizabeth M.B. Mattos – junho 2016 – Torres
Não ter ainda trinta anos
Sobre Karl Ove Knausgård. Não é o que ele diz, ou conta, não é a forma, sendo, e não sei se seria se soubesse norueguês, mas o ritmo. Sim, o ritmo. Está na tradução, em qualquer língua. Fico embriagada. Estou apaixonada por Karl Ove Knausgård.
Noite de estrelas e lua. Claro, com toda a luz que o céu da madrugada pode ter. Emotiva, crédula. Lágrimas sobem com facilidade. Deve ser a química de existir. Hoje já será amanhã, como dizes, e não estarei mais sentindo isso. Não verei a luz da escuridão. Não sairei pelas calçadas às duas horas da madrugada. E já são dez horas da manhã. Estou de volta. Oito horas para chegar ao sol. De volta ao aconchego da casa quente, a lucidez. Oito horas para chegar ao esconderijo, na caverna das histórias. Paraíso. A cada um seu encontro perfeito, sua chegada fuga, a porta do amanhã. E eu? Viajo no tempo. Estou a lembrar de Carrasco, Montevidéu. Preencho a nostalgia do vazio, da ordem, do bom perfume da lembrança… Fim de tarde de verão. Marco de carro, atrás da poderosa moto de Paolo, voamos até Punta del Este. A velocidade da juventude, a memória da ventania. O prazer. Chegamos ao Floreal. Descabelados, esfogueados como crianças travessas. Lembrança boa de não ter ainda trinta anos
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Vivendo para sempre
“É hora do almoço. Estamos os quatro sentados em volta da mesa comendo carnes frias, frutas e queijos. Agora que a neblina se dispersou, o sol invade a sala pelas janelas abertas e cada objeto ali parece mais definido, mais vívido, mais saturado de cor. Nosso anfitrião está desfiando suas mazelas para nós, mas extraordinariamente feliz só de estar onde estou sinto-me extraordinariamente feliz por estar onde estou, dentro do meu próprio corpo, olhando as coisas sobre a mesa, inspirando e expirando ar dos pulmões, gozando o simples fato de estar vivo. Que grande pena que a vida acabe, digo a mim mesmo, que grande pena que não possamos continuar vivendo para sempre!” (p.194)
Desvarios no Brooklyn, Paul Auster. Companhia das Letras, São Paulo, 2005
É assim mesmo. Que pena! Ou quem sabe a gente siga numa mutação se aperfeiçoando… Dizem que a vida é mais fácil para quem nasce com beleza. Não é. A vida é mais fácil se existe generosidade. Perdão.Tolerância, e acolhimento. E para estes as portas se abrem, com o sentido lúdico de eternidade.
O quadro
Estou te escrevendo antes de sair para a calçada. Está sombrio hoje. Parece mais frio. Espero o dia se abrir para seguir a rotina do passeio matinal que fazemos. Nós, sempre o plural, a minha peluda, a pretinha se transforma em personagem. Ônix, boa companheira. Por ela faço um pouco do que é preciso, caminhar. E as manhãs ficam imediatamente lotadas. Faço devagar. Faço agitada. Faço na pressa, e no sol, ou na chuva. Saímos sempre. Hoje escuto os pios dos passarinhos. Os passos da calçada. Olho preguiçoso! E me detenho na lagoa. O mar está atrás, sempre atrás, como se dele eu me escondesse. E logo é meio dia. Estou com frio. E ontem o dia foi ensolarado e quente. Movimentado. Gostei de ler na tua carta. Saber dos clientes, pacientes, e do progresso da sala. E deste olho atento de quem te espera… Penso que estamos sempre interferindo no mundo, e o externo entra nas pessoas, e modifica, remexe com alguma coisa, e nem sempre nos damos conta. É um jogo de quem é quem. Queremos nos blindar, mas não conseguimos. Somos o que está ao nosso redor. Os olhos perseguem as diferenças, e se demoram nos detalhes, inquietos. E mudam. E se transformam. E se trocamos as margaridas por rosas, bem, as flores alteram tudo. Muda a alma num ritmo esquisito, sem controle. Como a música. Escuto o som de um piano, logo, imediatamente, vejo o instrumento, e acompanho o dedilhado, como se eu mesma pudesse estar executando o som… Tantas aulas de piano, de solfejo, mas a música não se desenvolveu como habilidade. Ficou naquela mesmice de modestos dedilhados que não eram escalas, e até não sei das sete notas que são todas, tantas! Dos sustenidos das claves de música, do canto, eu me envolvo. Altera humor, vontade e fantasia. A orquestra já faz outro efeito. Entra diferente, por todo o corpo sinto, e não respiro. E por esta sinestesia toda só consigo ler no silêncio completo. Escrever concentrada. Escrever? Preciso antes limpar, ordenar, arrumar a sala, e ter um jeito, um formato de beleza mesmo com tudo fora do lugar. Amiga! A minha vida, ou o estar, habitar é revirado. E se quero pensar eu me deparo com uma viajante carregando os filhos pelas mãos, certa alegria peculiar neste caminho, mas sempre um caminho, nunca chegar. Preciso plantar uma árvore, e me deixar ficar para vê-la crescer. Estou sempre andando. Refazendo. O quadro que me representa tem uma mulher jovem olhando o mar com os filhos. Os filhos dentro de mim, e como se remexem, se agitam! Pedi para a Elaine fotografar. Não sei quem é o pintor, mas a tela tem leveza, história. E sou eu. Todo em azul. Tão bom te escrever! Tanto para comentar. Da análise que não faço, e queria, do tempo se escoando, e ao mesmo tempo enorme, mas preso em minhas mãos. E não quero me despedir. Nem avançar. O olhar se volta para o passado. Mergulho em lembranças. Mas elas, minha amiga, estão espicaçadas, escondidas, camufladas. Vou te contar do livro proustiano do norueguês Karl Ove Knausgård. Mas é atual. O autor é jovem. Não tem cinquenta anos. E os anos são sessenta e setenta, oitenta. Embora aconteça na Dinamarca, Suécia, Noruega com neve, e frio. E uma cultura tão organizada no que de fato acontece e… Porque se olho para o meu tempo parece que a vida foi só um ensaio cheio de imprevistos, sempre o momento, nunca o pensado, planejado. Pois é, estou mesmo lendo, e escrevendo ao mesmo tempo, como se fosse possível. Quero que dês uma olhada no livro, não, não apenas uma olhada. Tenho certeza que vai te interessar. Amiga! Estou congelando. Como esfriou outra vez.
Onde estás?
Papos de Anjo engordam, mas são deliciosos. Conversa abre janelas, mas fecha portas. Sem sentido, sem nexo o eixo. Inveja de quem limpa os livros das estantes. Casa na ordem, espaços abertos. Imagino outra vida. Sentar no sofá, abrir o livro, pedir o chá. Não comer o bolo. Fechar os olhos. Escutar a música, voltar ao livro. Flores nos vasos. Perfeito. Roupas dobradas, passadas. Cheiro da cera. Da grama molhada. Fruta descascada. Quero isso outra vez. Assim completo. Desaprendi a receber a gentileza, a elegância. Quero, outra vez, tudo aberto na sofisticação. Inverto. Não é assim. Simplifico. Escondo. Encontro. Cozinho. Escolho a vida, o feijão, aqueço a água. Ordem e sabor. Viajar, conhecer, reconhecer, estar aqui e ali, muito bom. Voltar melhor. Por que escrevo isso se nunca fui? Para me defender deste nunca ter ido. Os limites. Definir o impossível no possível. É preciso me contar histórias ué. Então, meu querido, tua voz é a festa. Não sou boa com as tarefas, nem com a liberdade. Fico na janela, triste. Quando saio da janela adormeço. O fundo do livro me acorda. Da história. Da vida. O que já foi dito, repetido, o tempo passa. Tudo passa, nós ficamos. Onde é mesmo que fiquei? Nem sei. Fui acomodando a vida, apertando aqui, ali. Espantando o medo. Senti medo. O que acontece? Envelheço. Ou nem isso. Pressinto. Tudo se esgota. Duas palavras. Um gesto amoroso, uma fresta, e já estou, outra vez, na hora de amar, acariciar. Onde estás? Dentro de mim. Comigo. Como não percebo? Estremeço. Ficção, não é real. Estás onde não estou. Invejo a tua certeza, minha incerteza nos cobre. Estou na dúvida. Escrever faz falta, aquela necessidade vital sem conexão, traço… Definir letra, palavra, frase, sujeito, verbo, complemento, a aula inteira de redação. O definido, indefinido, pronomes e adjetivos. Ao ler alimento o sentido. Reviro a necessidade do avesso, interrompo a nostalgia. Revigoro a vontade de estar aqui, agora, no lugar certo. Dentro de mim. Mas estou hoje em outro lugar. Explica, tu que tens as respostas, por quê? Estou pescando na lagoa, jogando a rede no mar. Descalça. Com frio. E já é tão tarde! Derramo inquietude, agitação. Tudo invertido. Longa noite de sonhos engraçados, os meus. Reviro o sol, encontro o frio, sem vento. O azul cheio de amoras, também azuis. E tu, onde estás?
Demorei demorei demorei
Torres neste inverno que se apresenta com toda a força: azul, iluminado, e frio. Demorei. Demorei. Demorei a te escrever. Meu amigo querido. A casa segue fora do lugar. A vida segue intensa. Sigo do mesmo jeito. Encontrar, reencontrar, reanimar, rir, esperar, e mais uma vez mudar tudo de lugar. Mudar. Sim, ainda estou me mudando, refazendo, reordenando. E procurando a hora certa de te dizer estou aqui, e te espero. Atabalhoadamente, adoro esta expressão, tento me descrever, responder, e deixar de te pensar. Penso. Como se este fosse meu permanente modus operandi… História engraçada, confusa, mas intensa. E me proponho escrever logo de manhã, mas… Mas acontece tanta coisa! Cedo vamos para a calçada, Ônix e eu, caminhada primeira, curta. Resolvo comprar um pão fresco para o café, e vou até ao centro da cidade cheia de bom dia e sorriso. Depois do café, durante o café, olho para a lagoa, devagar. Espreguiço. E já vai longe este amanhecer. Vou escrever. Mas abro o livro. Decido lavar a louça. Largo o livro. Remexo na gaveta, e já é hora de outra volta. Desta vez, uma demorada caminhada. E depois, depois… Resolvo terminar a questão armário. Empacota, leva, arruma. Pensa. E já está no meio da tarde. Vou comer umas frutas. Televisão. Entro no mundo real. A vida se repete num “abuso” deste desvendamento político. Espanto. O certo, meu amigo, o correto seria mudar para o definitivo, mas não existe definitivo, não é mesmo? E me demoro nas lembranças. Estou no agito torrense muito igual, muito o mesmo, e sempre intenso. Ondas. Murmúrio, e silêncio. Uma festa de luz. Mas pouca coisa acontece por aqui quando não estás… Salvo, é claro, as mudanças interiores. O dia apenas amanhece, se estica, e já anoitece. E já vou me deitar. Não. Antes conto um pouco mais do livro de Karl Ove Knausgård. Assim lemos juntos.
«A lembrança é pragmática, é insidiosa e astuta, mas não de forma inamistosa ou maligna; pelo contrário, ela faz de tudo para agradar o próprio anfitrião. Alguma coisa a lança em direção ao vazio do esquecimento, alguma coisa a distorce até torná-la irreconhecível, alguma coisa a interpreta mal com modos corteses, sempre alguma coisa, e essa coisa pode ser quase nada, e ela se lembra de maneira clara, nítida e correta. O que é lembrado de maneira correta veja bem, jamais nos é dado escolher.” (A Ilha da Infância, terceiro volume, Minha Luta. Editora Companhia das Letras, p.15)
Gosto quando me apaixono.
Eu não estava lá
Faz frio neste junho de 2016. O sol entra por todas as janelas. Mas segue bem frio, e venta. As árvores se sacodem nesta dança. A lagoa encrespa. Estou enfiada na cama. Desliguei os telefones. Absorvo a leitura. Não é apenas ótimo o livro. Ou estas trezentas páginas lidas do primeiro volume de Karl Ove Knausgård. A leitura se modula, intensa. Como uma tela preciosa em movimento. O autor nos leva aos museus. Entro na pintura, em conceitos. Pondero com ele. Que tempo lento … Não viajo, não conheço o que desejaria conhecer. Vou pouco ao cinema. As leituras são demoradas. E há tanto para sentir, tanto para ver! Estou na Dinamarca, na Suécia. Sinto, vejo a neve. Como peixe, crustáceos. Sinto frio. Confio nas estradas. Vivo no campo. Também nas capitais. A leitura educa, modula, com vagar, o novo. O autor atravessa escritores, história. Abro outros livros ao seu comando. Volta ao tempo de ser criança, adolescente, e com ele vou para minha infância, entro na memória… Enquanto escrevo escuto o vento. Vontade de transcrever parágrafos inteiros. De criar intimidade. Que todos leiam, experimentem o prazer preenchido. Uma conversa com muitas vozes.
Estou a me autobiografar, lucidez vestida de azul. Abro a porta. Os fantasmas entram. Estão confortáveis. O fato? Não fui ao funeral de Geraldo. Não fui ao Rio de Janeiro acompanhar os filhos. Enterraram o pai, e eu não estava lá. Não sei se podem perdoar ou compreender. Não foi a distância geográfica que me impediu. Se estivesse na mesma cidade, também não iria. Não faria diferente. Abro a porta para a lembrança. Eu não estava lá. Acompanho Karl Ove Knausgård ao funeral do pai. E penso no meu pai. Na minha tia. Na minha mãe. Da mãe lembro. Seu rosto sereno, e belo. Não chorei. E esqueci o que aconteceu depois. Sua lembrança bloqueou todas as outras mortes. Grande e confortável vazio. A fantasia se espreguiça e me abraça.
beleza e verdade
Critério do objeto de arte / beleza e verdade/ a determinação de encontrar o belo no objeto / e o belo de se apresentar posto que é completo é verdadeiro , inteiro na determinação de ser obra de arte / o objeto não é apenas um gramado… nem frio. Nem a xícara, mas uma representação… Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2016
Caos e imprevisibilidade
Para que se possa viver intensamente abrimos mão de algumas coisas porque nada pode ser intensamente simultâneo. Não é possível ser mãe, amante, avó, boa dona de casa, escrever e ou ler ao mesmo tempo. Não conseguimos. Para resolver isso é preciso relevar. Acabo de derrubar vinho num guardanapo branco. E já estou pensando em como vou tirar a mancha. Faço o almoço e escrevo ao mesmo tempo. Não deve ser assim. Não terminei de esvaziar o armário. Nem encontrei o roteador para entregar ao neto. Tudo ao mesmo tempo. Não posso. E quero consolar a filha, o filho, dizer ao amigo, telefonar para a irmã. Confuso fazer coisas desordenas, caoticamente, ao mesmo tempo. Temos que escolher. Decidir ou isso ou aquilo. Agora vou almoçar.
“Caos e imprevisibilidade representam as condições tanto para a vida como para seu declínio, uma é impossível sem o outro, e, mesmo que empreendamos quase todos nossos esforços para tentar evita-los, não é preciso mais do que um breve instante de desespero para que vivamos à sua luz, e não a sua sombra, como agora. O caos é uma espécie de força da gravidade, […] É notável a semelhança entre os extremos, ao menos num certo sentido, pois, tanto no caos absoluto como num mundo rigorosamente regulado e cadenciado, o individuo não é nada, a vida é que é tudo.” (180).
Karl Ove Knausgård