De Hélio Oiticica para Lygia Clark

Sou  mesmo atraída pelo voyeurismo das cartas. O pensamento impensado, em transe… Não mais cartas seladas, nem correio, nem papel, nem letras, nem pessoas a se escreverem, mas a contaminar… Pode ser. Não mais com envelope. Mas cartas fragmentadas em mensagens eletrônicas. Tropeçamos um no outro virtualmente. E seguimos o impulso do prazer. Navegamos teclando em celulares, afinal, com palavras… Beth Mattos

Derramado…, como nesta carta do artista Hélio Oiticica e Lygia Clark.

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“New York, 11.7.1974

Lygia:

Recebi sua carta que como sempre me deu grande alegria e espero que você esteja aí quando esta chegar. Sua carta foi muito importante para definir e esclarecer uma série de coisas e principalmente para que eu acrescente na seção de corpo (BODYWISE) do livro que faço a importante e claríssima definição sua (como sempre) e que peço aqui sua permissão  para usar coisas da carta. Penso em colocar num espaço grande em cor ou branco o seguinte:

LYGIA CLARCK:

É a fantasmática do corpo, aliás, o que me interessa, e não o corpo em si.

Essa citação seria em cor que vibre sobre o fundo como luz (complementares), pois a meu ver é uma definição e uma posição, ou melhor, colocação do ponto no ponto maior e crucial; uma revelação: um ponto de tal finura que faz justiça e expressa in totum a natureza de sua personalidade e inteligência sem par: sua carta de duas páginas diz mais que qualquer outra de mil: para mim é como um banho e um alívio vibrar com sua inteligência e afinidade criativa; como você nunca vi, e sei que jamais verei! A vibração das letras puladas da sua máquina e a euforia tão sua e “ligada” me fizeram acordar quando já ia caindo de sono ( há três dias estou de pé!).

[…] Me deu uma sensação incrível de emoção sublime, de uma paixão maior; algo que gera tanta coisa na nossa cabeça que dá então nisso que você segiu da cabeça coletiva: cada coisa engravida outra.

[…] Lygia, pensei em anexar aqui páginas ou páginas com pensamentos que me vêm com os seus argumentos na sua carta; não pense que esses pensamentos sejam ” interpretativo” já era! Pelo contrário, porque o que me leva a determinados pensamentos é o que você desencadeou, e não o que você  disse, ou é em essência; isso me fascina; sinto que a fragmentação que me ocorre é BEM TRIVIAL; sinto-me CLOWN e isso me define e me alegra; sinto você algo bem diferente mas que adoro: SUBLIME, como que tudo o que de grávido da sensibilidade feminina estivesse expresso tão forte quanto uma rocha masculina […] “

(p.225 -230) Organização de Luciano Figueiredo

Lygia Clarck Hélio Oiticica CARTAS 1964 -74

 

É Torres

Noite fresca de verão. Lua encheiando devagar. Lua no cinzento frescor desta noite de verão.

E a vida é assim. Escondida.  A vida como a lua. Jogo de apareço, não estou, ufa! Estou..A vida se esconde no vestido elegante. No encontro fugaz. No casamento certo. A vida se esconde na barra da bainha bem feita. No corte elegante daquele vestido vermelho. Naquela foto. A vida se esconde no tênis de correr. A vida se esconde no copo de vinho. Numa mulher bonita. E na feia também. Na pele escura. Na tez clara. E se esconde do medo, e no medo.  No velado olhar do desejo. Nas nuvens do sonho. Na relação perfeita. Numa tarde de compras. Nas vitrines. Nas modelos que desfilam em passarela. No ouro dos brincos. Nas pérolas do pescoço. A vida se esconde no mar. Na meninice. Nos folguedos da infância. No cheiro das pessoas, no aroma da casa.E a vida se esconde nas apostas do jogo. Nos aeroportos. Nos perdidos e achados.

A vida somos nós escondidos de nós mesmos. Como a lua neste céu cinzento, ventoso, e fresco de verão. Ela se esconde estourando de redonda, nascendo, e morrendo… No verão ventoso de Torres.

Hoje estou feliz

Que estranheza voltar… Querer bem, brincar de menina. Comer morangos. Voltar ao mar da meninice. Areia nos pés, e ficar, assim, por um momento, sem vergonha do corpo, do tempo, da risada, dos cabelos esvoaçados.

Envelhecer tem territórios particulares.  Coisa boa salta da caixa de surpresa, como os brinquedos de mola de antigamente. Estantes abarrotadas de livros, dever de casa, água do café, panela do feijão, esquecidos. Bebemos ar, vento, e rimos à toa… Somos livres. Livres para todas as bobagens sérias de gostar. Livres para virar as costas. Esquecer ou lembrar, tudo igual. Redescobrir.

Não sem medo. O medo estremece, arrepia, sacode o corpo. Destemidos como adolescentes. Porta aberta. Indecente esta alegria toda. Libertária. Casmurra, mas infinitamente rejuvenescedora. Carnaval, luz serpentina, música maestro! Não é o ontem que eu quero, mas hoje. E hoje estou feliz.

Quinta – feira

A Rua Padre Chagas pulsa às 21 horas de uma quinta feira – verão em Porto Alegre. Prazer súbito se cola na pele como se fosse possível sentir e suar com eles, os jovens sem idade. Estico o pescoço. Balanço o corpo e os olhos brilham. O começo. No começo estes encontros anônimos, frescos, abertos importam. Sentar num café, e agarrar, fazer saltar prazer como pipoca. Uma frase, um gesto. Um sorriso. Olhar. Olhar.  Estes  instantes escrevem o sentido. Certeiro, expectante. Posso me deixar ficar no meio deles. Amontoam-se para a balada. Caminhar no ruidoso. Copos de cerveja, petiscos em bandejas…, já é Rua Hilário Ribeiro.  Restaurante iluminado, portas fechadas, portas abertas. Burburinho na calçada. Já estou em casa, outra vez. Da sacada, converso com eles…

Confesso

…que comove, impressiona oitenta, ou setenta anos. A consciência do tempo é alarmante. Sonhos inquietam pontuados pela perda. Lembrança assertiva. Volta esta, ou aquela pessoa. Alguém comanda a memória. Fico pequena, ou velhíssima. Sinto o prazer de um abraço. Certeza do abandono. O meio fio da calçada, e a rua vazia. O grito preso. Os livros saem, e voltam para os lugares. Papéis se confundem misturados. Ou não encontro a roupa que preciso vestir. A hora que termina antes de fechar os minutos… O ciclo sinaliza urgência. E o sono, o sono pode ser o melhor lugar para se passar o tempo.

É urgente dizer, e não contar apenas uma história. O que faço agora com esse danado assobio do vento?Elizabeth M.B. Mattos – 2016 – Torres

10291_1107551725946400_3161375923347889145_n.jpg MARINA

Maryur SILBER

Este texto que segue foi escrito pela Maryur está no Facebook. Está registrado, ou ali solto para nos iluminar,  e , entender o sentimento, a realidade, – envelhecemos. Pequenos presentes, prazeres. Peguei emprestado. Estas questões sobre velhice importam.  E importam porque amamos a vida. Penso. Não quero que imaginem, ou me vejam morta, mas que lembrem de mim como A Boneca de Kaffa (outro encontro no Facebook), aquela que  saiu para viajar, e  não voltou. Pensar neste envelhecer, ou na morte, é intensificar a vida. Na foto: Lucas Ana, eu e o João. Torres, 2015.

NATAL 2015

 

Memórias do Baú ( nov. 2012) Um olhar sobre a velhice.
“Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado, e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha não.” (Cora Coralina)
“E se vivêssemos todos juntos” (filme francês)
Dois momentos, duas situações vividas na última semana me levaram à reflexão sobre a velhice, sobre envelhecer, sobre aceitar a inevitabilidade do último ciclo da vida: 3ª idade, melhor idade…enfim vários eufemismos criados para desviar o foco da realidade que, apesar das conquistas da medicina e da estética, é inexorável.
Podemos ser mais saudáveis, mais ativos, mais úteis. Podemos fazê-lo da melhor maneira mas não deixaremos de envelhecer. E a mim parece que é sabedoria fazê-lo com dignidade, aceitando as marcas do corpo e da alma, com alegria, com serenidade, sem a busca desesperada da manutenção da eterna juventude, exercitando a mente, o corpo e o espírito sem fazer do plástico ou da clínica de estética nosso maior credor.
Assim, o texto que recebi sobre Cora Coralina e o delicado e profundo filme francês que assisti: “E se vivêssemos todos juntos”, me fizeram refletir sobre este momento da vida, sobre as emoções às vezes desconcertantes, às vezes surpreendentes que vivemos diante da onipresença da morte, quando a memória falha , o coração dispara e a doença se instala.
Claro que ainda não chegamos todos lá, que temos driblado com energia, com disposição o momento em que os cuidados e a solidariedade serão indispensáveis a cada um de nós, quando mergulharmos e submergimos nas nossas lembranças e experiências passadas.
Por isso vivamos o hoje da melhor forma com nossas famílias, nossos afetos, nossos amigos fortalecendo as redes e as ligações que estarão estendidas e disponíveis até o fim.
“Velhos não são crianças, não são anjos, não são os adultos que foram. São novos sujeitos em busca de ser…”

 

 

Pedaço de carta, de volta

Todos os dias. Escrevo. Começo, e largo, não faço. Disposição fica num canto qualquer. Não encontro o caminho. Depois dos solavancos que levei ainda o despreparo. Aguda tristeza instalada porque o danado do tempo leva os amigos, a memória. Antes brotava vontade de sair contando, escrevendo, e sempre. Desapareceu. Fico com uma danada incerteza de como escrever. Nunca estudei o português como deveria ter estudado. Nem todo o francês que sonhei. Pensei esta coisa de voltar no tempo, querer o que já foi, talvez não exatamente como já aconteceu…Diferente, assim mesmo procuro o gosto, a volta. O mesmo cenário. Aquelas específicas cores, mas já não é. Espaços preenchidos. Outras pessoas. Eu mudei.

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Luis Carlos Lisboa

Um bilhete, uma palavra, não uma carta. Sandra Azevedo me deu teu endereço. Transitas pelos mesmos lugares que eu: Torres – Rio de Janeiro, e Porto Alegre como ponte. Sei que estás perto, mas não fui te ver, quase não saio de casa. Estou na ponta da Lagoa do Violão. Perto, mas completamente ‘fechada’. Vontade de saber mais de ti, mas tímida… Reconhecer teu jeito de sorrir. Voltar aos bons tempos! Energia, cor. Tenho buganvílias, sonho com romãs, e plantei um maracujá. Mas… A danada da memória arranca a lucidez… É preciso sol. E luz! O calor vem dos amigos! Saudade! Saudade daquela confiança! Cumplicidade! Da certeza que a vida ia dar certo. Hoje pessimista fico a me justificar disto e daquilo… Labirinto próprio! Inquieta e silenciosa? Paradoxal. Adoro a vida! Não saio, não vejo as pessoas… Penso as pessoas. E fico aqui na caverna! Em junho estarei no Rio, se lá estiveres …  certamente nos encontraremos. Torres é grande demais, difícil, arbitrária! Diferente. Morei aqui bons anos, escolas Estaduais, Colégio das Irmãs, depois a Ulbra. Voltei pra Porto Alegre, e fui trabalhar na Garagem de Arte da Itamara e do Francisco Antônio Stockinger! Escrevi um livrinho sobre o escultor, o grande Xico!  E voltei pra Torres. Meu endereço é a casa da Tânia lá no Moinhos… , mas estou mais por aqui. O apartamento é de frente pra Serra, esqueço o mar. Engraçado isto! Estou com teus telefones. Telefonar sem dizer que não vou… Preciso ter coragem. E tu? Estás com tua coragem em dia? Lembro do José, e do dia que fui tentar esquiar no Guaiba, lembras? Tudo era possível. Ainda é. Sei. Sandra me deu uns bons puxões de orelha! Estou a me esconder na velhice como se fosse a mais sólida carcaça, o melhor esconderijo… Dos fracassos? Não sei se foram fracassos, mas mudou tanto! As luzes eram tão fortes! O palco absolutamente reconhecível, e depois de 1968… Outro tablado, outra estrutura. Nada foi como era, como tinha sido ensaiado. Novos textos a serem decorados! O que vou te contar? Que casei duas vezes. Tenho quatro filhos, e nenhum namorado. Um cão pretinho de nome Ônix, livros, papel, canecas cheias de lápis. E muito para ser feito. E contigo? Quem sabe escreves também… Um beijo

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Ana Alegria

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24 de maio de 2013

Tanto tempo! Tanto silêncio! E assim mesmo carinho. Lembrança boa dos dias que estivemos juntas. Não exatamente saudade. Deu tudo errado, não funcionou. Escolhemos o melhor, ou foi destino. Não importa. Lembro também o reencontro na galeria, e nas portas fechadas. Não se apostou em talento. Queriam o banquete! E precisávamos de tão pouco para chegar! Eu fraca, sem posição. Coragem. Assustada. Passei minha vida inteira assustada. Coisa esquisita nos darmos conta disto tão tarde! Aquele acanhamento que ‘mora’ lá dentro! Se alguma coisa aconteceu eu diria ter sido mesmo o acaso. Vivi na corda bamba do acaso! E certas atitudes de acanhamento se aprofundaram. E o péssimo jeito para lidar com as pessoas! Sem frontalidade. O permanente recuo. Mas não era de mim que queria escrever, mas de ti, do teu talento, tua casa. Uma vez fui fazer visita, ver o trabalho, e me impressionou, também, a ordem, a disposição dos móveis. Tudo que te cercava era escolha, seleção, e a beleza. Estavas, feliz! Conheci a mexicana Frida Kahlo contigo. Tu me presenteaste com dois cartões que ainda guardo comigo. Gostaria de me misturar na tua história, ou integrar, mas estava ali, tímida diante de nossa história. E o meu presente pesava… O amor não deu certo, o trabalho foi se esgotando, a professora minguando. Estacionei.  Hoje estou em Torres, na beira da Lagoa do Violão levando vida pacata. Teoricamente moro com a minha irmã Tânia, bem perto da tua casa, mas nunca mais estive “em casa”, como tenho dito, armo a tenda, e me adapto. Objetos começam a significar pouco, ou quase nada! No entanto gosto de estar em casa. O tempo de juntar as coisas, de se deixar ficar. Nostálgica. O texto da Woolf exemplifica: “Debaixo desta cobertura amassada e tristonha o verde das couves parecia menos intenso, e a neve era de um branco sujo. Mas isto não era nada: logo se insinuou em todas as casas a umidade, o mais insidioso dos inimigos; pode evitar os raios solares com as persianas, e combater o gelo com um bom fogo na lareira; mas a umidade penetra furtivamente em nós enquanto dormimos; ela é silenciosa, imperceptível, ubíqua. A umidade incha a madeira, mofa as panelas, enferruja o ferro, apodrece a pedra. Ela age de maneira gradual que, quando levantamos uma arca ou um balde de carvão, eles se desfazem em pedaços, e nos damos conta que a doença já agiu.”

De repente, já aconteceu. A foto é pretexto para te escrever, ou ao contrário. Encontrei esta carta não enviada, e tenho outras em caixas, perdidas… Vou reunir, vou achar, vou selecionar. Vou voltar. Pensei em te mandar via computador, aliás, está lá… Mas teu e-mail ainda é o mesmo? Arrisco o correio. Gosto das cartas. Tu e o Rodrigo na tua casa de Torres. Pronto, comecei uma tarefa e terminei.

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As árvores se inclinam

Bom estares perto! Balanço perfeito. Reconforto. Procuro melhorar, entender, progredir. Escrever faz toda a diferença. Quero usufruir mais de tudo. Um tudo indefinido: livros, textos, conversas, amigos, filhos, netos, de cada hora do dia. Reagir agindo. Deixo escapar… Fica a palavra, o vago sentimento perdido. Quero agarrar. Somos incipientes, solitários. Assim mesmo povoados. O prazer pode, deve ser compartilhar, dizer, responder, pensar, ponderar. Quais são mesmo os verbos? Exercitar afetos. Escrevo sem impulso, estacionada, vou fatiando o dia. Assim, não respondi de imediato tua carta. Usufrui.

Aqui venta. Assobio torrense. Conversa de vento e sal, água. O cinzento do céu se mistura no acinzentado do mar. Acumulo saudade  como se fosse possível segurar o tempo. O apartamento da Rua José Picoral recheado… Lajotas vermelhas, sacadas festivas, janelas abrindo pra praia. O cheiro. O pai, a mãe, as crianças pequenas. Energia. Alegria inquieta. Bom sono. Retomada, encanto. Vozes. Não faço comparações, apenas quero tudo outra vez. As árvores se inclinam por aqui.