Sem resistir

Há qualquer coisa de misterioso para além da carne, irredutível pela carne. Talvez porque só se possui realmente dum ser aquilo de que se conseguiu impregná-lo, e o esforço que se faz para extrair da espessa crosta que é a carne, o mistério do espírito que procuramos, não consegue mais que levar-nos de volta à posse de nós mesmos. Só os amantes sabem que possuir é apenas uma palavra, e nisso consiste o desespero.” (p.35)
Presença de Anita – Mário Donato – Livraria José Olympio Editora S.A.

Peça de seda

Este é o primeiro parágrafo da novela Presença de Anita de Mário Donato. Que rede perfeita…

O ar cinzento e fino, a tarde lívida e seca, nenhum aceno na distância, a vida parada, o mundo ausente, assim. As histórias tinham os braços caídos e os lábios entreabertos, na mansa expectativa das coisas que é inevitável aconteçam, vindo de dentro para fora, num movimento vagaroso e sem reflexão, como o desdobrar-se duma peça de seda para o enxoval duma noiva cujo amado, ela não sabe, morrerá amanhã.”

Bons textos tocam música.

Farofa com banana

Camarões flambados, não, posta de congro. Champions, alcaparras, camarões ao molho, pirão.Siri na casca, limões… Cheque ou cartão? Nada. Filé com pimenta, com alho, ou Batatas? Fritas ou cozidas, melhor douradas. Que fome! Será que chega logo! E quente? É longe o Santo Antônio! E o Barranco? Aqui bem perto só  camarões. A Vivenda tem charme, mostra, explica, mas não aceita cartão na portaria, nem cheque praiano, então… Pois é. Carnes. Disco os números, converso, pergunto, interpelo. Nada. Nada funciona. Maquininha aqui em casa, não mesmo. Já sei. Supermercado: alface, brócolis, cenoura, tomates. Quem sabe palmito. Pão fresco. Um vinho. Limões. Água com bolinhas. Azeite. Que preguiça faminta! Não vou. Espero a fome passar. Pondero. Aperto a vontade. Sinto frio. Vou cozinhar. Inventar. Já sei. Farofa com banana, arroz com linguiça, tomate pelado, alho e rapidez. Bastante manteiga. A farinha de mandioca virando, revirando. Cheiroso! Aquele aroma de infância chegando. O almoço vem campeiro. Azeite e pimenta. Ovo estrelado. Sem tomate, sem alface, sem laranja, sem couve nem feijão. Queijo, goiabada. Um pedaço de pão. Azeite, pimenta… E a cerveja.

Deslocamentos e vagares

 

Escrever tem apelo, permanência, explicação e resposta. Se posso me inquietar com o que faço, por que faço, ou posso fazer… significa, escrevo. A resposta se estende, alonga, espreguiça. Apaixonar, entregar, mistificar, orar, acreditar, querer, rejeitar, estabelecer, ficar. Sorrir. Ou caminhar. Descrever. Abrir os olhos para olhar. É você a importância da presença. Deste silêncio que me importa. Livre me completo na ideia, desenho seu rosto. Vai ler, vai sorrir, vai compreender, ou vai me perguntar o motivo? Aguada resposta. Estar aqui ou ali, saber, esquecer. Isso Importa? Escreve, escreve. Prometo ler o livro, o rascunho, as laudas todas. Entra sem sair. Bebe o café, o copo d’água alternado. Mastiga devagar o gomo ardido.  Abre a caixa dos bombons.  Mais água. E volta para ler as cartas. Devagar, voltando, recomeçando… Folhas e folhas amontoadas, impressas. Manuscritas, bilhetes. Deslocamentos, lugares velhos. Cinzentos. Aqueles azuis, como as amoras.  Lembrança vermelha.  Estupefata! Música sorrateira de pássaros, ou de vento, chuva. Pode ser garoa. Estou/sou o concerto de sussurros. Se o piano atravessa a  sala, o dedilhado me acalma.  Enfiada na poltrona, contida no copo conhaque tricoto a manta arco-íris em ponto arroz.

Chove na lua de ontem

Desapontamento. Constatação. O que sabemos afinal sobre as pessoas? O que diabos sabemos sobre qualquer pessoa?  Descartável fruição. O imediato. Impossível descortinar a história enquanto se vive, não tem forma. Procissão incipiente de palavras e coisas. Se te vejo, ou revejo, imagino pressinto é no vazio, na ideia oca de querer te ver. Estranho átomo! Presente fugaz. Desejo, brilho, e tudo que sinto já não é mais. Vapor, sorriso. Amontoado de palavras que ficaram sentadas naquele sofá. Desacorçoadas, atentas, mas amolecidas. Lua cheia, risadas, e a voz solta costurada no fim de noite. O tempo não é externo – é interno. Chove na lua cheia de ontem. Elizabeth M.B.Mattos – Torres – setembro 2013

O passado volta

Ventania, um uivo. Árvores se dobram, a água da lagoa se agita crespa. Pelas frestas da janela entra o vento. A luz treme como se fosse apagar… Os aparelhos fora das tomadas, menos a geladeira.  A ventania entra no meu corpo. Como se a tempestade pudesse estar mais perto, e o vento mais forte. Não vejo o mar. Queria estar no meio de um tempo diferente… Nos dias mansos da fazenda, compridos, amigos. Cheiro de terra, feijão com arroz e batatas. No vento o silêncio da felicidade do abrigo. Acendia-se o fogo no galpão. As velas no entardecer.  O banho aquecido em tachos, e conversas misturadas com risadas. De concreto este galpão, chão de terra batida… E o galpão de concreto armado. E o dia seguinte, outro dia de fazeres. Café forte, chimarrão no vermelho do amanhecer. A cerca pequena entre casa, e campo. Cinamomos, eucaliptos. Açudes a serem feitos, as curvas de nível necessárias.  O risco do pomar.  Cartas, sesta, rede. E a labuta com bombachas.
O vento que sopra aqui chega lavado em Miguel Pereira. Vocês vestem os casacos, e se enroscam nas mantas azuis.  Aquecem a sopa, conversam baixo, enquanto a televisão discute com teu pai. A voz deste vento que grita assusta. Quero o Rio Grande do Sul, a casa perto do açude. O marido. Penso nas ovelhas, cães e frutas maduras. Engraçado! As tranças do casamento se torcem! E todos nós estamos de mãos dadas neste tempo de ser feliz! Todos! Os namorados perdidos, os maridos, os filhos deles, os nossos. Estamos protegidos no sonho desta luz de lembrança, e longe, aqui na serra carioca. O vento sopra forte.  Congela os dias.  O sono me agarra traiçoeiro.  Apago as velas, e conto aquela história de fazer vocês dormirem… A minha história. Elizabeth M.B. Mattos – 2013

 

 

Inverno no inverno

Porto Alegre. Cidade gelada. Inverno gelado. O gelado que se concentra na ponta do nariz, nos tornozelos, nas pontas dos dedos. A energia se concentra na boca do estomago: chocolate quente, chá, leite, café, sopa. Tempo das cobertas. Dos abraços apertados. Aconchego. As manhãs seguem sendo as melhores horas do dia. O almoço, a refeição mais longa, embora todo o prazer se concentre no café preto com pão e manteiga. Fruta, mel, pão quente, leite morno. E café preto. E notícias. Planos. Quando a cidade acorda estamos com a certeza de fazer… Caminhar. Aquela sensação de tempo espichado pela luz, sem sombra. A cidade me pertence, organizo os sentimentos enquanto levanto as cortinas, abro as gavetas, estico os lençóis. O movimento é conselheiro. Estou feliz, respiro. 

No caminho

Sentada diante da tela brilhante do computador penso o poema de Eduardo Alves da Costa

No caminho com Maiakovski.

Penso a repetição marcada dos versos que fazem/são música, e alertam. É terrível acordar amedrontada pelo fazer do outro que atropela. Difícil apagar o sentimento covarde. Eu cedo ao grito que surpreende, ao imutável trivial reprimido. Ao verdadeiro escondido. Desejo apertado, e logo já não é mais. Sei que não devia ser/fazer assim, mas não digo nada. Silêncio permissivo, opressor. E já sem coragem, eu me escondo. Esvaziada me acostumo a tanta coisa proibida, a tanto desejo fatiado, tanta explosão desnecessária! E o passo/andar/ caminhar estancam. Estou no quarto pequeno esquecido. Sem memória cinzenta ou azul. Esqueço de querer, de lutar, de desejar. Abstraída, retraída, lenta. Medrosa. A massa humana conduz, e a mesmice regulada. E deste tempo passado já não consigo mudar nada.Elizabeth M.B. Mattos – setembro de 2013 – Torres

No caminho com Maiakovski

“[…] Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[…]”

 

POETA

Não acabarão nunca com o amor

“Não acabarão nunca com o amor, nem as rusgas, nem a distância. Está provado, pensado, verificado. Aqui levanto solene minha estrofe de mil dedos e faço juramento: Amo firme, fiel e verdadeiramente.”

Vladimir Maiakovski

maiak

maiakóviski-foto

“Vladimir Vladimirovitch Mayakovsky (em russo: Владимир Владимирович Маяковский; (★ 19 de Julho de 1893Baghdati – † 14 de Abril de 1930Moscou) foi um poetadramaturgo e teórico russo, frequentemente citado como um dos maiores poetas do século XX, ao lado de Ezra Pound e T.S. Eliot, bem como “o maior poeta do futurismo“. Wikipédia

ACERTOS

13 de setembro 2013, sexta-feira de calor, muito calor! Se apertam as estações. A primavera se esconde… Penso. Se eu pudesse apenas conviver com acertos, encontros, risadas somando certezas, seria fácil. Estou curvada, pronta para abrir a última caixa. Pedras azuis.  Apoio a cabeça no inalterável: nasci. Sou parte deste fluxo, deste mar. E a onda vai quebrar nas pedras, ou se desmanchar na areia, isto é eterno. Seguirei acertando, ou errando. Opções. Serei vista pela maneira como as faço, ou deixo de fazer… Queria mesmo é começar de novo, tornar a ser criança e reviver quem eu era com toda a sabedoria que só uma criança inocente pode ter. Queria ser o que fui antes de me ensinarem como é a vida. Encher as mãos com amoras azuis. Lambuzar os dedos, os braços. E com o vestido já pintado de azul correr em direção ao mar, banhar-me, e saciar esta fome incerta. Transformar  escolhas em seguidos acertos.