Sem nenhum sentido

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Fui reler cartas que te escrevi…  As mesmas e repetidas histórias de abandono, de beleza, e de silêncio velado, como criança que se faz aparecer, e depois envergonha. Neuroses não curadas, o meio fato, ou a meia verdade. O mesmo passado num ensaio repetido sem que exista o definitivo. Escrita circular.  A mesma história desorganizada, sem desfecho, sem sentido. Infinitas vezes contada, e se interrompe no mesmo ponto… Colorido difuso, sem desenho. Sem consistência. Olhada do lado avesso, ou do direito, pelos lados, mas inconclusa. E me surpreendi com este emaranhado de lembranças. Sim deveria ser organizada, objetiva. E o inconstante vem junto neste modelo inacabado… E faz muito tempo alguém me disse que se lesse uma carta minha de 50 anos atrás, ou 45 anos atrás ou da semana passada, ou 20 anos ou um mês seria a mesma coisa. O mesmo interrompido e lamuriento fato. Será viver uma insistência enlouquecida de dizer, gritar e nunca compreender? Elizabeth M.B. Mattos – 2016 – Torres

Do caminho cruzado

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Cruzado amor não vê aberto o caminho. Espero. Conversa espichada. Livros se espalham pelo chão.  Atalho seguro. Malditas escolhas cruzadas! A conversa colorida do tapete…Vou mexer pintar com teus pincéis, e ler as cartas de Van Gogh para Théo.

Explicar me aborrece. Ociosidade. E esta é outra prova daquilo que quero dizer. Explicar é sempre dar significado a um fato, um objeto, um sistema de ideias, uma convicção, uma comprovação. Justamente o que deixei para trás. Agora sinto que nada interessa enquanto explicação; interessa apenas a explicação, porque esta nos devolve o fato e o fato, ao objeto, etcétera. Horror as mediações. Uma cadeia: Fulano gosta de um livro sobre Cézanne, porque gosta de Cézanne, que gostava de pintura! Como Fulano está longe da pintura!”    Júlio Cortázar Diário de Andrés Fava, (p.53-54)

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Não consigo dormir

Não consigo dormir

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada na minha garganta. ”

O diagnóstico e a terapêutica

O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos, noite após noite pelos abraços, ou pelas ausências de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma necessidade de dizer estupidezes. O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá – lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia  e tudo” (p. 90-91)

O Livro dos Abraços,  Eduardo Galeano

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A Flor da Inglaterra

O livro só poderia ser mais perfeito se eu estivesse lendo em inglês, mas esta é uma edição Companhia das Letras, 2007.

A leitura se mistura  a um determinado período da minha vida: pessoa …, considerações. Experiência, frustração, limitação. Por que esperei tanto para ler?

Preciso pegar a mala, e ir ao seu/teu encontro. Estou, agora,  em completa tristeza, e não sei explicar….. Elizabeth M.B. Mattos – Torres 2016

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A Flor da Inglaterra

” Talvez devesse mesmo trabalhar, pelo menos por algum tempo. Remexeu na pilha de papéis. Onde estava aquele trecho que tinha revisto na véspera? O poema ia ser imensamente longo – ou melhor, iria ser imensamente longo quando ficasse pronto -, dois mil versos, mais ou menos, em rima real, descrevendo um dia em Londres. Prazeres de Londres era o título. Um projeto enorme e ambicioso – o tipo de coisa que só devia ser tentada por gente que dispusesse de um infinito tempo livre. […]  . As ocasiões em que ele não conseguia trabalhar eram cada vez mais frequentes. De todos os tipos de ser humano, só o artista afirma que não consegue trabalhar. Mas ainda assim é verdade; existem mesmo ocasiões em que não se consegue. O dinheiro, novamente, sempre o dinheiro! A falta de dinheiro significa desconforto, preocupações mesquinhas, escassez de tabaco, uma permanente consciência do fracasso – e, acima de tudo, significa solidão. Como alguém pode deixar de ser solitário ganhando duas libras por semana? E na solidão nunca nenhum livro descente foi escrito. Não havia dúvida de que Prazeres de Londres jamais seria o poema que ele imaginara – e não havia dúvida, tampouco, de que jamais ficaria pronto. ” (p.45)

GEORGE ORWELL      A flor da Inglaterra

Como ilustra Elizabeth Barrett Ele diz tantas verdades cotidianas. A escassez material é uma droga e enfeia tanto as nossas vidas. Com ele não há enfeite, nem quando descreve o presente ou quando prevê o futuro da humanidade.

 

Nossa conversa …

Voltou o sol. As calçadas estão possíveis, e as pessoas abrem janelas e se animam. Vou mentalizando o que pretendo te dizer e vou construindo enormes parágrafos como se pudesse lembrar vinte minutos depois …. Esqueço. E na rotina já estou envolvida a limpar isso e aquilo. Quero acordar a vontade de reciclar, renovar, mas me vejo apegada, rastejando os olhos pelo apartamento sem me desfazer de nada, amontoo. E o que deveria ser não apenas iluminado, aberto, espaçoso e agradável fica superlotado de lembranças. Há qualquer coisa no ar, na memória nos pequenos e grandes desencontros… Um ranço que não sei definir. No entanto, meu amigo, sei que temos aquela afinidade da palavra, da ideia, do fluxo sei lá bem o que é. Nossa conversa se mistura como se fosse uma hera invasora que sobe muros, árvores e se esparrama perdida, sem começo, e acaba apenas suspensa cheia de vontades e perguntas ansiosas.

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Onde estás? Quero retomar a fala, e os resmungos também. Sigo amorando, mas muito menos do que gostaria. Os dias são pequenos dentro da rotina de levantar fazer o café varrer aspirar polir aqui e ali e sair. Abrir um livro, fazer uma citação, olhar fotos, abrir e fechar caixas. Ir de uma janela para outra. Sonhar. Pensar: onde estás? Por que deixamos de ser apenas nós para nos impor uma representação teatral, não fosse saber que estamos sempre nesta exposição enlouquecida que é viver. Eu te penso. O dia amanheceu mais claro depois de chover cinzento, enfiado a trovejar por três dias e três noites…. Viajo pelas estantes limpando livros, separando os que não lerei, os que vou doar, os que vou esquecer, mas também separo aqueles que, possivelmente, vou reler se tempo houver…  Circular e misteriosa relação. Elizabeth M. B. Mattos  –  outubro de 2016 Torres

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A verdadeira pátria

“A verdadeira pátria do homem não é o orbe puro que subjugou Platão. Sua verdadeira pátria, à qual sempre regressa ao fim de seus périplos ideais, é esta região intermediária e terrena da alma, este dilacerado território em que vivemos , amamos e sofremos e, em um tempo de crise total, somente a arte pode expressar a angústia e o desespero do homem, pois, diferentemente de todas as demais atividades do pensamento, é a única que capta a totalidade de seu espírito, especialmente nas grandes ficções que conseguem adentrar o âmbito sagrado da poesia. A criação é essa parte do sentido que conquistamos em tensão com a imensidão do caos. ‘Não há ninguém que tenha alguma vez escrito, pintado, esculpido, moldado, construído, inventado, a não ser para sair do seu inferno.’ Absoluta  verdade, querido, admirado e sofrido Artaud.” (p.69)

ANTES DO FIMErnesto Sábato

Outra vez Simone e as fotos

A chuva parou. Parece. As árvores  imóveis. Talvez aconteça de se sacudirem mais tarde. Talvez chova outra vez muito e bastante. As buganvileas estão lavadas e floridas. Eu me agarrei nas velhas leituras, e na limpeza.  Lavo, tiro o pó, lustro. Empilho. E sinto o cheiro do papel que me excita. Os livros me esperam  espalhados, prioridade número um, desfazer-me dos que não vou ler, dos que deixaram de ser, dos que … já estão esquecidos. Guardar os amados, os lidos, e os que lerei. Talvez. Espaço.Limpeza. Depois vou eu mesma pintar as pareces. Renovar o estofado dos sofás, e depois vou ficar bem quieta para não gastar. E também vou comer salada, muita salada, e frutas como a Magda me explicou. Pode ser que emagreça… Ou talvez  abra um café livraria, e coloque o som do piano na eletrola, ou Jacques  Brel cantando. E fico atrás do pequeno balcão para descobrir quantos cafés posso vender numa tarde. A Ana Maria vai trazer pão integral feito por ela, a Joana o maravilhoso bolo de laranja. Pedro prepara os sanduíches, e a Luíza serve as mesas com aquele sorriso largo, e faz as contas.

Das arrumações de armários juntei duas caixas de louças, talheres e sonhos para doações. Agora vou aprender o que é viver com Simone … ler e cantar, mas certamente, vou amar. Tenho paixões inexplicáveis. “…minha vida em seus impulsos, suas depressões, seus sobressaltos, minha vida que tenta dizer-se, e não servir de pretexto a ademanes.”

Vou me molhar outra vez se a chuva não parar nesta quarta-feira de prender o  Eduardo Cunha… Trovejou, trovejou. Choveu. E fiquei com os cabelos colados no rosto porque Ônix e eu caminhamos na chuva.

“Mais uma vez, cortarei o mínimo possível. Espanta – me sempre que se reprove um memorialista por se estender; se ele me interessa, irei segui -lo durante volumes; se me aborrece, dez páginas já são demais. a cor de um céu, o gosto de uma fruta, não os sublinho por complacência para comigo mesma; ao contar a vida de outra pessoa, eu anotaria com a mesma abundância, se os conhecesse, aqueles detalhes que se dizem triviais. Não  só  é   por meio  deles  que sentimos  uma  época e uma pessoa em carne e osso, mas,  por  sua não significância,  eles são, numa história verídica, a própria marca de verdade; nada indicam além deles próprios, e a única razão de evidenciá -los é o fato de estarem ali: isso basta.”

“[ …] tenho mais prazer em me descobrir do que em me lisonjear, pois meu gosto pela verdade ganha, de longe, das preocupações que tenho com a minha pessoa: esse mesmo gosto explica – se pela minha história, e não me vanglorio.

“Um comunista ou  gaulista contariam de outro modo esses anos; e também um operário, um camponês, um coronel, uma Elizabeth Mattos, ou um músico. Mas minhas opiniões, convicções, perspectivas, interesses, compromissos, estão declarados: fazem parte do testemunho que dou a partir deles. Sou objetiva, evidentemente, na medida em que minha objetividade me envolve.”(p.6-7)

A força das Coisas Simone de Beauvoir

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Projeto de

Projeto de escrita, de memória, uma história.

  1. É no avesso das barras, das famosas bainhas que se esconde a perfeição, o bem feito da costura, o verdadeiro bordado… O cimento, a argamassa no bem feito avesso da pintura na parede de uma casa. Este avesso escondido, o detalhe prefeito, o bem feito…
  2. Em toda a curta e medida palavra, o ponto inteiro. Toda a verdade entre dois pontos. A palavra é o mínimo, o menor texto dos textos sem derramada explicação. Sem assertiva nem desvios, ou curvas. A palavra virada em poema.

Fosse qual fosse a precisão dos detalhes verdadeiros ou falsos que se pudesse vir a acrescentar ao que já é …. Penso.  Ironia, emoção, aridez ou paixão ….  Posso ver no teu olhar, meu menino, os fantasmas e as fabulações.

É um sem fim entre a sinceridade de uma fala e o artificio da escrita a erguer uma muralha. Eu sei.  E afinal, lembrar é como E M B A L A R

bala perdida, bala achada, bala doce como mel, que não vem do fel, e sim da rima. Escrever brinca e brinda.

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Passeio e chuvisco

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Passeio e chuvisco. Um dia, ou foram dois ou três com chuva chuva chuva e trovoadas? Cinzento de manhã cinzento de tarde, e sem a lua prometida…

Ônix de roupa cirúrgica, mas faceira, eu sem guarda-chuva fomos passear. Já parando de molhar, molhando só pouquinho…, até a praça. Estranheza das poças na calçada. Agora o ventão!

E já tem alegria enfeitando minha casa.