emaranhado

Deve haver a hora verdade do real emaranhado ficcional de fantasmas vivos, ou príncipes carrascos ou heróis sem causa, ou causa de amor esfacelado, imbatível, invencível, os mortos. Deve haver. Em algum ponto existe fato / verdade / olhos azuis ou castanhos ou verdes ou enfeitiçadores e sedutores: um olhar, meia dúzia de apressadas e professorais mensagens amorosas e picantes. Insinuante  ou dolorosa vacina contra tudo e contra todos. Engasgada estória a se contar enfeitiçada pelos olhos ausentes ansiosos e brejeiros, a me desnudar. Passados anos desta virgindade aprisionada sou seduzida pelo encanto desperdiçado juvenil, audacioso e sem raízes…  Hoje te escrevi outra longa carta. Selei e enviei para Caixa Postal número 17. Adoro correspondência sigilosa manipulada por mil olhos e mãos, como são as telegráficas. Sei que abres a correspondência ali mesmo no correio. Ou atravessas a praça para te sentar na mesa daquele café e fumar um cigarro, (não devias fumar, nem beber). Então te deixas ficar na graça desta história inventada, e destes sentimentos escabelados que me fazem entrar na SAPT percorrer nossa infância, dançar nossa meninice embalar a juventude. Caminhar pelas pedras e ainda sentir o cheiro de criança que as nossas risadas nos davam…  Fazer telefone sem fio, jogar paciência e conversa para todos os lados. Beber guaraná, comer empadas e deixar a tarde escorrer nas chuvaradas de verão. Esta lembrança tem a brejeirice de uma saudade vencida exausta de termos pela frente todas as possíveis possibilidades num jogo infinito de combinações. Éramos nós. Eras tu, sou eu distraída, com aquele olhar perdido, porque afinal, nunca tocaste no meu braço, nunca falaste comigo, te dás conta? Agora velha, com os pedaços costurados em boas lembranças, atrapalhada com velhos e presentes sentimentos amarrotados. Claro! Tens razão! Não faria diferença, explodiria o desejo num olhar vago de velha senhora, e ficaríamos os dois a nos perguntar por quê? Digo velha senhora e não senhor… Porque aos homens é dado um grisalho, um poder de envelhecer diferente das mulheres, não sei se mais poderoso, mas eles ficam estacionados num caminhar justificado. As mulheres perseguem beleza esbelteza. Roupas bonitas, bem-postas, cabelos pintados, penteados, no lugar certo. O batom, o salto alto, o perfume e os colares de pérolas a enfeitar. Os xales cobrindo os ombros magros. Elegância escondida na velha beleza. Ser mulher é beber o chá, fazer bolo, conversar com as amigas ao telefone, acertar no tricotar ou saber tudo da Bolsa de Valores, de ganhar dinheiro, ter filhos embalados e netos sorridentes. Um bom negócio, bons funcionários, bom marido. Independência. E teclar ansiosa ou escorregar… Elizabeth M.B. Mattos – maio de 2019 – Torres: não consigo te largar, mas te juro, não quero te ver, porque sou toda ao contrário, ao avesso da mulher que um dia tu sonhaste / desejaste ou seduziste com estórias reais e sigilosas, verdadeiras ou fantasiadas num jogo colorido e poderoso.

SAPT – Sociedade Amigos da Praia de Torres – na rua José Picoral. Um prédio antigo, também com apartamentos. Tinha restaurante, cinema, uma boite para adultos (acima de 15 anos, eu acho) Marisco e a Tatuíra para as crianças. Fazíamos roda e um menino e uma menina dançavam no centro da roda. Tinha uma votação para Rainha da SAPT e Rainha da Tatuíra. Cada ida ao cinema recebíamos um cédula para votação, no dia do aniversário da SAPT coroavam a Rainha.Ganhei no ano que Ivo Rizzo foi presidente. Na Tatuíra fui princesa duas vezes, uma vez perdi pra Beatriz Paiva que foi a Rainha. Esta acontecia tudo no mesmo dia. Os votos eram nominais. O Presidente ia anotando. Cheguei atrasada. Lembro do vestido xadrezinho de verde e branco que eu estava. No grande salão tinham mesas com cadeiras de assento de palha: jogávamos cartas. Como evento tb promovido pela SAPT uma gincana. Era fantástico. Tempo dos cavalos na Praça lá de baio, e dos cabritinhos, carrocinhas que levavam as crianças para a praia. O golf era no morro da Guarita. E no outro um Farol de Metal, não antenas. E o Farol Hotel era referência. Mais tarde fizeram o anexo. E artistas como Roberto Carlos Elis Regina passaram por aqui.

 

e nós…

Da autobiografia: 29/05/2019 17:53 – Torres / Rio Grande do Sul, longe do Rio de Janeiro, e por que não em São Paulo? Montevidéu. Buenos Aires. Bariloche e nós. Não era ambicioso, mas juventude. Se penso lembro que não pensava …

Comprava livros: logo formamos uma pequena biblioteca importante: anotada e pesquisada por ele, os necessários, melhores e importantes autores. E comíamos boas massas italianas. Eu enfiada na cama lendo. Ou na frente do fogo embaixo daquelas mantas enxadrezadas e macias. Revistas também me alegravam. Às vezes, Marco se ausentava em viagens mais longas, importantes. Providenciou meu passaporte, queria que eu fosse a Itália, nunca fui. Preguiçosa para viagens eu me deixava ficar enfiada em casa. Uma vez me trouxe uma bandeja de cerejas naturais/ frescas de Modena. De Milão uma saia de veludo marrom… Ele me queria princesa. E o que comprava era como se fossem luvas de pelica perfeitas. Original. Delicado. Eu andava de bicicleta, passeava pelas redondezas esperando sua volta, plebeia. Marco cozinhava massas maravilhosas. Trazia queijos especiais e pequenas delícias nas malas e massas de vários tipos. O vinho, o melhor. Nossas pequenas viagens eram a Buenos Aires, Bariloche no verão com os lagos e a floresta, ou a neve do inverno, pequenos e gostosos dias de férias. O melhor era estar em casa. Mesa simples. O pão importava. Éramos italianos. As frutas? Todas. A casa, dois pisos em Carrasco. O leite a manteiga a carne uruguaia. Jovens e glutões, dois magrelas apaixonados.  Pequeno jardim cuidado. Flores sempre. E a lareira acesa. E aprendi o gosto de pequenas delícias. Uma vez fui a Punta del Leste de moto e chegamos no Floreal despenteados irreverentes e alegres. Paolo, vice-cônsul, ousou a velocidade, e eu fui, Marco nos seguiu de carro cauteloso, circunspecto. Era tão fácil respirar!

Nos conhecemos no Rio de Janeiro, ele morava num belíssimo apartamento em Ipanema na Prudente de Morais. Todos os meus colegas da Aliança Francesa tinham ido esquiar, eu não. Era a festa-confraternização do retorno. Alguém foi me buscar, depois da faculdade. Lembro da minha roupa, das músicas, das conversas. Nunca mais nos deixamos / foi para sempre. Ninguém larga o amor ou deixa passar ou espera o que imagina ser a hora / o momento certo. A vida é agora, neste minuto eu vivo. Um constante agora importante / belo e cheio de novas histórias. Claro! Não estamos eternamente apaixonados. As ausências nos estranham com lágrimas e segredos, mas, assim mesmo, estamos / somos vivos e completos e novos e outros e prontos e, principalmente, alegres. Escolhas. O outro não é o mais importante, o mais importante somos nós mesmos. Eu fui jovem … Livre. Alegre. E esta moça jovem sempre teve três filhos. (É assim minha memória, completamente maternal, mesmo longe eu era mãe, e me dizia: três filhos alegres felizes e bonitos porque amados). Sempre tive filhos. Engraçado quando penso sobre isso. Casei cedo e deu tudo errado, ou tudo certo porque eu tenho estes filhos. E aquela família foi mesquinha, pequena, vaidosa e quis me tomar tudo, até as crianças, mas não conseguiram. Graças! Nunca precisei de nada deles, nada. Absolutamente nada. Nem minhas crianças precisaram. Tive um pai e uma mãe especiais que me cuidaram, não tomei conta sozinha. E sempre tive Torres. Sempre voltei para casa. Tudo fiz depois de me separar: viajar, apaixonar, vestir Armani, Faculdade, francês, hotéis de muitas estrelas, sedas e veludos, cerejas e especiarias, não muito longe, porque temos o Uruguai e a Argentina tão perto, e naquela época, o mundo estava em paz e dançava melhor a valsa.  No Rio nos hospedávamos no Sheraton Hotel com aquele pedaço de mar particular Na Lagoa Rodrigo de Freitas, os melhores restaurantes. Dançamos no Balaio, Copacabana Palace (aliás, Marco não sabia dançar). Uma charmosa livraria francesa ali perto … Tempo de falar francês escutar italiano e entender espanhol. Sempre com os olhos espichados nas crianças.  Não fui a melhor mãe, nem a pior. Tudo natural. Eu tinha alegres vinte e cinco/seis anos. E a mãe e o pai sempre no Rio de Janeiro administrando minha juventude e a casa. Marco passou no Sul uma daquelas festas natalinas na casa da irmã. Luxuosos e festivos natais ela sabia preparar na casa de Ipanema: e a nostalgia, imediatamente, se transformava em festa com guizos flores frutas e bom gosto. Ser jovem veste leveza descontração, não tem juízo nem cautela porque tudo é de pureza juvenil. Tempo de sorrir. A gravidez um coroamento de beleza. Que todas as mães sejam jovens belas e livres e felizes. A maternidade tem gosto do eterno. Não tive um filho com o Marco. Teria olhos azuis o nosso bebê. E nunca mais teríamos nos largado / separado. Era justo que tivesse um filho, um casamento triunfal com direito a igreja e …  Eu me sentia impotente, este presente-fantasia-vida eu nunca poderia lhe dar. Ele não imaginava /  não sabia que um dia ia querer / desejar / sonhar um filho. (Casou e teve três. Um menino loiro com olhos azuis, e duas meninas, este menino, certamente, é o nosso, e mora na Austrália, não sei se ainda pertence ao quadro de engenheiros da GTE, nem se a empresa existe com este nome). Talvez eu tenha me equivocado. Talvez pudéssemos ter tido o nosso e os meus. Talvez eu tenha errado, mas viver não é assim mesmo? Um amontoado de equívocos / enganos / desencontros / encontros / abraços / beijos e despedidas? Foram quatro ou cinco anos de tanta alegria! Tanta surpresa florida! Quando terminei a faculdade, o último dia, o da formatura mesmo, entro em casa esfogueada e acesa, e meu pequeno apartamento era um jardim: rosas jasmins e flores coloridas por todos os lados. Uma festa de perfume, não vou esquecer. Guardo o cartão presente e gentil. Acho que todos os italianos devem ser galantes, elegantes educados, apaixonados. Loiros, os que nasceram em Modena. Elizabeth M. B. Mattos – maio de 2019

Marco

Syzy Menezes Estrela e os filhos, Marco e  eu

Sem Título-16

Porgy and Bess de Miles Davis – escutar boa música! o tempo volta sempre que adormeço.

última palavra

Leitura de bom livro, genial autor. Impacto / medo e perplexidade. Terminei Passo de Caranguejo -, demorei a ler as 205 páginas. Espanto / susto a cada impasse. Curso intensivo de emoções – problema indissolúvel: ser pessoa, ser humano, ser gente e estar no palco a representar o mesmo texto. Sempre o mesmo a ser interpretado. Representar. Surpresa! Em verdade, as coisas não se repetem, as coisas permanecem iguais, e as mesmas. Não importa o que se possa fazer para mudar / melhorar / representar melhor, ou pior / forjar… Ficam iguais o tempo todo, não importam os anos nem o empenho. Fica igual o tempo todo, apenas não se sabe / não se tem consciência desde arremedo nem se consegue identificar o momento exato em que se petrificaram / estratificaram! Não conseguiremos ser melhores, nem piores, somos os mesmos!

Eu não mudei / não melhorei, nem piorei. Sou a mesma menina que um dia descreveste tão bem!

É uma farsa… e qualquer tentativa de fugir / representar / inventar, inviável! Somos a mesma metamorfose de nós mesmos. (Peço desculpas por usar a primeira pessoa do plural, não a primeira do singular, o eu. Ou misturar tudo. Não posso julgar o outro, sou eu que vejo assim… a mesma pedra a ser carregada, o mesmo engano, a mesma dúvida! A mesma representação.) Elizabeth M.B. Mattos – maio de 2019  depois e ainda com Günter Grass, volto para terminar O Linguado com a celebração da comida, do sexo e da vida, com vontade de ler O Tambor.

Ela só quer é se ver sempre confirmada, unicamente ela. Aquilo que não lhe diz respeito fica proibido. Mas a arte, meu filho, não se deixa proibir.” (p.52) Günter Grass O Linguado

Só conseguimos enxergar aquilo que enxergamos.

Cada frase merece um longo texto: não temos, em absoluto, condições de justificar/explicar o que se passa na cabeça/na ideia/ no querer/ na vontade do outro. E no que ele seguirá pensando depois deste fato x ou daquele fato y. A cabeça é o grande e poderoso cofre que guarda/retem/ explora o que apenas ela conhece, todos outros elementos são alienígenas, ‘destampar o crânio’ não o tornará claro/lógico ou compreensível. Somos desconhecidos. A magia o fantástico deste mistério apenas o beijo desvenda. Elizabeth M.B. Mattos – maio de 2019 – Torres . Tenho certeza que ao nos olharmos e nos abraçarmos e nos beijarmos compreenderemos / entenderemos e nos teremos, por inteiro, e naturalmente, desnudos.

Ninguém sabe o que ele pensou e continua pensando. Todas as frontes represam os pensamentos, não só a dele. Zona proibida. Terra de Ninguém para os caçadores de palavras. É inútil destapar o crânio. Além disso, ninguém pronuncia aquilo que pensa. E quem tenta fazê – lo acaba mentindo na primeira metade da frase. Frases que começam assim co ‘Ele pensou naquele momento…’ ou ‘Seus pensamentos diziam…’nunca passaram de muletas. Nada encerra melhor do que uma cabeça. Até a tortura mais extrema não produz confissões completas. Sim, mesmo no segundo da morte pode – se trapacear com os pensamentos. […] Só conseguimos enxergar aquilo que enxergamos. A superfície não diz tudo, mas diz o bastante. Portanto, nada de pensamentos, e também nada de refletir sobre eles depois do fato consumado. E assim, poupando as palavras, chegaremos ao final mais depressa.” (p.189-190) Günter Grass Passo de Caranguejo

Cada frase merece um longo texto: não temos, em absoluto, condições de justificar/explicar o que se passa na cabeça/na ideia/ no querer/ na vontade do outro.

fora do lugar

Estranho efeito desordem no espelho: tudo fora do lugar num descuido completo e preguiçoso. Dia azul verde  enrolado no xadrez  do xale macio. Os pés em meias de lá e a pele macia  e doce. E.M.B. Mattos – maio de 2019 – Torres

incondicionalmente

Amo você desde os meus 13 anos, quando vi pela primeira vez sua mão deslizar sobre a folha de papel. Amo você de todas as formas que minha imaginação pode conceber. Desejo você tão profundamente que meu corpo canta de dor e prazer. Você tem sido minha obsessão, minha paixão, minha pedra filosofal. Eu o amo incondicionalmente.

eueueeueu

E não importa o obscuro do que possa ser antes de ter te encontrado/tocado e olhado o teu olhar curioso no corredor entre a entrada da Boite Marisco e a saída do cinema… Naquelas saídas e entradas a teia se fez aos sussurros do impossível. Jogávamos cartas, comíamos cachorro-quente e tomávamos coca-cola. Íamos a sessão de matinée.Tínhamos os banhos de mar na paia grande, as canchas, mas não íamos para a Guarita.

Não compreendo como nunca dançamos! Nem nos sentamos um frente ao outro. Levamos tanto tempo para entender o amor!  Eu errando, distraída, longe, e tu perto. Tinhas que ter colocado a mão no meu ombro e me acordado. Tão perto estivemos e tão desesperadamente solitários! Elizabeth M.B. Mattos – maio de 2019 – Torres

carta doiscarta r333333carta.jpg

 

“Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?” Guimarães Rosa

A vida nos traz luzes que servem de apertos e alertas. Afasta quem de verdade importa por simples capricho de um ou de outro, até de estranhos… Depois, não importa mais. Fuga… A morte branca… Nunca deveria ter me calado quando tu te calaste a inventar motivos fraternos. Uma omissão imperdoável…Elizabeth M.B. Mattos – maio de 2019 – Torres “Coração da gente – o escuro, escuros.” Como diz a Mabel, para não ter dúvidas, coloca itálico e entre aspas, cita o autor e suspira.

facho de luz

O que é a consciência senão o facho de luz de uma lanterna na noite escura, sem estrela?Tem dias que o tempo pesa mais do que outros…

Envelheço.

Sinto o corpo sem frescor: rugas no rosto, esquisitos traços. Veias nas mãos, na pele, o tempo dos anos desenhado. Ninguém tira a solidão do outro!

O especial do encontro com o amor, e o difícil é a morte. Tempo indefinido, absoluto. E um dia tão velha, no outro, menina. Juventude a gritar e festejar, e… E assim mesmo, envelhecemos. Muito tempo, bastante tempo para viver! Nunca o suficiente! Elizabeth M.B. Mattos – maio de 2019 – Torres