Luiza Domingues

“Noite

Se um dia eu não fosse mais nada,
Se um dia eu não fosse mais sonho,
Se fosse esquecida no tempo,
Se não houvesse mais corpo para gerar calor,
Se nada mais me saísse das ventas,
Aí então não haveria mais drama, não haveria desejo.
E, sem medo nem zelo,
Sem cuidado e sem pudor,
Minha morte teria chegado.
Minha pele se encontraria enrijecida sob a terra fria,
E minhas mãos não mais serviriam para afagar. 

Recife
Julho de 2014

Luiza Mattos Domingues

 

LUIZA no tempo

Lu e Valentin

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A mesma

Agito, tumulto, mas tudo no mesmo lugar. Ontem. Hoje me deixei ficar para ordenar o que ficou para trás,  tantas idas…, nenhum lugar seguro. Sentimento estranho: partido afeto. O mesmo lugar, o certo. Então, a massa corpórea se alarga, mas permanece, estranhamente,  a mesma. A beleza deve estar lá resguardada, e, se lágrima houver será a mesma… (diferente, nunca a mesma como escreve Alexandre, mas… motivo, o mesmo). Pequena/ou grande lembrança: a memória. Angústia nova misturada a mais antiga. Outra. Diferente.  A mesma. Vontade de ter/ver/conquistar o melhor da colheita… No entanto, tudo está restrito ao horizonte do oitavo andar. Claro que já borboleteei por lojas, e comprei outono. Calças leves, blusas bem soltas. Hoje o frio se apresenta definitivo, circunspecto. Boa chuva, bastante chuva, ventania, e raios. Depois aquele cinzento riscado, meio iluminado. Gosto. Gosto muito. Como se a infância voltasse…Longos invernos, fogo nas lareiras, e a gostosa sensação de permanência, de aconchego. O  gosto de longa/prolongada infância: sonho, certeza concreta como chocolate quente, morangos, ou a boneca desejada.  Olhar pela janela! Dou-me conta que este jeito que me toma o corpo, a alma, sempre foram meus. Acrescido de novas amarras afetivas. A soma de novos, com velhos afetos parece excesso. O excesso minimiza o real. Aquieto inquietude. Não, sou apenas eu mesma, mais consciente, mas a mesma. Sou como sou, dividida. Aberta ao teu olhar, teu abraço, e assim mesmo esquiva. Transbordo confissão doméstica, interpretação. Risível. Não conserto. O estrago está feito. Eu, a mesma. Elizabeth M.B. Mattos  – Risca do Céu, 24 de julho de 2014, não tão longe! Porto Alegre –

 

Convergência

Amor, sentimento desavisado, ingênuo, inconsciente. Arrebatamento fulminante. Pouco a pouco, a verdadeira forma. Positivo ou negativo? Surpresas pipocam, boas ou ruins, todas desavisadas. O sentimento se desvia no desencontro. Afinal, o que é mesmo que chamamos de amor? Convergências? Beth M.B. Mattos – Porto Alegre – 2014

Onda gelada

O frio, a onda gelada que se acomoda no céu, escreve cinza. Riscados da chuva contínua afirmam, – inverno.  Há dois dias caminhei verão pelas calçadas. Suco gelado. Os humores da terra consoantes aos nossos. Mutantes, volúveis, incompreensíveis. 

Impertinência

Necessário e primitivo silêncio. Quietude, uma dádiva. Impertinência. Interrupção. Melindres. Rotina, continuidade. Comodidade. Idade. Há que se pensar, duvidar, esperar, ouvir. No tédio, o fluxo se constrange com excessos. Atravessar buzinas, vozes. Desviar, acelerar, cuidar, fazer, correr. E o menino se encolhe aflito. A futilidade se transforma em exigente prioridade. Atropelo as calçadas. Abusiva correria. A negligência se acomoda na mesa do chá, durante o almoço, sente preguiça no entardecer. Boceja. Desperta, à noite, acesa em novidade.  Sessão de cinema urgente. Espetáculo, vitrines… Delicias, iguarias. O verbo comprar se conjuga sem concordância. Impaciência sem hábito, equívocos. A gaveta se ressente apertada. Qual era a cor daquela blusa? O telefone tocou duas vezes até cair a ligação. O bolo, o doce, a salada, o vinho, os queijos reclamam. Pequeno mal estar impiedoso, maligno. Frívolo, e inexplicável. Poeira, gavetas, estantes, tesouras, cadernos, cobertores, toalhas, xícaras. Sequencia eloquente. Impertinência… Elizabeth M.B. Mattos –  julho -2014 – Porto Alegre

Jean-Paul Sartre

“Na verdade, o escritor sabe que fala a liberdades atoladas, mascaradas, indisponíveis; sua própria liberdade não é assim tão pura, é preciso que ele a limpe; é também para limpá-la que ele escreve. É perigosamente fácil ir logo falando de valores eternos: os valores eternos são muito descarnados. A própria liberdade parece um galho seco: tal como o mar, ela sempre recomeça; não é nada mais do que o movimento pelo qual perpetuamente nos desprendemos e nos libertamos.”

(Que é a literatura, Jean-Paul Sartre

“A leitura é um exercício de generosidade; aquilo que o escritor pede ao leitor não é aplicação de uma liberdade abstrata, mas a doação de toda a sua pessoa, com suas paixões, suas prevenções, suas simpatias, seu temperamento sexual, sua escala de valores.”

O mapa

A procura do perdido. Pequeno sucesso no encontro. Óculos. Um carnê, o creme, o livro, aquela anotação, a fita durex, a tesoura, sem mencionar velhas fotografias. Tesouro a ser descoberto em  caixas. Gavetas sumidouros, prateleiras misteriosas em armários ornamentais. Porque o mapa existe. Está lá na memória. O mapa existe. Encontrar exige tranquilidade. Nada de angustia, ou pressa, ou elucubrações. Apenas uma silenciosa paz. Mentalizar. Descontração. Então, o perdido se apresenta com alívio. Nenhuma urgência, apenas o prazer de ter encontrado. Elizabeth M.B.Mattos – julho de 2014 – Torres

Correspondência e saudade

Iberê, meu amigo querido:

Tens razão. As dificuldades nos impossibilitam de sermos como gostaríamos de ser, normais, suaves, intensos, alegres, esperançosos. Perdemos a dimensão do normal. Desconfiança. Inviabilidade nas relações? Tudo perturba o julgamento. Políticos, ou apolíticos. Vivos, mas imprestáveis. E sem calçadas. Vivemos murados, imersos em pânico.Trancada na escola, manhãs, tardes envolvida com alunos. O imediato comando de fazer, seguir, avançar. Não sucumbir.O povo, mesmo na arena, está feliz. E o imperador se diverte. E o Brasil segue manso na cordialidade. Aceitação. Não compreendo, também aceito.A morte como notícia certeira desencaminha a alma. Quando a mãe morreu, o luto se agarrou em silêncio estranho. Larguei de sorrir. Agora, com a morte do pai apertei o coração, não chorei. Aceitei. Para morrer paramos de beber água, de comer, e sofremos. Morrer seria isso mesmo, desistir?

Não te acomoda. Não desanima. Não sofre meu amigo. Não adoece. Não desiste. Valerá disponibilizar meu espaço, a intimidade por talentos? Ou eram dinheiros? Gosto de lembrar das parábolas. Estou sempre a fugir. Pedro voltou, definitivamente, para o Rio. Tenho dor de ausência. Depressão doença que me ameaça também. Trata de te afastar deste desânimo. E pinta mais e mais. Esquece a dor. Quero te ver, mas sinto-me amarrada nesta casa, presa na minha inquietude. Também ao trabalho. A tempestade não nos arrancou deste lugar. Um beijo.

“Porto Alegre, 14 – 1 – 90 

Caríssima Beth 

A vida neste país é uma estafante corrida de obstáculos cada vez mais difíceis de transpor. Estamos sobre uma gigantesca esteira rolante, cuja velocidade aumenta sem parar, até a vertigem. Somos, então, jogados para fora, sem braços, sem pernas, sem cabeças como bonecos imprestáveis. Se não erro é o próprio governo que toca a manivela. E dizer como se diz que não chegamos a “hiper” inflação. A mentira é a moeda corrente. Que loucura! Que desgraça!  

Não conheço quem possa alugar o teu apartamento em Torres. Pelo que sei os argentinos estão debandando, estão vendendo os apartamentos que compraram no tempo das vacas gordas. Eles também estão sem “plata “. A Argentina vai tão mal ou pior do que este nosso Brasilzinho. 

Beth, não sabia que teu pai houvesse falecido. Eu sinto muito, sinto muito por ti. O Pedro não me telefonou, como havia prometido. Gostaria de saber como ele foi de vestibular.  

Eu atravesso uma fase de muita depressão, de grande desencanto. Tenho me esforçado para ser rijo, para permanecer de pé no convés do navio da vida. 

Li que Santa Cruz do Sul foi açoitada por tremendo temporal. Fiquei preocupado. Espero que não tenham sofrido nada, que a casa esteja intacta. Manda dizer algo. Espero que venham a Porto Alegre. Quero muito te ver. Entende? Afetuosos abraços do amigo de sempre o Iberê.”

 

Diário da Oficina

No primeiro dia li e reli desordenadamente todos os itens. As possibilidades! Transitei entre uma e outra. Escutei Cortázar. Não consegui ouvir a música.  A irritação me paralisou. O limite de habilidades, paredes. Depois peguei o livro O filho de mil homens de Valter Hugo Mãe… Escutei a voz dele. Voltei ao texto:

“As raparigas tinham uma ferida que nunca curariam. Estaria para sempre exposta, e por ela sofreriam eternamente. Os homens haveriam de investir sobre essa ferida de modo cruel para que nunca pudesse sarar. A Isaura não sabia ainda que era para que sofresse que lhe calhara ser mulher.Talvez, com sorte, pudesse ser um pouco feliz antes de morrer. Mas apenas um pouco e com muita sorte. A Maria dizia que isso não sucedia a todas. Apenas às mais merecedoras e espertas. Porque facilmente um erro estragaria tudo. O amor, dizia ela, estraga-se. E tu não querias ser ordinária.” (.40)

Encanta a editoração, o diferente, o cuidado, a cor da pintura-capa. As orelhas surpresas, enfim, o livro-objeto visual. Escolhi o texto ao acaso, mas não tão ao acaso porque logo salta a questão desta ferida-dor permanente da mulher Isaura, mulher Beth, ou Isabel, ou Elizabeth, diz Maria desta sina de ser infeliz porque “o amor estraga-se”. E logo esta coisa de apenas “as merecedoras e espertas” poderiam ser minimamente feliz. Tão sina, tão bíblico como o pecado, tão Eva. Embora libertas de algumas tantas dores segue a mulher carregando pedras. Desgarradas da vida, empacadas na esquina sem saber se dobramos para direita ou para a esquerda… Temos a sina da dor, da fatalidade deste sofrer vaticinador dito por Valter Hugo Mãe.

No segundo dia mandei desesperados bilhetes. Confusas comunicações. O eu surpresa e o eu medo. Releio e reconheço o titubeante, e o perturbador. E a menina Elizabeth diante do que é preciso enfrentar. Outra vez na Rua Vitor Hugo, 229. Petrópolis. Porto Alegre. Abandonada na beira da calçada, sem conseguir entrar… Todos saíram. Ninguém na casa? Ninguém que importe. Se o movimento segue, se as janelas estão abertas, se os cães estão ao meu lado… Não vejo nada. Outra vez, sozinha. “[…] uma ferida que nunca curariam. Estaria para sempre exposta, e por ela sofreriam eternamente.” Preciso reagir. O trabalho é pesado. Difícil. Competitivo. As pessoas esperam que eu o faça. Exaspero-me sem coragem. Recomeçar. Reagir. Não importa que esteja sozinha. Não importa que não saiba fazer. Os brinquedos não são meus. Não sei ler nem escrever. Vou apreender. “Talvez, com sorte, pudesse ser um pouco feliz antes de morrer.” Sinto o cheiro da comida, e caminho devagar para a cozinha.

Retomo o susto, e volto ao trabalho. Ler tudo outra vez, e escrever.  […] “uma oficina rica em disfarces”. Leituras atrasadas. A disciplina me falta. E a rotina é difícil. Tenho que apreender tudo. Ler e escrever, desafios.

O final é o começo

É uma surpresa ter leitores. Prazer o diálogo. A publicação vale como herança. Troca de valor, encontro e aceitação. Alguém pegou minha mão. É reconfortante! Uma remota idéia do para sempre… Longe de ter encontrado o caminho, mas vejo a sinalização. Isto é ótimo. Obrigada.

Somos nós

A cada um sua particularidade.

A cada tempo, a visão...

Representa-se num dia o dado, o jogo. No outro, o sonho. Sentinela. Ou apenas afago, o beijo.

Há cada um sua experiência. Somos aquele que nos imaginamos ser: desenho, ideia, dia, e esta luz toda, somos nós…

Ninguém pode dizer melhor do que eu mesma… A afirmação define o trabalho? Aponta o motivo. Diante do espelho olho, escolho, atravesso e busco o início. Volto a pensar no motivo, na voz, nas palavras, na escrita ela mesma, aquela que precisa estar aqui, agora, presente, comigo nesta disposição de fazer, de fazer um começo, um meio e um fim. Emparedar as palavras, cutucar ideias. Casa de livros lidos, sublinhados, relidos, olhados, entre eles, o meu. Deixar a inveja passar, o ciúme parar. Recolher o que me resta, ou vasculhar no que já existe de pronto, de feito, de bom, de trágico, por que não? Melancolicamente eu me arrasto na nostalgia sem tristeza, sem medo.