Incêndio

Pessoas se movimentam, viajam, bordejam, conversam, compram, vestem, leem, veem todos os filmes. Sofisticadas, ou a roda do chimarrão, local. No Uruguai, na França, ou na Itália. Porto Alegre… Mansas, elegantes, pontuais, acrescentadas, alimentadas, emocionalmente, na mesma temperatura. Primeira classe em tudo, mesmo ao se preparar para dormir. Tirar os sapatos, ou atravessar o jardim… Ainda existem jardins. STOP. Delírio. Ou apenas os elevadores? Uma imagem depois de outra imagem, o sonho, visão. Uma árvore. Gosto tranquilo de certezas afetuosas. Estar na vida, ter a vida. Gavetas em ordem. Que excelência! Sempre as certas e boas gavetas.

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Na minha estrada entre Torres e Porto Alegre, o meu coração salta agitado. O cenário me atropela, não Sou nem Tenho. É Porto Alegre sobrevoando. Jacarandás. Estas primeiras horas se agitam de tal forma que desanimo… Tenho Paris, Nova York, Roma, Pequim, Moscou, Tóquio, Recife, e Salvador ao mesmo tempo? Isso existe? Que estranheza! Desanimo fácil! Recuo. E vejo Paulo Amaral nas paredes do Café do Porto. Toda esta emoção traduz Porto Alegre! Digo descomedidamente. Peço desculpas. Desculpas ponto final. Desculpa! Amoras azuis, vermelhas ou pretas, cerejas, melões. Água. Vinho. Tinta. Cartas, lápis, ou papel? Não controlo emoções. Desculpa. O calor não sai do corpo… Elizabeth M.B. Mattos – Porto Alegre

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 Depois do fogo! Paty do Alferes, Rio de Janeiro (fiquei estarrecida com o fogo do verão / fogo)

Política das certezas

Estás tomada de certezas. Certezas positivas, e não vás rir! Tenho certezas vazias, e nocivas!

Arrumei melhor o apartamento. Apaixonada estou pelos velhos discos de vinil! Consegui espaço na mesa. E o toca-discos funcionou. Ontem, quando me chamaste ao telefone (gosto de dizer assim, ‘chamaste’ porque por um momento entras na minha vida, estás no apartamento ao lado, desfazendo tuas malas deste tempo de viajar) sentia uma solidão doente. Um sofrer sem porta ou janela, sem fresta. Sufocada por tristeza automatizada. Alguns seres humanos passam vidas emparedados, e silenciosos. Outros contam repetidas vezes a mesma história, a mesma dor, o mesmo engasgado som. Exilados  em casa. Difícil retornar, retomar… Pode-se mudar isso, ou festejar o dia de São João no Natal? Esquecer? Jogo sujo! A condição de oprimido se alonga, se estende… Ou se fantasia em poder. Abusam, extrapolam, comem demais, festejam demais, roubam demais. Quem abre a torneira da safadeza não consegue parar.  O dinheiro, tanto quanto a vaidade física, rege a orquestra. Errado? Que tipo de semente se planta? O que alimenta o gado no campos? Posso me debruçar na pequena sacada, e me alegrar? Posso sentar-me à mesa do boteco, pedir café, conversar, e respirar? Afinal amiga, gosto das conversas sobre o nada, pura divagação. Tudo divagação. Os animais foram domesticados pelo homem, e são maltratados por este mesmo homem. O clima se ajusta ao homem, ou é o homem que administra a mudança? A guerra não termina, o armamento se faz lento, dissimulado dentro de cada coração, de cada pessoa. Que estranheza quando explode! Hoje explodi de alegria com a música.

 

Não estou onde deveria estar

Deveria estar em Porto Alegre. Reconhecer Porto Alegre. Voltar. Recuperar o tempo. Escrever sobre o tempo. Ana, Mabel, Luiza, Marta, Sonia, Joana, Sandra, Maria e Albertina insistem que eu faça, diga, prossiga. Não interrompa o tempo. Escrever. Ilusão de vozes. Ilusão. Imaginação. Comprometer-me. Apreender a fazer. Reassumir a voz. Hoje estou com saudade. Anos e anos a procurar um endereço, um nome que ficou para trás na história. Qual? Nem sei mais. De repente, dou-me conta da impossibilidade de resgatar. Nunca quer dizer, sequer sei ao certo onde procurar. Seguidamente erro o endereço. Nunca significa não estar pronta para o reencontro. E sigo desejando Porto Alegre, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Montevidéu, ou São Paulo. Por que não estou apenas em Porto Alegre, em casa? Nunca se soma ao medo. Procuro recuperar o tempo escrevendo sobre o tempo. Ilusão. Voltar ao lugar que nos lembramos… Todos nós sabemos voltar para casa. Não importa o tempo. Hoje estou com saudade. Saudade até do não estar. Retorno a história toda de tempo, e o tempo das histórias que não sei contar. Estranho como nos lemos nestes sentimentos sentidos, e cronometramos dias lúcidos, doloridos ou amenos… Quero te mandar o recado, passar o telegrama, e escrever: Hoje sinto muita, grande, imensa, enorme saudade de ti, meu amado. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2014 – Torres

Sem título

A vida de todos importa mesmo sem ter nenhum significado: paradoxo, mas evidência. Estamos perdidos nas conversas ligeiras sobre o nada. E a vida se faz tão acelerada! Tão importante num momento, e no outro, pequena esfacelada. Tantas barreiras me ‘agarram’ sem motivo! Porto Alegre festeja aniversário. O Mercado Público abre as portas. Em Torres a Lagoa do Violão se enfeita para a Páscoa. E ainda não sai do lugar. Vou caminhar com a Onix. A lobinha preta vai cheirando tudo, cuidando. Feliz. O mundo dela é este zelo pela minha companhia! Acho graça! Converso com ela! Isto me parece prosaico e anacrônico! Pois é. Converso com a lobinha como se me entendesse. Gosto do seu olhar atento, suas patinhas ligeiras, curtas. E o silêncio necessário.

Temperamentos ardentes

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Estas proximidades que me perturbam, assustam. Incomodam, e me transformam em esquizoide, ovelha, avestruz quem sabe? Fuga constante, medo inteiro de ser descoberta, exposta, de ser continuamente pessoa. Não quero, e ao mesmo tempo careço tanto! Tudo precisa passar pelo clandestino, o não visto,  não ostentado, e prazeroso, longo, profundo como aqueles amores que não foram. Enquanto leio Amós Oz estou no kibutz, no sofrimento dele, mas o que faço com o meu sofrer, com as lágrimas que não choram, com esta ignorância histórica, pálida e fria? E com  os meus amados juvenis… Todos presentes como o Jairo, por exemplo. Raiva do que não tive? Quero que o vazio salve. A cada um na sua vida, de forma diferente. Tenho olhos para os olhos castanhos dele. Pela casa da sua avó, os chás, a elegância da mãe. Os passeios de carro. Os encontros nas quermesses do Colégio Nossa Senhora das Graças. Por que não estou conversando com ele à beira do Guaiba? Estou presa no kibutz como se eu pudesse me corrigir desta nostalgia toda. Lembro-me dos pintores, escritores,  professores, artistas amados. Também dos livros, do fogo nas lareiras! Dos textos. Livros. Cartas. Do pudor, e depois a traição traída depois do velório. Do homem magro, magérrimo, abraço apertado. Buenos Aires, Búzios, Porto Alegre de casais enfeitiçados, e alegres. Acordei? Entre cartas, telegramas, e telefonemas. Amei avoada. Tão avoada como amei a pele mate, escura… A pele lisa, turca e enfeitiçada pelo físico amor. Ardente. Estou no kibutz a refazer o trajeto, o meu.

“[…] e intensa proximidade de homens e mulheres de temperamento ardente ainda me incomoda muito, depois de todos esses anos, e isso me constrange e envergonha.

Mas não sinto arrependimento. Isso não. Quase tudo que fiz na vida, fiz de coração aberto. O que então? Um laivo de estranheza, de saudade. Uma tristeza sem endereço. Como se isso também fosse o exílio. Sem um rio, sem uma floresta, sem os sons doa sinos. Que eu amava. Assim mesmo, sou capaz de fazer comigo mesmo um balanço frio, exato, um balanço histórico e também conceitual e também pessoal.” (p.237)

 

Que graça tem essas vidas, de quem cresceu entre os furacões da história, numa espécie de lugar-não lugar numa aldeia-não-aldeia, o rascunho de um país novo, sem avô e avó, sem uma antiga casa de família com paredes cheias de sulcos e o cheiro de gerações de mortos. Sem religião e sem rebelião e sem perambulações, talvez sem nenhum saudade. Sem nenhum objeto que veio de uma herança, nenhum medalhão, ou móvel, ou roupa, ou livro antigo. Nada.” (p.241)

imagem020Depois, numa espécie de concessão ditatorial, eles sorriem e lhe perguntam o que você acha. Antes que você abra a boca, eles já respondem a essa pergunta também, com tópicos e tudo, e lhe explicam que sua opinião não tem fundamento, porque a sua geração é superficial e tudo o mais – sem deixa-lo dizer uma só palavra, e lhe dão um xeque-mate depois de terem jogado sozinhos dos dois lados do tabuleiro e imobilizado suas peças porque você não tem peças, só tem problemas psicológicos, emocionais e no fim dizem que você ainda precisa estudar e que você ainda não está maduro. “(p.153)

Amós OZ – Uma Certa Paz

Não apresse o rio

 

Pesa voltar. Queremos  mesmo ir em frente. Em casa outra vez. Chegar. Luta na batalha fechada, sem pensar, mas já é guerra. Peso dolorido deste cansar, exausto! Inverso…Calma mansa. Água da sede. Beber tua saudade também. Encosto a cabeça nas pedras, sinto o cheiro do mar, e o calor deste sol matutino. E o mar! Quero de volta os banhos frios, salgados e coloridos! Onde estás? Tu que amas o sol, a praia e as ondas? Quando voltarás a me acordar para um beijo apressado, uma visita com gosto de café de bar.

Como podemos ser livres para olhar e aprender quando nossas mentes, desde o instante em que nascemos até o momento em que morremos, são moldadas por uma cultura particular, dentro dos padrões estreitos do ‘eu’? Durante séculos temos sido condicionados pela nacionalidade, casta, classe, tradição, religião, língua, educação, literatura, arte, costumes, convenções, propaganda de todos os tipos, pressões econômicas, comida que comemos, clima em que vivemos, família, amigos, nossas experiências – toda influência que se possa imaginar – e portanto nossas respostas a cada problema estão condicionados.

Durante séculos temos sido condicionados pela nacionalidade, casta, classe, tradição, religião, língua, educação, literatura, arte, costumes, convenções, propaganda de todos os tipos, pressões econômicas, comida que comemos, clima em que vivemos, família, amigos, nossas experiências – toda influência que se possa imaginar – e portanto nossas respostas a cada problema estão condicionados. Você tem consciência de estar condicionado? Essa é a primeira coisa que você deve perguntar a si mesmo, e não como se libertar condicionamento. […]” p.231

Não apresse o rio (ele corre sozinho), Barry Stevens

 “Estou limpando bem a casa,  colocando todas essas coisas que tenho carregado comigo. E como ter tudo dentro de uma única malinha conveniente. Mas não foi por isso que as coloquei. A conveniência é secundária. A razão primeira foi eu querer que estivessem aqui, conforme emergiram em meu mundo – sairam do arquivo onde sequer estavam sendo lembradas há muito tempo – e entraram no livro. […]” p.232

Não apresse o rio (ele corre sozinho), Barry Stevens outra vez.

 

De lado

De lado

Neste amor não consigo estar de frente como seria preciso. Estou meio saindo, não chegando, nem entrando. De lado. Viciada em me focar, desfocar, tropeço. Não alcanço o real.
Olhar pela janela, voltear a lagoa, fechar as janelas. Buganvílias, silêncio sem mar. Bom o frio ventoso! Gosto do amoroso cheio de amor do outono! Bons trilhos de amar… Sentimentos encaixados. Tua voz, teus braços! Ir além sem exposição. No lápis. Ah meu querido! Estas loucas falsidades do amor! Coisa de voltar pro prazer conhecido! Sempre o mesmo, igual! Aquela esquina igual, aquele momento igual, repetido. A mesma memória de olhos azuis.

Esta noite sonhei com uma figura masculina. Jovem, bonito, perto, com olhar castanho, confiável, terno. Eu me ajoelhei como menina que escuta histórias, e deitei a cabeça nas pernas dele. Eu era eu hoje, e ele jovem! Foi boa a sensação. Conforto! O mesmo prazer do beijo. Como se fosse um beijo! Foi só encostar a cabeça, e já era um abraço…acordei.

Coragem?

No meio das velhas leituras interrompidas, os mesmos, iguais sentimentos.  Esta  coisa de voltar pro abraço conhecido parece muito, tão igual…Aquela esquina igual, aquele momento igual, repetido. O tecido com a mesma textura, o mesmo sentimento.

 

“[…] uma sensação, uma espécie de voz especial e longínqua que só quer se fazer ouvir quando estou sozinho, sem pessoas comigo, sem esses desejos ruins, sem essa minha loucura de causar boa impressão e de eletrizar e de surpreender o tempo todo e de me gabar, e eis que o milagre já aconteceu quando fiquei calado, quando me acalmei, quando disse meu deu, o que sou eu, porque me deixaste viver, para que sou necessário e numa hora dessas vem a resposta simples do silêncio da luz e do pó das montanhas do vento e a resposta é pergunta, é o silêncio: não tenha medo, menino, não tenha medo.” (p.141)

Amós Oz – Uma certa Paz –  Editora Companhia das Letras, 2010.

As tintas voltam

As tintas voltamSe transforma o ateliê da imaginação. Papel, cartas. Recorte, traço, datas, vontade. Vontade  lavada. Angústia, brincadeira solta, entregue nas tuas mãos. No sonho sonhado volta o amigo. Risco. Perto. Fazendo e relendo.

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“Dizem os poetas que o pensamento anula as distâncias. Podemos ver com os olhos da alma a imagem que evocamos, mas – este é o tormento – não podemos tocá-la.Tu estás ao meu lado, assiste-me pintar; eu acompanho teus passos. Tu apareces no meu vídeo, eu no teu. Somos, querida amiga, dois prisioneiros que vivem em celas separadas, alimentando-se um da imagem do outro. Estou acuado vivendo um momento de grande tensão. O diabólico plano do Führer das Alagoas atingiu nosso naviozinho. Agora estamos procurando juntar os destroços para construirmos uma jangada, que errará à mercê dos fétidos ventos de D. Zélia. É irônico e trágico ver a ditadura entrar a passo de ganso pela porta da democracia. Positivamente, o Brasil é um país bandalho. Querida, preocupo-me com os teus desacertos e com tuas mágoas, que são profundas. Gostaria de analisar e discutir estas coisas, pessoalmente. Tu sabes, que te quero bem.   Beth, não descures do teu aspecto físico, pois o que está bom reflete dentro, na alma. Tu és uma mulher bonita. Para não engordar basta seguir um regime. Sei que não se devem misturar hidratos de carbonos com proteínas. Pensa nisso amiga. Junto vai um rabisco, minha imagem por dentro, agora Escrevo-te, às pressas, para que não fiques sem o meu carinho. Beth, o coração guarda segredos. Eu quero te ver.  Com muito afeto o Iberê.” 

Tudo de volta, misturado, aqui. Tenho que fazer tudo outra vez, tu também. Acertar, corrigir, refazer. Reler. Pontuar. Tudo outra vez. As tintas voltam deslocadas. Sinto tua falta, sem entender muito tua ausência agora tão definitiva. Não! Por que o delírio? Estás tão perto! Da conversa. Das tintas. Dos pincéis, em francês, em italiano, em português. No Rio de Janeiro. Em Nonoai, Porto Alegre. Penso no que perdi, e no que não aconteceu. Nada confiável, muito menos a memória. Tua lembrança conto e aplaudo. Volto a cada carta. Silêncio. Dizer, ouvir, desenhar, colorir as palavras. Apagar tudo outra vez. Arriscar. Não há amor, não há ódio, não há amigos, não há inimigos, não há fé, não há paixão, não há bem, não há maldade. Tão poucas vezes juntos! Ao te escrever volto às cartas que não chegaram. Extraviadas, violadas… Por tanto tempo estivemos perto estando separados. Ao te escrever, meu desespero derrama aflições. Tu me acalentaste com tuas preocupações. Eu me apoiei, egoisticamente, no teu brilho. Minhas cartas, tantas vezes ilegíveis, te faziam voltar pra mim… Uma resposta, um desenho. A notícia recortada. Envaidecida descuidei-me delas, tuas cartas perdidas… Elizabeth M. B. Mattos – março – 2014 – Torres