Empilhar, entulhar

 

Encaixotar, embalar. Enrolar. Varrer. Deixar vazio. Guardar. Selecionar. Excluir. Rasgar. Este ritual  oprime. A gaveta remexida. A presença escondida. A surpresa! Toda a saudade. A escassez oprime. Oprime o desejo contido. A cópia, o modelo estereotipado. Oprime o diabo do espelho. O vestido manchado. A manta azul no cabide. Os chinelos. A escova de dente. O pente. A lata dos chocolates. As fitas na mesa. Oprime o segredo. Oprime a preguiça. Incapacidade, ilusão frustrada, a idiota vaidade. Este mesquinho egoísmo e esta opaca inconsciência. Oprime não ter compreensão, nem o espetáculo inteiro, só o palco. A palavra dele, a voz, o cheiro, a roupa, a ausência, o silêncio, os remédios, o casaco xadrez. Por que não aceitar com prazer o que terminou? Não olhar o fogo, e deixar para traz só as cinzas deste  incêndio. E o ponto final.

 

 

 


 

Angústias

Grandes pintores, artistas, grandes angustias. Contínua vontade de acertar. As dificuldades existem, mas como escreve Van Gogh “Mas estas dificuldades estão mais dentro de nós mesmos que em qualquer outra parte”.

“23 e dezembro de 1888

Agradeço-lhe muito a carta, a nota de cem nela incluída e também a ordem de pagamento de cinqüenta francos. Eu por mim acredito que Gauguin tinha se desanimado um pouco com a boa cidade de Arles, com a casinha amarela onde trabalhamos, e, sobretudo comigo. De fato, tanto para ele quanto para mim, aqui ainda existem sérias dificuldades a vencer. Mas estas dificuldades estão mais dentro de nós mesmos que em qualquer outra parte. Em suma, por mim eu acredito que ou ele vai decididamente partir, ou ele decididamente ficará aqui […]”(p.940

Vincent Van Ggh – Cartas a Théo – LPM Pocket

Telas de Van Gogh :  as flores e os sapatos. E  as outras telas são de Paul Guaguin,- as mulheres nativas.
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Soberba

Entre a luta de poder e não fazer, eliminar. Seguir em frente. Caminhar sem se voltar. Entender antes de perdoar. Socorrer aquele corpo espedaçado… Velar. Quebrar a cadeira, o vaso, a janela… Depois consertar. Esquecer o tempo de lavar, dar de comer. Recomeçar. Limpar, arrumar, dobrar, cansar, ficar, e ainda assim olhar pela janela… Esquecer o tempo de plantar, regar e podar! Escutar, estremecer. Não duvidar! Altruísmo, soberba, egoísmo, estoicismo infeliz. Sátiras palavras invertidas. Deixa o diabo correr, quero as asas de anjo pra voar e me perder…

Unhas pintadas

Realidade. Estar no coração de um dia de verão, como no interior de uma fruta, olhando para as unhas do pé, pintadas, para o pó branco nas sandálias, vindo de ruas quietas e sonolentas, sentir a expansão do sol por baixo do vestido, no meio das pernas, ver a luz polir os braceletes de prata, sentir os cheiros da padaria, do pãozinho de chocolate, ver os carros passarem, cheios de mulheres louras como as fotos da Vogue, e logo enxergar a velha criada com o rosto queimado, com cicatrizes, cor de ferro, ler sobre o homem esquartejado, e ali, à sua frente, perceber o corpo pela metade de um homem sobre rodas, enquanto o perfume do coiffeur canta a realidade.” (p.146)

Anaïs Nin – Diários Não Expurgados (1934-1937) – LPM Pocket

De Anita

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“Genética

Embora eu devesse não me sinto outonal.

Não amarelo meus pensamentos. Não caem minhas ilusões.

Sou como um fruto maduro preso a um galho,

E que se recusa a ser colhido

Embora eu não devesse me sinto primaveril.

Brotam em mim botões de alegrias que renascem até nas tempestades,

No frio que vem das invernias.

Embora eu não devesse, renasço até nos pantanais

E ali consigo ficar mais frondoso.

É porque a semente que me fez nascer,

Creio de uma planta rara, especial.

Então,  sou como as flores que renascem em todos invernos, primaveras, verões

Que vicejam mesmo sendo tempo outonal.

Torres, 03 -09 de 1982″

Anita de Athayde Menna Barreto Mattos

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Fama, Cronópio, Esperança

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Se eu fosse um Fama eu já teria um carro, uma casa, emprego, nenhum filho. Se eu fosse mesmo um Fama eu teria assinado o contrato, recebido o dinheiro. Teria comprado inveja, ironia. Se eu fosse um Fama teria beijos, abraços, muita comida. Se eu fosse um bom Fama estaria rico, gordo, risonho. Teria visitas nos fins de semana. Ganharia presentes a toda hora. E eu seria o melhor no tênis, no golfe. Ou jogando cartas, bebendo uísque. Seria bom nas piadas. Se eu fosse o Fama teria um alguém abrindo a porta do meu carro, servindo o vinho no meu copo. Seria inteligência pura, certeza pura, acerto certo. Se eu fosse um Fama não seria este Cronópio que surpreende, mas não faz, e se faz se machuca. Quando transforma chora. Quando acerta grita, quando grita diz, obstrui, inverte inventando… Não pintaria este retrato sem rosto, com tanta tinta sem risco. Eu não seria este Cronópio que vive espremido entre Cronópios! Nem teria este quintal que chamo jardim sem canteiro neste terreno que não começa nem termina. Nem pensaria viagem, festa, alegria quando apenas caminho, e caminho até o outro quarteirão pra visitar a tia.  Se eu fosse um Fama não teria tanto filho que grita, chora, e pede. Nem tanto aperto pra morar, nem tão pouca comida pra comer. Não iria pras praças reivindicar. E todas estas pernas, braços que se enchem de areia, de barro seriam Esperanças caminhando distraídas, alegres e contentes nesta vida… Se eu não fosse Cronópio acho que não queria ser Esperança não. Não esta tal Esperança que não acontece. Nem queria ter a tristeza parada de ser estátua pra ser olhada. Queria o amanhã que não vem… Se eu não fosse! Se eu pudesse deixar de ser fantasia e ficasse vivo, Cronópio esperto! Porque se eu fosse Esperança boba. Se eu fosse Esperança flutuando sem ser, nem fazer, eu queria ser um Homem no sentido completo da palavra, queria pensar, organizar, sentir e caminhar em direção ao Bom,  ao Justo, ao Alegre e  ao Generoso bem do jeito que tem que se deveria ser… Não sou Cronópio, nem Fama, nem Esperança, nem aqui, nem agora, mas lá! Neste lá possível e esquecido de todos.

Exercício da Oficina TERAPIA DA PALAVRA – após leitura de  Julio Florencio Cortázar (escritor argentino, nascido em 1914). Livro lido:  Cronópios, Famas e Esperanças. Elizabeth M.B. Mattos – Torres,  agosto de 2013

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Julio Cortázar! Autor de  Los Reyes

Pois é

O amor se repete no dizer, não no sentir. O amor se repete na palavra… Não na voz. Assim mesmo se repete… E fica-se assim a procurar, querer, e sem encontrar naquela medida certa de amar o amor, ao nosso jeito.

Pois é!

 “Amor é um fogo que arde sem se vê;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;

 

É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre gente;

É um não contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder; “[…]

Luis de Camões 1524, Lisboa (Portugal) /1580

Bolo de fubá

Apago o fogo no sonho da insônia. Chove na lua desta noite. Engomadas rendas de soluções rápidas… A vizinha devolve o quilo do café. Açúcar, manteiga, maracujá e rosas frescas…

Hoje vou comer o bolo de fubá. Elizabeth M.B. Mattos – agosto 2013 – Torres

Simone e Giacometti

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Não creio ter tido oportunidade de lhe falar sobre um grande amigo, um escultor que vemos frequentemente, o único talvez que vemos sempre com prazer. Esbocei uma espécie de retrato dele no Sangue dos Outros. Como artista eu o admiro muitíssimo, não há escultura moderna superior à ele, e ele trabalha tal força com muita pureza e paciência. Chama-se Giacometti. Vão expor muitas de suas obras em Nova York no próximo mês. Há vinte anos, ele conheceu um grande êxito e ganhou fortuna com sua escultura de inspiração surrealista. Ricos esnobes pagavam a ele preços exorbitantes, como a Picasso. De repente sentiu  que não estava indo a lugar nenhum, que se desperdiçava, e então deu as costas aos esnobes e começou a pesquisar sozinho, só vendendo o indispensável para sobreviver. Assim vivia muito pobremente, sempre com as mesmas roupas sujas.[…] Em um encantador jardinzinho esquecido, ele tem um ateliê cheio de peças, onde trabalha, e mora ao lado de uma espécie de hangar, amplo e frio, com paredes nuas, totalmente desprovido de móveis e de provisões.  Como há buracos no teto, colocou potes e caixas, também furadas, no chão, para recolher a chuva! Trabalha quinze horas sem interrupção, principalmente à noite, e não sai nunca […]Pouco se importa com o frio e as mãos geladas; apenas trabalha.[…] Mas tem idéias próprias sobre escultura, e há anos tenta e tenta de novo, como um maníaco, sem expor nada, quebrando e recomeçando a cada vez. Ele poderia facilmente conseguir dinheiro, elogios e fama, mas, não; faz isso por ter concepções, singulares, apaixonantes, sobre a sua arte.” (p.88-89)

Simone de Beauvoir – Cartas a Nelson Algren – Editora Nova Fronteira.

Carta de quarta-feira 05 de novembro de 1947.

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