Começa a encher malas, primeiro as vermelhas. Sair desta casa o mais depressa possível. Livros nas caixas, louças nas cestas, as bebidas no engradado verde. Abre outra garrafa de vinho. Pega um dos cálices coloridos que se alinham com seis copos de Baccarat, junto aos dois de conhaque, as bolhas. No fundo quatro para uísque, oito de licor. Uma dúzia de copos de cristal uruguaio lapidados. Na prateleira de baixo seis pratos rasos da louça Rosenthal com aquela rosa envolta no buquê de flores do campo, seis pratos fundos, mas apenas quatro xícaras de chá. Pega um dos pratos de bolo. Coloca ameixas pretas, e castanhas. Ainda tem dois pacotes de biscoitos, damascos, um resto de café, uma lata de leite condensado, duas latas de sardinha. Bananas e laranjas. Três ovos. Duas garrafas d’água, e nenhuma fome. Senta no banco de três pés perto do fogo. Coloca mais duas achas de lenha. A lareira se acende com labaredas vermelhas. Está gelado este agosto de 2013. Fica imóvel olhando pra chama. Enquanto o fogo se agarra ao nó de pinho, na lenha seca, amolece o corpo. O dia não clareou. Não escuto o cachorro. As venezianas estão entreabertas. Esqueceu de trancá-las. Já deita no pequeno sofá puxa a coberta de lã de ovelha até ao pescoço, mantém as mãos livres, e segue a leitura.
“Disponho de outras informações relativas a meus pais; sei que elas não me ajudarão em nada a dizer o que gostaria de dizer deles. Quinze anos após a redação desses dois textos, continuo achando que não poderia senão repeti-los: fosse qual fosse a precisão dos detalhes verdadeiros ou falsos, a aridez ou a paixão com que pudesse revesti-los, os fantasmas aos quais pudesse dar livre curso, as fabulações que pudesse desenvolver, sejam quais forem também os progressos que eu possa ter feto nos últimos quinze anos no exercício da escrita, […]”[2]
Mãos geladas! Bebe o vinho, come as ameixas. Levanta o corpo, e se coloca recostada no braço do sofá. A coberta nos joelhos. De onde está pode ver a estante de livros abarrotada, e a mesa retangular onde trabalha. Os objetos. Lápis, régua, estilete, esferográficas Bic, um pincel atômico. Fichas. Uma pilha de papel A4, duas canetas tinteiro,uma Montblanc, outra Parker, um caderno quadriculado, capa verde, aberto. Um peso de papel. E livros que fazem duas torres. No tapete estão várias caixas de papelão já fechadas, lacradas. Pega os óculos outra vez e segue lendo em voz alta: ”[…] a não querer recomeçar. Isso não se deve como aleguei por muito tempo, a uma alternativa sem fim entre a sinceridade de uma fala a encontrar e o artifício de uma escrita preocupada exclusivamente em erguer suas muralhas: é algo ligado a própria escrita como ao projeto da lembrança. Não sei, não tenho nada a dizer, sei que não digo nada; não sei se o que teria a dizer não é dito por ser indizível (o indizível não está escondido na escrita, é aquilo que muito antes a desencadeou); sei que o que digo é branco, é neutro, é signo de uma vez por todas de um aniquilamento de uma vez por todas. […] É isso o que digo, é isso o que escrevo e é somente isso o que se encontra nas palavras que traço e nas linhas que essas palavras desenham e nos brancos que o intervalo dessas linhas deixa aparecer: por mais que eu persiga meus lapsos ou passe duas horas matutando sobre o comprimento do pacote de papel, ou busque em minhas frases, para evidentemente logo encontrá-las, […]. “[3]
Isabel chora manso, depois o soluço. Bebe o vinho. Levanta. Abre a caixa que deixou na cadeira azul. Ajoelha no tapete, e começa a tirar fotos de dentro do saco plásticos. Uma visita cuidadosa ao passado catalogado: 1936, 1946, 1956, depois 1970, 1980.1999. Volta ao livro de Perec. Lê o texto sem se preocupar com a letra miúda do pai na margem esquerda da página 54. ”[…] sempre irei encontrar, em minha própria repetição, a apenas o último reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles e do meu silêncio: não escrevo para dizer que não direi nada, não escrevo para dizer que não tenho nada para dizer. Escrevo: escrevo porque vivemos juntos, porque fui um no meio deles, sombra no meio das sombras, corpo junto de seus corpos; escrevo porque eles deixaram em mim marca indelével e o vestígio disso é a escrita: a lembrança deles está morta na escrita; a escrita é a lembrança de sua morte e a afirmação da minha vida.”[4]
O telefone? Não. É a campainha. Enfia os pés na pantufa, pego a chale amarelo da mãe, passa as mãos no cabelo. Parece ser ainda mais miúda, as franjas sacodem nas pernas do pijama de flanela. Desce os degraus para chegar à porta. Amanheceu. Elizabeth M.B. Mattos – Porto Alegre – outubro 2013
“Não há nada mais terrível, aprendi então, do que ter de encarar objetos de um morto. Coisas inertes: só têm sentido em função da vida que faz uso delas. Quando essa vida termina, as coisas mudam, embora permaneçam iguais. Estão ali e, no entanto não estão mais: fantasmas tangíveis, condenados a sobreviver em um mundo ao qual já não pertencem. O que se pode pensar, por exemplo, de um armário cheio de roupas silenciosamente a espera de serem usadas de novo por um homem que não virá abrir a porta? Ou dos saquinhos avulsos de preservativos espalhados em gavetas abarrotadas de cuecas e meias. Ou do barbeador elétrico pousado no banheiro, ainda entupido com a poeira dos fios da última bárbara? Ou de uma dúzia de bisnagas vazias de tintura para cabelo, ocultas em um estojo de couro para viagem? – de repente, a revelação de coisas que não temos nenhuma vontade de ver, nenhuma vontade de saber.”[1]


[1] Auster, Paul, A invenção da Solidão, Ed Companhia das Letras, 1999. P.17
[2] Perec, George, W ou a memória da infância, Ed.Companhia das Letras, 1995. P.53
[3] Idem Perec. P. 54
[4] Idem Perec. P.54
OUTRA versão sem citações, sem Perec ou Paul Auster
ENCAIXOTANDO
Os livros nas caixas, as louças nas cestas, as bebidas no engradado. Abre outra garrafa de vinho. Pega um dos cálices coloridos que se alinham com seis outros junto aos de conhaque, as bolhas. Ainda tem três pacotes de biscoitos, damascos, um resto de café, uma lata de leite condensado, uma lata de sardinha. Bananas e laranjas. Meia dúzia de ovos. Duas garrafas d’água, e nenhuma fome. Precisa terminar de embalar o que falta. Senta no banco de três pés perto do fogo. Coloca mais achas de lenha na lareira. Está gelado este agosto. As venezianas entreabertas. Isabel boceja! Deita no pequeno sofá, puxa a coberta de lã de ovelha trançada. E onde fica o esvaziar, limpar, classificar, selecionar, eliminar? Empacotar, embalar. Precisa reagir. De onde está pode ver a estante de livros abarrotada. A mesa retangular cheia: lápis, régua, estilete, esferográficas, pincel atômico. Fichas, uma pilha de papel A4, duas canetas tinteiro, um caderno quadriculado, capa verde, aberto. Um peso de papel, e mais livros que se transformam em torres. Volta aos papéis, documentos, inquietações, fotos, desânimo. Esquisito. As coisas se movimentam pelo chão. O mundo de dentro estripado ali no tapete. Grudado nas portas. Lembretes presos nas paredes. Estas sucessivas mudanças adoecem o espírito, também o corpo. Choveu e ventou a noite inteira. Manhã escura. A chuva e o movimento sacudido das samambaias arrastam o verde. Abre a caixa que deixou na cadeira azul. Ajoelha no tapete, e começa a tirar as fotos dos sacos plásticos. Visita cuidadosa ao passado catalogado: 1936, 1946, 1956, 1961 depois 1970, 1980.1999. O telefone? Não. É a campainha. Enfia os pés na pantufa, pego a chale amarelo da mãe, passa as mãos no cabelo. Parece ser ainda mais miúda, as franjas sacodem nas pernas do pijama de flanela. Desce os degraus para chegar à porta. Elizabeth M.B. Mattos – o mesmo texto – Porto Alegre