Em cascata

Tenho pensado nas tuas opções: Santos, Florianópolis, Santa Cruz do Sul, Orlando, Paris, Porto Alegre. E me pergunto se depois destes anos todos por aí, lugar seguro, trabalho, boa vida, não é este mesmo o teu melhor estar. Tua vida, teu caminho…

Sozinhos nos sentimos sempre, seja conosco mesmos, com todos, com amigos, sem amigos, ou ninguém. Cá entre nós, Miguel, não falamos mesmo a mesma língua. Não conseguimos dizer o que sentimos, nem como sentimos, onde dói, onde é prazer, a ferida, ou a paz, nem o que exatamente queríamos dizer, tangenciamos. Estamos sempre nas beiradas de nós mesmos, e do que outros pensam, sonham, imaginam. Nem somos o que esperam, nem são aquilo tudo que imaginamos que são… O exercício de ouvir, escutar é um lugar de ressonância, não é nosso com outra pessoa, nem de outra pessoa conosco, mas um monólogo interior, de um com um, dois com dois e sempre nenhum. Esquisito isso. Professor sabe bem destas coisas todas: aqueles que nos ouvem, respondem, correspondem, ouviram sempre, porque querem, buscam, esperam, e naquele momento de dizer nos ouvem. Ouvem? Há facilidades, mas mínimas. Nenhum professor é melhor do que outro. Alunos estes sim, querem, ou não querem. Aprendem, aprendem apesar deste, daquele, apesar de, como escreve a Lispector. Ouvir é uma postura de humildade, serenidade profunda. Ouvimos?  Ou imaginamos ouvir? Entender. Compartilhar passa por isso tudo. Assim no amor… Não somos amados por este ou aquele, e, num repente, nos deixamos amar. Como se escolhe ao prazer do tempo este ou aquele amor, ou nenhum amor. Escrevo professor, porque sou professor. Por isso não surpreende a criança que se alfabetiza sozinha, em baixo da mesa, brincando com as letras. É tudo mesmo solitário. Em afirmação generosa de uma resposta para a outra há aquela sutil espetada, delicada, já percebeste? O que diz ironia! O irônico se imagina inteligente. O livro que lemos nos descreve, o autor escolhido, somos nós. Manso na hora de abraçar, confraternizar. Cruéis, investigativos, malvados, audazes. Concordar. Depois, irreverente, desligar magoado. Se pudéssemos nos radiografar, como fizeram com a múmia, veríamos o mesmo filme do espelho, a história repetida… Nós dentro de nós mesmos: somos sempre tão somente nós mesmos!  A mãe, a velha, a solitária feliz ou infeliz. Amada e desamada, amiga, avó, tia, irmã, prima, filha, neta e tudo junto, ao mesmo tempo. Todo texto se repete, ou se esvazia, ou se preenche: ler ou não ler, esta é a questão. Se quiseres, se puderes, se ouvires, se leres, e… Elizabeth M. B. Mattos – 2014

É pra votar

Mãos sujas, amoras azuis. Manchei dedos. Lambuzei as mãos com amoras pretas, e vermelhas também. Boca cheia, satisfeita de novas, e ventosas azuis que apontam nesta lagoa do lado de cá. Misturadas pitangas, ameixas, e flores. Nesta margem estupefata, plantada, desordenada. Quatro vezes enraizada. Amarelas, azuis, engraçadas. Corticeiras torcidas, cachos pendurados.  Campo florido, amarelo, revirado. Flores se esticam ao vento. E vento carrega o corpo, pés, a passada… Avança azul nesta manhã com festa do suor que seca. Espero outubro pra votar. Aécio Neves, Marina do seringal, chega de sangue neste carnaval. Lagoa soa, buzina, conversa toda passarinhada. Os sapos também. E voam penas brancas e pretas. É setembro, eu sei.

Manchei vestido, avental, dedos, nestas amoras do quintal. Voaram pitangas, ameixas neste carnaval. Tudo isso aconteceu de manhã. Agora o vento sopra, uiva. E faz cinza. Elizabeth M.B. Mattos – setembro 2014 – Torres

Medo de dizer Brasil

Vou-me embora pra Pasárgada

Pra Pasárgada que inventei.

Sem Bandeira, sem pedra no caminho,

Sem Meireles pra explicar,

Vou – me embora pra esquecer.

Esquecer de ler, de escrever. Votar, ou roubar.

Delatar, delação, mentir, ou aproveitar. Acusação,

Eleição, futebol, televisão. Dançar valsa na corrupção

Deixo pra cá… Pro Hamas, Obama, Eva Vilma, Sofia Loren.

Pro Neves, Marina, ou Vermelho de Brasis só pra manchar…

Vou pra lá me refestelar, sem xingar, ou me comportar.

Sem Dirceu, mordomia. Só Bolsa Família.

Sem perder chapéu, sandália, ou vergonha, afinal, nem vou mesmo levar!

Vou-me embora pra Pasárgada sem pai, nem mãe, nem pejo,

Nem lembrança. Sem mala, sem tédio nem peso.

Não penso. Vou ficar sem bomba atômica, sem água, nem luz.

Mata Atlântica. Amazonas, pra quê?

Vou-me embora pra Pasárgada.

A Pasárgada que inventei…

 

O Puritano

558566_354130604668683_968313138_nAulas vespertinas, matutinas, e noturnas. Exausta! E na morte, feliz. Traiçoeira amiga esta falta de tempo. Caçar palavra, perder, exercitar, interromper… E escrever para você. Na insônia, entregue a leitura de um livro achado. Liam O’Flaherty, O Puritano. Estantes, mesas, o silêncio. Dispersiva. Lugar certo, o silêncio certo. Geograficamente paralisada. Quadros e caixas se movimentam. Gavetas se esvaziam… No imaginário de estar… Desajeitada. Adormeço na almofada de livros esquecidos, perdidos, e os achados. Elizabeth M.B. Mattos – setembro de 2014

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Outras vidas

Existe sim. Muitas vidas. Uma vida se enfiando na outra. Repassar, refazer, finalizar, resolver. Reencontros explicam encontros. Por que fomos amigos, tão próximos, depois apaixonados separados? Você lá, eu aqui. Desconhecidos, esquecidos. Por que amamos, loucamente, o corpo um do outro, depois esquecemos um do outro? Apenas interrupção. Enormes buracos na terra. Outro olhar, outro retrato, outro espelho. Você outra vez? Há que se viver outras vidas. Mãos dadas a nos aborrecer. Amores perdidos, deixados. Amores amados. Você e eu em todas as vidas, reencarnados.

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Molde de papel, tecido de algodão, costuras, bordados. Brincos, pérolas…E nós dois, juntos.

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Cidade do Meio

Meu amigo:

Palavras voam, e se prendem no descortinado amanhecer. Lembrança fresca. Velho passado. Arfadas palavras. Colhidas amoras verdes, vermelhas, roxas, e também as menores, pequenas luzes brancas. No campo, esqueço a cidade. O sentimento de chegar. Cinco horas de trem até ao aeroporto. Outras dez até Vala Seca. Largas janelas-vitrines. Roupas, máquinas, brinquedos, sapatos, tamancos, enxadas, cortadores de grama, serrotes. Caixotes com batatas, feijão. Um mercado. Ao lado, Hotel Central, depois outra loja com roupas, uma farmácia. Um bar-café.  A casa se esconde numa ladeira estreita. Ou num estreito de ladeira. No meio do caminho. Todas rotas do Sul passam por Vala Seca. Nesta geografia de lugar nenhum mando novas notícias para você. O quarto principal tem lareira. Grande espelho ocupa metade da parede, depois da janela, o armário. Uma pequena cômoda. Mesa redonda,  duas cadeiras. Tapete, uns poucos livros. Nenhum quadro na parede. Entre a capital dos limões, e a cidade universitária. Entre o certo e o errado. Na cidade do meio. Entre saber geometria, e desconhecer tudo o mais, estou eu. Povoada por você. A minha direita vejo você trabalhando na horta. Em frente, você tocando os patos. Depois, debruçado na minha janela, cabelos ao vento, porque é setembro. Vou até ao alpendre, e os canteiros com junquilhos conversam com o roseiral. As frutíferas devem ter se escondido atrás da casa. Meu amigo, escrevo no caderno de capa vermelha, conforme combinamos, seguem pelo correio este, e outros dois completos. Detalhadamente contei a história do chapéu preto, das irmãs, e das corridas de patinete. O de capa azul deixo para geometria. E o amarelo, poemas. Não existe cidade para descrever. Não sinto nenhuma dor.  Aguardo sua visita. Albertina Vala Seca, 17 de setembro de 2014. Elizabeth M.B. Mattos – Porto Alegre

Marionetes

Obscenidade atribuída a mente. Interpretação, uso dos sentidos. Experimento antes da apresentação do feito. Atropelamos informações. Desenho lembranças  nas raízes necessárias do florescer: a quaresmeira se faz pintura, espia pela janela pequena, e o jasmim se esconde no verde do arbusto. Passa o susto. Conversamos a conversa. A saia colada nas pernas magras. Monta-se estratégico palco, acerta-se o texto, a fala. Modula-se a voz. Especifica-se médico e paciente. Escuto a história de moças perdidas, e achadas em rodoviárias da capital: busca atenta de possíveis talentos. Cura pelo pão, arroz, feijão e leite. Retribuição no abraço amigo, rede rentável. Escutar, sem me surpreender. Escutar o tempo inventado, talentoso de ouvir. Pecado confesso: obsceno mundo de corrupção, atual. Submundo aberto em largas calçadas da cidade capital. O fluxo natural do êxodo lacrimejante dos impotentes. Moças, e os fazedores de talento. Como nos contos de fada: o príncipe e a princesa perdida. Encontrada. Ambos, garbosos, chegam ao palácio. Obsceno mundo de covardia. O mais fraco, sucumbe, sempre. O cochilo atravessou a história. A voz inunda a ideia de brilho. O grito de socorro.  Estranhos odores. Apreender um ofício se mistura, ou se alterna com sobrevivência? Pluralidade inverossímil em máscaras legítimas e polidas. Irreverência. Comemos maçã envenenada. Bebemos em copos bojudos água com gelo. As pás do ventilador se movimentam no meio da sala. Este ventilador de teto levantam o pó das cinzas do cigarro. Elizabeth M.B. Mattos – 2014 Porto Alegre

Portão Azul e você

“Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acedem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uf!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes.” Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis

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Passados tantos anos longe de Portão Azul volto as construções de pedra, acinzentadas, especialmente hoje, fotografadas para você. Ruas de terra batida ladeadas por perfumados eucaliptos. Cheiro verde na floração vermelha, peculiar. Cercas demarcam o limite de cada propriedade. Reconheço amigos pelas chaminés. Os fogões a lenha delatam, contam o que acontece nas casas. Sopão, assado de galinha, ou de porco. Perfume do pão de milho. Batatas cozidas ao leite. A comida descreve para você a cidade onde nasci.

Passados tantos anos volto para as hortênsias rosadas. Azul pálido, depois, azul intenso. Flores tenras, esbranquiçadas. O campo de margarida da casa da esquina. E perto do rio Tininho, plantação de copo-de-leite. E o verde. E o vermelho dos eucaliptos. O vento agita num abano preguiçoso as ramadas das árvores. Não sei como pude esquecer as rosas! Rosas do senhor Amâncio. E a soja verde espevitada. A narrativa segue nos cliques. O retorno ao lugar onde nasci… Literalmente vim ao mundo no quarto rosado. Janelas abertas para os cinamomos que volteiam a casa. Uma tarde de verão. O sobrado majestoso se mostra exibido. Pés descalços, venho ao meu encontro risonho. Estremeço.

A geografia de buzinas, vozes, gritos na noite. Estou de volta. O som sorridente, estridente sobe até minha sacada. A cidade que escolheste… Durmo como se estivesse dentro do bar. Perto do café. Entre a farmácia e a padaria. No verão derrete o asfalto que gruda na minha sandália. E o ônibus me aperta no percurso do apartamento até ao escritório. Escadas escuras, pequenas salas. Gasto meus olhos entre carimbos e pastas. No subsolo daquele prédio enorme que chamam Torre Central. O silêncio dos murmúrios desperta meus nervos tensionados. Trabalho das oito horas da manhã até ao meio-dia. Depois vou flanar pelas esquinas da cidade. E todos os cliques são o azul de olhos apaixonados por você. Adormeço onde você estiver. Elizabeth M.B. Mattos – 2014 Porto Alegre

Histórias Guardadas

História de interdição. Rompe-se o fio do ontem, e do amanhã. Importa hoje. Surpreende a interpretação  enganadora proveniente do desejo, da fantasia.

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A origem da história é interdição. Sem experiência. Apenas vontade. Trágica recusa do imediato. Estamos, mesmo na velhice presos nas velhas proibições maternas, paternas. Este jogo define o real. Desconfio do imediato, precisamente, porque duvido que ele seja realmente o imediato. Preciso do ordenado e tangível mundo conhecido, reconhecido, ensinado, racional, não emocional. A reminiscência. Não existe a experiência primeira. Nada é descoberto, mas sim reencontrado. O verdadeiro só pode significar no segundo momento, depois, depois de ser interrompido.É preciso copiar alguma coisa, repetir alguma coisa, fixar-se em algo já conhecido para definir o real.

Talvez esta emoção não seja nada mais do que a desconexão mórbida, um abandono a lembrança de luxo do presente

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Fotografar

O telefone silenciou. Aflição. Ninguém pode saber exatamente o que acontece nesta rede de informação, precária. Quem são essas pessoas?
Trabalho para uma Corretora de Imóveis. Qualificações: polidez, beleza, mansidão, e matemática. Fisgar o peixe, o negócio se faz sozinho.
A caixa de morar esconde, mostra quem somos. Empilho os livros, em colunas. A casta, o invólucro, o buraco. Do quente para o frio. Esconderijo, o lugar. A verdadeira roupa, a casa. Vou limpar, polir, arrumar as gavetas pequenas daquela cômoda.
Na lotação, inquieta, sinto o olhar. Serão meus sapatos altos? Batom vermelho. Saia justa. Maquiagem. O cabelo excessivamente puxado…
Apago o fogo que ainda queima. Noite de terror. Por que tanta inquietude, e tanta agitação? Imobilidade, solução. Ninguém bateu na porta.