MOLDURA SEM RETRATO um anexo que se pretendia esqueleto e completo em 2001 para boa revisão … Agora no Amoras.
“Tentei refletir sobre o começo da minha história. Há coisas que não compreendo. Mas isso não significa nada. Posso prosseguir. ”
Malone Morre, Samuel Beckett
SOMOS O QUE NÃO JOGAMOS FORA.
Às vezes me parece que nunca joguei nada fora, outras que tudo o que fiz foi descartar. Em toda experiência é preciso buscar a essência que afinal é o que resta. Eis um “valor”: jogar fora muito, para poder guardar o essencial.
Restaram as cartas: ausência de som. Quem escreve? Para quem? Expressões como querida amiga, minha filha, amado, caríssimo ou qualquer outra forma são os índices para o que deve seguir. Ou um nome como José, Francisco, Isabel. Cartas de Lispector, de Iberê Camargo, de Maria Anita Athayde? Carmélio Cruz, Paulo Fernando, Edy Lima. Jean Lehmans, Flávio, Paulo Hecker Quem é quem? Confidência, cotidiano, intriga, amor, raiva. Um personagem, dois. Importa o cenário? Imaginação. Interlocução. As cartas. Não explicam apenas contam… E, nas respostas uma nova história. Às vezes me parece que nunca joguei nada fora, outras vezes que tudo o que fiz foi descartar.
JUSTIFICATIVA
Em toda a forma de ser há incoerência: mistura de prazer e calamidade inconcebível. O homem constrói muros, esculpe, martela, tece as tiras de couro do açoite, forja correntes. O homem quer esquecer, mas é impossível fechar os olhos, pois volta sempre e sempre, sob formas renovadas da realidade. E cada qual exige para si um espaço próprio, um estreitamento a superar o outro.
Recordar e captar, o eu a voltar, a retomar o passado. Conhecer e reconhecer, alimentos da memória: proteção contra a felicidade e desdita, proteção contra o insuportável. Derradeira saudade, saudade de tamanha força que vibra fisicamente. Estremeço. Saudade corpórea, inextinguível. Incompreensível? Talvez. Assim, pior do que nos separarmos de alguém, de alguma coisa é sucumbirmos ao feitiço de alguém, ou de alguma coisa, ou nos deixarmos conduzir. Também triste é não admitir o erro, o equívoco. Contudo, na ficção não existe mentira, nem erro ou equívoco: algumas evidências são pessoais. Sofre-se a vida. E, o sofrimento não é o sofrimento maior ou menor do que os que os outros sofrem … As escolhas nos definem. De repente se pode ter a visão da imensa, profunda solidão. Somos, irremediavelmente, solitários. Se aceitarmos a vida como ela chega: permanecemos em jaulas, oscilantes. Há que reconhecer. Vivemos dentro de caixas rotuladas. Tudo já está determinado desde o nascimento: romper o invólucro, e adaptar-se. Respirar é exceder; sufocamos amedrontados. Não saímos da caixa, e ela se transforma em tudo o que sabemos.
Vemos através dela homens brancos com olhos azuis, louças transparentes postas em toalhas brancas, casas amplas com varandas. Mulheres tricotando ou lendo. Jasmins, roseiras. Um dia depois do outro. O médico, o engenheiro, o homem do encanamento, o pintor, a roupa da loja do Senhor Frederico. Consumo de pérolas, chá, peixe e frutas. Nenhum excesso. Pouco sol, pouca chuva, vento que faz música, e estamos todos confortavelmente comentando sobre as crianças que nascem surpreendentemente rosadas.Lutamos para definir aquilo que não somos. Vamos de um extremo e outro. Um saber, e um nada. Estar à margem direita ou à esquerda. O tempo escorrega num risco da memória.
Aqui as cartas são franjas. Lidas, degustadas, relidas, perdidas. Um curso, uma ponte; a relação. Lentas, mansas.
As cartas incluídas são textos soltos, fatos, incidentes. Uma carta pode ser a história toda. Ao serem lidas se transformam na aventura: selecionadas narrativas subjetivas, como qualquer palavra, ou tua, ou minha. Tomamos posse dos discursos que nos modificam. Ou que nos inquietam. O homem narrador, não protagonista. Os acontecimentos ocorrem num sentindo, e nós o vemos no sentido inverso. Cartas são isto, ou aquilo…Embrião da verdade, mas não a verdade. Então não existe real, mas o possível. Todo rabisco é texto. O texto, leitura. As cartas, o quebra cabeça.
1.
NÃO ESTÁS AQUI
Passaram-se onze anos! Outra mudança, desta vez radical quanto a espaço. Os livros aqui, amontoados. Devo abrir um por um: recolher fotos, cartões, dinheiro e até cartas… Um dia, dois, e no terceiro, encho um carrinho de supermercado, chamo os interessados, e fecho os olhos. Esqueço. Há tanto para ler! Tão pouco tempo! Luxo inviável. Voltei para a cidade: o apartamento? Uma grande sala iluminada, duas janelas rasgadas até o chão abrem as venezianas para uma sacada de um metro e tanto de largura. O balcão de ferro abaulado, uma trama pintada de branco. Coloquei vasos: carreiro de violetas, jasmins, orquídeas, alfazema, uma muda de pitangueira e um arbusto de primaveras: bom espaço, ensolarado. Pelas venezianas, o jogo de luz. Trouxe os discos de vinil, a pequena vitrola, caixotes com livros. A estante, eu mesma pintei de vermelho queimado. Gostei de escovar, ordenar… Naquela mesa baixa, de duas gavetas, coloquei a pasta de papelão das gravuras, arrumei os livros de arte, dicionário, também os dois vasos de cristal.O quarto não é grande. O banheiro com banheira, espelho sob uma janela de trinta centímetros de largura, lá no alto da parede do sol. O piso com branco e preto. Cozinha apertada.Passaram-se onze anos. Hoje encontrei e reli tuas cartas. Uma delas colada, como se nunca tivesse sido aberta: quatro páginas de letra esparramada. Contas da morte da tua mãe, do testamento, do retrato que encontraste. Naquela tarde, fiquei contigo. Estou de férias lá da loja. Olheiras, por noites em claro. Durmo pouco, os carros buzinam, as pessoas gritam, e há gatos na vizinhança. Na calçada, lá em baixo, as mesas do café–restaurante, também uma casa de sucos logo na esquina. Apenas a floricultura fecha as portas cedo.Os jacarandás enfeitam meu horizonte. Sinto-me como se estivesse bem no meio da calçada. Instalei a poltrona de orelhas ao lado da janela; lembras dela? Estofei de amarelo escuro, comprei uma banqueta para apoiar os pés. Ias gostar.E tu não estás aqui. Onze anos se passaram dos passeios, do café preto, do cigarro mentolado, das frutas secas, e dos pastéis da esquina.
2.
AS CAIXAS
A chuva transforma, esconde a cidade, na semelhança da bruma, do cinzento. De volta a Porto Alegre.Não reconheci o cheiro: não mais terra molhada, não mais verde derramado da mata, sob a chuva; mas selva de cimento. De volta ao jogo das caixas. Uma vida arrumada em caixas. As caixas de Cooper. Aquelas que iniciam no ventre da nossa mãe; depois na escola que nos escolheram; nas perdas que nos impuseram; nas decisões prementes dos tempos certos para escolher (e nem sempre tão certos, lá, dentro de nós); finalmente outra caixa fechada, sem saída, no caixão ou no forno crematório. E existem, ainda, as pessoas que nos lavam em suas idéias: somamos tentativas e encontros; queremos crescer; mas ficamos, para sempre, naquela primeira caixa quente que chamamos de útero. Útero materno: sem lutar, sem fazer força, sem dor. É isso o amor. O amor que afoga. A queixa é o outro. Palavras que não explicam; já disseram antes; antes mesmo de serem usadas; estas usadas palavras que saem assim tão rápidas, lá de dentro da gente, num sufoco de angústia: somos palavras…Ou sou pedaço buscando outro pedaço.
As pessoas, normalmente, justificam a vida quando explicam o mundo através dos acontecimentos: guerras, miséria, superpopulação, desmatamento, imigração, poluição, discriminação, doenças. Pensam que estão inseridas no mundo, mas, é o mundo que está dentro delas. O mundo (de dentro para fora) é cada um de nós. Nós é que carregamos este mundo, nós o imaginamos. Não existe nada se a pessoa não descobre isto.
O mundo é nosso olhar. Quem tu és – quero saber; diferente de quem eu sou? Assim, tateando, tu e eu, na inquietude da alma, afundamos. Burguesa ou operária. Patroa ou empregada.A palavra preconceito resvala no teu liberalismo aberto. Assim, ama-se apenas fração da pessoa, e renega-se o inteiro. Nesta classe social ou naquela, … deveria o amor ser igual? Se meu estágio espiritual se consumasse não estaria presa na saudade de sermos apenas nós os dois? Aguardo lançamento do teu livro. O milagre pequeno, mas legítimo: poemas, contos além das tintas. Gosto do silêncio fresco da madrugada, do tronco rugoso da vida que não se conta, mas se dilui em feridas abertas, na culpa, na raiva.
Que todos os esforços se soltem no suor…
3.
AMORES
Exposição de amores, risível: temos mesmo que transformá-los em ficção? Importa descobrir o fio, voltar ao tema. Da possível aresta, renovar o velho, encontrar o bom lugar para uma vaidade menor, a luta desesperada pelo eterno, pelo Era uma vez… Felicidade, ou infelicidade? Desastroso aos meus olhos perceber que mesmo os velhos amigos ditos especiais também sucumbem ao ridículo. A vergonha paralisa: não posso ter vergonha, é preciso ousar a vaia. Já confiei na integridade, tropecei em pequenas e grandes mentiras, tudo pela vaidade. A importância que nos damos é de comédia. Temos necessidade de nos misturarmos uns aos outros, e fugir ao isolamento. Somos, contudo, reconhecidos de forma diferente daquela com que desejamos ser vistos: estranhos a nós mesmos? Tornamo-nos confortáveis na intimidade do silêncio. É preciso encontrar a sobrevivência, mesmo que em desespero. Palavras e trejeitos escorrem como água perdida. Elas nos fazem pecar. Surpreendo-me ambivalente, batendo palmas. Tu, abominável devorador da beleza! Plasmei a imagem que seria o retrato: amigo, eu me queria desenhada tal e qual eu mesma me via, não como tu me desejavas. Foi por medo, por vaidade que nunca conversamos sobre nós dois. A mesma vaidade me impede de contar a verdade. Quem não ousa ser a criança, nunca alcançará o adulto; somos o resultado da infância. Eu me esgueirava… São aqueles remotos sonhos que brotam agora. E também o baile, a valsa, o samba, o ritmo da saudade: isto significa voltar para ti. Busco oportunidade: inteligência a mover acontecimentos, atrair pessoas: o grupo quer se reconhecer … Não existe acaso… O correto? Oportunidade de executar. Estou tentada a me corromper. Não, não é isto. Quero te acordar para discutirmos sobre o que é, ou não, relevante. Começou a chover e a ventar: escureceu. E são apenas três e meia da tarde.
4.
ISADORA DUCAN e RODIN
Abro a última gaveta daquela cômoda grande da sala de jantar, agora no canto direito. Ali estão cartas, fichas, rascunhos.
Passados tantos anos sem te escrever, retomo nossa conversa, transcrevo parágrafos de um livro! Reconheço na leitura o sentimento de perda; a inexperiência. O encontro de Rodin com Isadora naquela tarde foi a impossibilidade de.
Rodin era baixo, troncudo, vigoroso, com o cabelo aparado curto, e umas barbas patriarcais. Mostrou-me as suas obras com a simplicidade dos grandes homens. Por vezes, murmurava um nome diante das suas estatuas, mas percebia-se que esse nome, qualquer que fosse, não tinha a menor importância para ele. Depois, corria a mão pelas formas da sua criação, como que a afagá-las. Vinha-me a impressão de que sob estas carícias, o mármore se amolecia, igual ao chumbo derretido. Finalmente, pegou num bocado de argila dúctil e passou a afeiçoá-la entre as palmas musculosas. Enquanto isto resfolegava com força. Todo ele era uma forja em trabalho, crepitando fogo. Num instante tinha moldado um seio de mulher, que lhe palpitava entre os dedos.
Tomou-me pela mão, chamou um fiacre e fomos até o meu atelier. Vesti rapidamente a túnica e dancei para ele um idílio de Theocrito, que André Beaunier havia traduzido especialmente para mim:
Pan aimait la nymphe Echo,
Echo aimait Satyre, etc.
A seguir parei para explicar-lhe minhas novas teorias sobre a dança, mas não foi difícil certificar-me que ele não dava nenhuma atenção às minhas palavras. Sob as pálpebras caídas, fixava-me com olhar brilhante. Depois, com aquela mesma expressão fisionômica que adquiria diante de seus trabalhos, aproximou-se de mim. Passou-me a mão pelo pescoço, pelo peito, acariciou-me os braços, correu-me os dedos pelos quadris, pelas pernas nuas, pelos pés também nus. Pôs-se a modelar-me o corpo, como se estivesse diante de um barro mole. Enquanto isso se desprendia dele um bafo ardente, que me queimava, enlanguescia… Por todo o desejo gostaria de abandonar-me entre os seus braços, e o teria feito, se não fosse a absurda educação por mim recebida, e que me levou a recuar num gesto de pavor. Então, sem mais pensar, enfiei, às pressas, o meu vestido, mesmo por cima da túnica, e conduzi-o precipitadamente até a porta. Que pena! Quantas vezes não lamentei, depois, aquela incompreensão pueril que me privara de oferecer a virgindade ao grande deus Pan, ao poderoso Rodin![1]
Escolhas erradas, ou menos? A insegurança não nos permite sonhar com estrelas, mas com margaridas do campo. A beleza equivocada da simplicidade. Somos ceifados. O encontro de Isadora com Rodin, uma página. Lamento o que já não posso desfazer. Penso no que poderia ter sido diferente entre nós dois…O poema inspirou Drummond: eco e ressonância.
Pan aimait la nymphe Echo,
Echo aimait Satyre, etc.
Curiosa conversa entre homens de diferentes tempos. Tu não és Rodin, não sou Isadora, mas também lamento minha incompreensão.
5.
O BEIJO DA ESCADA
O beijo da escada. Descrever este momento, abrir a porta…Existem coisas que se faz, mas não se verbaliza porque estremece o equilíbrio necessário para suportar a vida…A palavra é volátil: pragmática ou traiçoeira? Projétil, força, permanência, desvio, contorno. A palavra escrita, ou pronunciada efetiva.A história que começa.Depois que mencionei o beijo, passamos a nos beijar sempre que nos pensarmos em escadas.
“As palavras fixam as coisas. Depois que foi dita, um coisa sai da penumbra. Ali está ela – sempre. Há cinco minutos ainda não existia. Agora é uma parte de mim e de você. Assim escreveu Charles Morgan no romance A História do juiz. Foi como aconteceu conosco. Foi dito. E não foi amor, foi querer ser amado. A vontade de ser objeto de amor o fez escrever tantas cartas. Sim, eu me lembro. Foi junto à escada, próximo do elevador, na penumbra de uma tarde que está distante.Dois lábios se tocaram. Aconteceu sem palavra. Esse beijo talvez seja o início do romance que vivemos, sem presença física. Nós nos procuramos, nós nos apalpamos à distância, nos trocamos carícias. Escondemos nossos sentimentos, nossos desejos, na palavra reservada, nas reticências, nos subentendidos.Talvez seja este pecado que nos proíbe o encontro.Agora, teu cabelo voltou à cor antiga, natural.Gosto de te imaginar como antes. Lembro-te na transparência de tuas vestes na intimidade daquele apartamento, em Botafogo.Nunca ousei dizer o que se passava no meu íntimo. Contive-me sempre: foi timidez, foi respeito.Depois, havia entre nós (…) as crianças, a diferença de idade.Também imaginava nada significar para ti. Pensava que tinhas outro alguém no teu coração.Custa-me dizer isto, mas se falo, devo ser sincero na minha confissão.Tu evocaste o beijo trocado. Essa evocação quebrou o selo do nosso segredo.Talvez eu tenha dito o que não devia dizer.Se a palavra ofende, rasga esta carta e perdoa.Trabalho num quadro de grande formato. São três figuras. Há nelas a solidão de sempre.
(2 de junho)
“Quando jovem, sempre me comovia com o toque da sirene da ambulância, porque nela sentia a solidariedade humana. Agora, na velhice, o que mais me comove é o toque do silêncio. Hoje ele soou dentro de mim: morreu meu querido amigo (…). Estou profundamente triste, jamais o esquecerei.”
6.
O BAZAR
Li no jornal o teu protesto. Que seja bem-vinda a tua voz. Acho mesmo que há demérito quanto ao genuíno. Estamos na tua luta. Continuo trabalhando no BAZAR PRAIANO.Mar verde, água limpa, sem ondas e prazer. Tudo é verão. Sol e sol. Natureza quieta: silêncio no barulho do mar. Tudo para ser vivido neste momento. Convite para família, paro os pares, pro amor. Quando pretendes aparecer? Vem logo. Ansiedade finita. Pessoas carecem de amigos. Eu te necessito, mas a vida segue aberta. Vivo experiência curiosa. Estar no Bazar concretiza o tempo. Valores estratificados, comportamento regular. Abri mão de valores, de posição social, termino o dia com as mãos doloridas e gretadas quando limpo as prateleiras.A experiência do bazar é uma porta que se abre pro comércio. Estou gostando do aprendizado. Gosto deste público e deste tablado. O laboratório, a fantasia, a observação. Olho, faço, estou dentro do ritmo quente de vendas e compras compulsivas; respiro as pessoas numa troca cúmplice de olhares. Todos de férias, tudo solto, tudo vagar e calor no meio de pastas de dente, colheres, bandejas, revistas, café expresso, enlatados, pão de queijo, roupas, chapéus, cestas grandes, pequenas, redes, brinquedos, necessidades, futilidades, cartõezinhos, livros e o que hoje chamam de decoração: velas, caixinhas, potes, enfeites, perfumes, vidros, pratos, vasos e tudo que possas imaginar. Preciso ter dinheiro para comprar uma loja e investir. Estou integrada. É possível. Estou agitada, fervendo por dentro…Má notícia: engordei para todos os lados …. Rever alimentação, amor-próprio. Estás rindo? Sim, fui prepotente achando que a vida seria facilidade. Tolice.Enfim, cá estou diante de uma porta aberta, colorida, engraçada. Vou entrando… Da invasão. E temos os castelhanos que estão por tudo: saem dos canos, dos porões, surgem dos ralos. Espalhados como praga. Tropeçamos neles; se alguém nos dirige a palavra em português calamos abasbacados, surpresos. Não compreendemos. É assim. Compram livros em espanhol, é natural. E tudo que seja inútil. Gritam. Alguns conversam e são educados, gentis, mas poucos. Não há mais Torres, mas colônia. Assim o enxame de gente lota estreitos corredores e vãos do Bazar e são estas pessoas os compradores. O trabalho estaciona, então, no vigiar o roubo, dar preços e gastar sapatos num ir e vir vazio. Suamos muito o tempo todo: abafado, quente a ratoeira. Os produtos desaparecem das prateleiras: leite, ovos, pão, jornais, cachaça, brinquedos, dados e cartas, camisetas e bagatelas… Meus olhos caem pesados num sono crônico, azedo e a tristeza não se põe lá, mas guarda em casa também o vazio de desgosto. Como pode ser engraçado viver! Pouco sono. O movimento que entra na madrugada cobre a noite, cobre as tardes, realmente, apenas as manhãs são silenciosas e mansas: o acordar é lento. O sol entra pelas janelas secando o suor da noite gotejando o dia. Depois será mesmo o silêncio e a quietude do inverno? Hoje é segunda-feira, não irei ao Bazar e posso, assim, planejar o trabalho acadêmico da ordem: continuar. Já levei os cachorros na praça. Bebi café preto, comi pão com manteiga e mel. Hoje é a segunda-feira da última semana de janeiro.
7.
TORRES
Se a ficção fosse verdade, as pessoas não se surpreenderiam. O inacreditável: vida como ficção escrita no silêncio, ou nas estrondosas e doentes gargalhadas do desespero? Devoro livros. Acomodo-me na página virada; não antes de ter passado quatro ou cinco dias reclusa; não antes de ter dormido noites e dias no sobressalto. Juntei forças. Agora olho para o mar como se fosse única e possível solução. Não dormir, mas caminhar sobre as águas até a Ilha dos Lobos. O milagre. Posso viver através da janela, desenho possibilidades ao mesmo tempo em que te escrevo. Tuas chamadas subvertem minha vida: do espanto, ao grito da ordem. Há possibilidade de correr ao teu encontro: tocar o pote de ouro do arco-íris, mas, ao desligar o telefone, a imobilidade novamente me envolve. A janela é o que eu tenho; perco o olhar no limite entre mar e céu. Penso aquarelas; barcos povoam sonhos. Não escuto o outro lado do fio. Apenas percebo que me chamam, mas não compreendo o que me pedem; permaneço paralisada no medo. As pessoas voltarão: vozes e conceitos estarão imobilizando minha vida. Pânico. Não encontro a solução. Exercito o corpo nas madrugas rosadas do amanhecer: sou dona do mar, destas areias, enquanto a cidade acorda. Os turistas, veranistas, ainda dormem e pesam nas camas confortáveis das férias que se iniciam.
8.
O PRIMEIRO DESENHO
Tantas cartas desapareceram na desordem da irreverência. Quando temos vinte anos não nos damos conta da importância de cada momento: passamos pelas experiências como furacão. Quero dizer da velocidade com que as mudanças se sucedem. Sem reflexão, com descuido.
Tantos anos passados! Vejo-te à beira do mar. Enche, pois as tuas mãos de mar; enche teus olhos de luz. Na minha lembrança tu és uma presença. Eu perdi o jeito de correr pelas praias e de me misturar com os peixes. Faz isto por mim. De Torres guardo este fragmento, por certo o mais agreste, o mais autêntico: ao pé do penhasco, o mar enrola-se como uma grande cobra verde. Ao longe, ele é sereno. A distância dá placidez às coisas. Naquela época lamentávamos o verão, as férias. Turismo é conversa nas calçadas. Música caminhando alta pelas ruas, praia tomada, odor de multidão. Silêncio pela manhã. Depois de onze anos volto a te escrever. Ou já passaram dezenove? Sigo trabalhando, lendo. E me debruço na tua vida. Vou molhar as plantas no jardim da sacada. Já volto.
9.
INVIABILIDADE E POEIRA
Caminho pelas beiradas. Imagens armazenadas: nós, os dois. Eu me sinto espiada; esmoreço. Por que será que não consigo te reencontrar? Estranha entre estranhos. Sinto-me diminuída. Esnobismo: querer impressionar outras pessoas. O esnobe é criatura com mente agitada, insatisfeita com sua posição, mas quer consolidá-la. Está sempre brandindo um título, ou uma honraria. Uma nova sugestão na ordem das coisas, na cara das outras pessoas, para que acreditem ou o ajudem a acreditar naquilo em que não acredita: que ela é, de alguma forma, pessoa importante. Aquele quase autismo de algumas pessoas, pretensão da certeza, falta de humildade. Impossibilidade de aprender no outro as diferentes formas de vida. Ou medo? Ficção: esquecemos, e no esquecimento recriamos. Vou fazer um café. Prendi os cabelos naquele coque frouxo que tu gostas.
10.
TEMPO
Como ler no tempo, o tempo? Explicitar, descrever ponderações, inquietações… As pessoas, nossas pessoas, tomam formas; conseguiremos reencontrá-las? O virtual se transforma em experiência. A palavra nos agarra, exigente. Na expressão, a realidade e a possibilidade se misturam.Talvez eu nunca tenha amado, nem sentido ciúmes. Talvez o choro produza apenas angústia, tristeza.O que se transforma é a visão…Alma cigana, viajante: subo morros desço encostas. Levo pedras nos braços? Ou carrego minha casa como caracol ou tartaruga? … Sinto dores de amar. Não pintei a terra de azul. Vou usar os pincéis.
11.
PEDAÇO DE LEMBRANÇA
Açambarcar, engolir, ver cor nas palavras é o processo. Absorvo algazarra. Acompanho correrias e brincadeiras, joelhos esfolados, seguro bolas que rolam nas calçadas, empurro carrinho de boneca, bocejo. Os mesmos comandos mecânicos. O doméstico desta vida verde junto ao morro. Roberto Carlos, depois Beethoven, concerto para piano. Li o livro que mandaste pelo correio. Passei lençóis, experimentei a nova receita de bolo de laranja.Dormi um pedaço da tarde.Penso na urgência de fazer alguma coisa que verdadeiramente importe: sair do doméstico depois de ler tua carta. Tens razão quando escreves que encontrei a felicidade nas coisas simples: marido, casa arvoredo, gado. E escreves “e para alimentar a tua fantasia, as nuvens, que nos dias ensolarados, povoam o campo com um rebanho de sombras. ”E ainda escreveste assim: “…encontraste felicidade nas coisas simples: marido, casa, arvoredo, gado, e para alimentar a tua fantasia, as nuvens que, nos dias ensolarados, povoam o campo com um rebanho de sombras. Reencontraste o sabor do pão feito em casa, tu que por tanto tempo te nutriste com o pó do asfalto da grande cidade. Eu te compreendo, mas não deixo de pensar na tua formação esmerada, nos teus companheiros, clássicos e modernos, da língua francesa. Tu os abandonaste?
As pessoas acomodam velhas experiências, e como se fossem linhas desfeitas e reaproveitadas do tricô, refazemos conceitos sobre a vida. Este prazer que sinto hoje é somatório. Talvez porque eu seja quem eu sou consiga ampliar estas modestas alegrias que a vida no campo proporciona. É como tu segues escrevendo:
“Também gosto da vida da campanha — bem a conheço — vida arrastada, modorrenta, feita de dias longos, demorados. Em Porto Alegre também há muito remanso, muito sossego. Mas eu não me deixo adormecer na modorra.É preciso estar atilado, se não, a gente vira coisa, morre por dentro.Tenho saudade das rosetas, dos mata-cavalos, das marias-moles, das guanxumas e dos carrapichos que jogava, por judiação na corujinha da minha irmã preta. Hoje tudo isso é lembrança. Eu também sinto falta dos amigos do Rio, não da cidade. Tenho trabalhado muito, de sol a sol. Reencontraste o sabor do pão feito em casa, tu que por tanto tempo te nutriste com o pó do asfalto da grande cidade. Eu te compreendo, mas não deixo de pensar na tua formação esmerada, nos teus companheiros, clássicos e modernos, da língua francesa. Tu os abandonaste?
Também gosto da vida da campanha — bem a conheço –, vida arrastada, modorrenta, feita de dias longos, demorados. Em Porto Alegre também há muito remanso, muito sossego. Mas eu não me deixo adormecer na modorra. É preciso estar atilado, se não, a gente vira coisa, morre por dentro.Tenho saudade das rosetas, dos mata-cavalos, das marias-moles, das guanxumas e dos carrapichos que jogava, por judiação na corujinha da minha irmã preta. Hoje tudo isso é lembrança.Eu também sinto falta dos amigos do Rio, não da cidade.Tenho trabalhado muito, de sol a sol. “
Diferentes cenários, idênticos e domésticos sentimentos.
Nostalgia ao ler tua carta. O tempo da campanha foi paz, e crianças: depois ficou tempestade. Somos nós que mudamos ou a vida nos surpreende com atropelos? A vida se desdobrava mansa. Não sei se lamento. Ao ler o que escreves repasso sentimentos. Aos teus olhos, aos meus, o novo deve ser ponderado. Espectadora de teus projetos; os meus seguem nas gavetas.
12.
CONSTRUIR OU DESTRUIR
Acordei assustada do sonho. Fiz chá, acendi as luzes. Vi o dia nascer. O significado da necessidade não está em construir e destruir peculiar à natureza humana? É preciso ser livre para viver, mas desanimo no ócio, no gesto cansado da tristeza.Há urgência na vida. Absorvo a minha separação, esbarro na liberdade vazia.Que exista esta agonia! A vida queima, nós queimamos.Qual será o momento do encontro? Chegaremos à margem do Guaíba? Ao poente? O lençol cobre a terra, mas o ar conterá todas as transgressões…Algumas passagens da vida têm a pincelada do corte, da ruptura com o pedaço interno lá de dentro do corpo, dói.Cheira a morte, doença. Acabamos sentindo fisicamente aquilo que temos no coração.Será justo, não será? Por quê? Porquanto fizemos e desfizemos, começamos, recomeçamos. Fizemos e desfizemos, não saímos do lugar, apenas morremos um pouco. Dias longos chegaram: não estavas aqui, poderias estar. Desânimo, cansaço igual ao teu. Quero voltar para nós. Costura minha dor e faz bordado deste arrependimento.
13.
O SOMBRIO DO PAMPA
Se estivesses comigo, eu me sentiria melhor. O sombrio dos pampas aumenta a nostalgia. Viagens são provações: tentativas inúteis de reconhecer um jeito novo, melhor de viver. Suponho que carregamos o ranço natural dos vícios, mas só as virtudes nos aquietariam.Tu e eu, vacinados pelo sol e pela água salgada do mar, desgostamos do mato e do frio. Tua carta tem dor, mas sinto-te a salvo pelo trabalho. Estás envolvido num ir e ir de exames (cada vez mais longe), sem diagnóstico alentador. Afinal o que dizem eles do teu mal?
Fui conversar com o amigo jornalista, conforme recomendaste; entreguei uma cópia da pesquisa, lemos o artigo que a revista Ponto Certo publicou. Elogiou. Depois, engrenou nas reminiscências: penoso para mim.
Está afastado da editoração, impossibilitado de me ajudar. A idade agarrou sua energia empreendedora. De repente, arrastou a conversa sem diálogo: memória aos borbotões, sem ponto nem vírgula ou parágrafo. Eu te agradeço a ideia. Acho que desenvolvo exigências estúpidas, meu trabalho não avança. Voltei para casa sem esperança de transformar os estudos em livro.Da conversa guardei os degraus: estou cansada de subir escadarias. Desisto amigo. Deixarei os poetas guardados na gaveta, volto aos pintores. Recomeço a pesquisa sobre o pintor Iberê Camargo.Dou-me conta de que a FIC (Fundação Iberê Camargo) transformou-se em invólucro mais importante do que a obra que abriga.
O sonho do artista, o cuidado de guardar, catalogar para valorizar a obra se perde nas rampas do museu, a arquitetura quer tirar a inquietude da obra… Se o rio Guaíba engolisse tudo, o que se lamentaria? Não ter visitado o museu ou não ter conhecido a pintura de Iberê Camargo? O arquiteto português, premiado, está em todos os jornais, o empresário presidente, embevecido com o sonho que se realizou. Quem sonhou o quê?
Não consigo pensar. O próprio Iberê quem aprovou o projeto? Ficaria feliz com o resultado deste farfalhar da arquitetura? Talvez seja apenas eu a incomodada.
14.
LEITURA
Eu te repasso o texto de Calvino. Ele explicou bem melhor…
“Nessas semanas o assunto obrigatório de todas as conversas nova-iorquinas é o recém-inaugurado museu projetado por Frank Loyd Wright para abrigar a coleção Salomon Guggenheim. Todos o criticam; sou defensor fanático, mas me percebo quase sempre isolado. É uma espécie de torre em espiral, uma rampa contínua de escadas sem degraus, com uma cúpula de vidro. Subindo e nos debruçando temos sempre uma visão diferente com proporções perfeitas, pois há uma sobressalência semicircular que corrige a espiral, e lá embaixo há uma fatiazinha de canteiro elíptico e uma vidraça com um gomo de jardim, e esses elementos, mudando o tempo todo a qualquer altura estejamos, são exemplos de arquitetura em movimento de exatidão e fantasia únicas. Todos dizem que a arquitetura sobrepuja a pintura e é verdade (parece que Wright odiava os pintores), mas o que importa: a gente vai até lá em primeiro lugar para ver a arquitetura, e depois também os quadros os vemos sempre bem iluminados, uniformemente, que é a primeira coisa. Há o problema do chão sempre inclinado que constitui um problema de como fazer para manter o quadro em pé. Resolveram-no pendurando os quadros não na parede; mas em braços de ferro projetados para a frente da parede ao centro do quadro. De fato o acervo de Guggenheim não é milagroso, à parte a formidável coleção de Kandisnsky que já tínhamos visto em Roma, e há muitas peças de segunda categoria. (Não como o vasto Museum of Modern Art que tem só obras-primas de tirar o fôlego, ou até as belíssimas salas de pint. Moderna no Metropolitan, estragadas infelizmente por um horrendo Dalí que as pessoas fazem fila para ver.) Todos concordam ainda em criticar o exterior do Museu Guggennheim, mas eu gosto dele também: é uma espécie de parafuso ou eixo de torno, perfeitamente em harmonia com o interior.”
Ítalo Calvino in Eremita em Paris – Páginas Autobiográficas.
Ao ler Calvino que defende a pujança do museu Guggenheim eu me senti no mesmo tempo. Enquanto leio converso. É ótimo. Encontrei este fragmento no Diário americano 1959-60. Naturalmente que eu me incluo no Todos dizem… Sublinhado no texto acima, quando penso na Fundação Iberê Camargo. Não me surpreendi com o arquiteto português premiado que se inspirou no museu do americano Wright; e fiz o paralelo dos nomes Guggenheim com Gerdau…, mas ficou Iberê Camargo, a coleção de quadros lhe pertence, não é? Ou mais importante seria Maria Camargo por ser a legítima proprietária? O que achei engraçado foi o sentido inverso de abriram tantas notícias nos jornais porto-alegrenses a Fundação, não a obra, ou a coleção do artista Iberê. Os quadros trágicos e gigantescos ficaram soberbos nas paredes brancas. Algumas vezes isolados da rota das rampas. Isto eu tenho que admitir. Naturalmente, em Porto Alegre os visitantes se surpreendem positivamente com o monumento, não visitam a pintura expressionista de Iberê, aliás, de modo geral desgostam, talvez por não compreenderem.
Talvez não estejamos de braços com a modernidade nem com coleções de primeira linha. Estamos habituados a quadros de decoração interna, flores, frutas, paisagens. Nada de protestos ou narrativas inquietantes, mas um óbvio acomodado.
Iberê escreve:
“ Minha contestação é feita de renúncia, de não-participação, de não-conivência, de não-alinhamento com o que não considero ético e justo. Sou como aqueles que, desarmados, deitam-se no meio da rua para impedir a passagem dos carros da morte. Esta forma de resistência, se praticada por todos, se constituiria em uma força irresistível. O drama, eu o trago na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais íntima que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia-a-dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida. ”
Amanhã volto a te escrever. Eu te contei que o trabalho na loja tem diminuído? O comércio, para crescer, precisa de muito dinheiro …. Pequenos negócios te matam antes de usufruíres dos bons lucros.
15.
PERPLEXIDADE
Perplexidade. Fantasia inconclusa de amantes, amados; outro homem tomou sorrateiramente teu lugar. Alimentamos, tu e eu, a imaginação. Basta alguém sonhar, Deus permitir, foi isto que disse o poeta? E os avisados se apossam: vira sonho de todos. Vibrações cósmicas! Acho que os portugueses nunca perdoaram a beleza do Brasil, muito menos a independência: assim, hoje, nos lambuzamos com a possibilidade fraterna de sermos o todo, não filho rebelde. O português, de além — mar, tem outro ritmo, assim mesmo, nós brasileiros cantamos, a África entoa. Aliás, somos portugueses. Foi o fato de ser português ou a genialidade do arquiteto que definiu a escolha do projeto? Voltarei a te escrever sobre isto. Voltei ao museu conforme recomendaste. Subi as rampas com novos olhos. Gostei da tua carta.
Ontem, a emoção. Hoje, refúgio no mar.
O sol invade o quarto, sinto o calor do verão que se prolonga em maio. Será inverno, ou outono? Todas as estações misturadas, como sentimentos confusos, neste ir e vir peculiar ao clima. Sinto-me no canto da vida; tua ausência prolongada amolece meu corpo. Parece que estamos todos partidos, cortados, e sem o inteiro — a dor fica maior. Ameaçados, todos.
16.
OUTRAS NOTÍCIAS DE JORNAL
O arquiteto Siza: brilhante no projeto do prédio da Fundação Iberê Camargo. Maria Camargo se integra no voto de aprovação: “meu avô é português”. Relevante escolha coroada pela nacionalidade. O projeto foi premiado. Iberê selecionou arquiteto entre arquitetos. Quem sabe ele também tinha antepassados portugueses, ou seriam índios, alemães? Ou italianos? Ilustração retirada de uma de suas cartas:
A Coleção Maria Camargo justifica a Fundação, mas menciona na entrevista o fato de ter abandonado a carreira de artista plástica por imposição do marido. Inadequado momento. Tardia vaidade!
O jornal parabeniza construção, Jorge Gerdau, Maria Camargo.
A cada um seu valor! Ser sombra ou árvore? Modesto, ou obscuro? Ou é o natural atropelo pelo poder, pelo brilho?
É difícil reafirmar: Iberê escolheu o projeto arquitetônico. O artista quis preservar acervo de possível desvalorização, vendas indiscriminadas pela filha, comerciantes amigos, inimigos.
Resguardo natural e possível em se tratando de Iberê Camargo.
O enorme atelier-casa em Nonoai será transferido para a Fundação Iberê Camargo.
O assunto interessa. A história se escreve na ausência através de fragmentos de jornais?
Já existe um romance chamado Iberê – quase sem divulgação – de Paulo Ribeiro[2]. Ele menciona Goya. Então, as cartas se transformam em documentos contundentes.
(…)
“Agora vou mergulhar na pintura. Aliás, já reiniciei a recuperação do tempo perdido: pintei o retrato da (…). Foram – para concluí-lo – sete horas de trabalho sem pausa. Gostaria também de fixar a tua imagem, se não fosse tão fugidia.”
(…)
“Gostaria tanto que tivesses uma participação no que faço. Bem que eu gostaria de te transportar para a tela, na minha visão de maja desnuda.”
(…)
17.
GOYA
As leituras se misturam…
Escritor lê arrebatadamente, e mistura tudo para conseguir encontrar a sua forma certa pra contar, dizer o que sente. Difícil ordenar as prateleiras da memória; fazer junções necessárias, esquecer para reaproveitar, entender.
As majas pintadas por Goya trouxeram ao vocábulo um punhado de significados de beleza, erotismo, povo, vida…
Auto-retratos, abundantes na obra de Iberê: o conjunto, recorte significativo. Ao estudar a obra busca-se o tema. O retratado, o momento, nas tintas e nos traços, na tela a história que se confirma na leitura das cartas do pintor à sua escorregadia amiga. E sua autobiografia confirma a importância da mulher. No feminino o apelo, amizade, imaginação e pincéis se misturavam. Nas cartas as possíveis possibilidades amorosas se desenham na amizade. E ele pinta retratos. Descubro que alguns retratos não foram feitos, como faltam etapas de sua vida no livro Gaveta de Guardados.[3] Memórias Inconclusas seria mesmo um bom título para o meu trabalho, como já foi sugerido para os escritos de Iberê.
Transcrevo algumas cartas que ele escreveu, mas antes leia sobre Goya e faça ponderações.
No século XIX (como em qualquer outro) existiram certos artistas cujas realizações foram cruciais para uma avaliação dos nossos atos talvez menos urgentes. Não conhecê-los é ser ignorante, e não podemos superar suas percepções. Eles conferiram um rosto à sua época, ou melhor, mil rostos. Sua experiência observa a nossa, e pode flanqueá-la com a intensidade de seu sentimento. Um ensaísta sobre música que nunca pensou sobre Beethoven, ou um crítico literário que jamais leu os romances d Charles Dickens – o que valeriam as opiniões de pessoas como essas, que impulso poderiam ter adquirido? Pessoas assim não podem ser levadas a sério. Goya foi um destes artistas seminais. (…) Goya foi um poderoso celebrador do prazer. Sabe-se que ele amava tudo que era sensual: o cheiro de uma laranja ou axila de uma menina; o cheiro leve do tabaco e o ressaibo do vinho; os ritmos zangarreados e agudos de uma dança de rua; o jogo da luz sobre o tafetá, a seda transparente, o simples algodão; o arrebol da tarde se expandindo num céu de uma noite de verão, ou a centelha fosca de um coice de nogueira bem entalhada de uma espingarda de caça. Não é preciso olhar longe por suas imagens de prazer; elas impregnam sua obra, dos primeiros desenhos de tapeçaria que fez para a família espanhola – as majas e majos fazendo piquenique e dançando nas margens verdes do Manzanares, fora de Madri, as crianças brincando de toureiros, as multidões excitadas – até a sexualidade desafiadora do quadro La maja desnuda.” R. Hughes
Segue um texto de Iberê sobre sua obra, registro encontrado na correspondência do artista.
Registro. Um fragmento da carta.
As leituras fazem recortes dentro de nós, abrem janelas. E as palavras se cruzam.
Iberê descreve sua pintura:
Minha contestação é feita de renúncia, de não-participação, de não-conivência, de não-alinhamento com o que não considero ético e justo. Sou como aqueles que, desarmados, deitam-se no meio da rua para impedir a passagem dos carros da morte. Esta forma de resistência, se praticada por todos, se constituiria em uma força irresistível. O drama, eu o trago na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais íntima que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia-a-dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida.
18.
O PÂNICO
As dificuldades que nos impomos como seres sociais nos impossibilitam respirar. Perdemos a dimensão do normal. Desconfiança, inviabilidade nas relações humanas, tudo perturba o julgamento. Políticos, ou apolíticos, apenas vivos, imprestáveis. Não há clareza de pensamento, nem calçadas para brincar. Vivemos no tempo do pânico. É isto que a tua carta descreve, o pânico.
Li que a juventude nos salva, é preciso olhar para as crianças: pobres! Na arena estão os filhos! Alimentados pelos jogos do imperador, e, assim, passam bem; ou pensam que estão ótimos. A morte como notícia desalinha a alma.
Como explicar? Desistir? Abandonar? A despedida fica aos pedaços.
Quanto mais quero acertar o casamento, mais desastrado fica…
Arrasto o cadáver até a praia, como no filme O Sol Por Testemunha
(Plein Soleil De René Clement, França-Itália, 1960.
Com Alain Delon, Marie Laforêt, Maurice Ronet
Baseado no livro The Talented Mr. Ripley, de Patricia Highsmith)
Compreendo meu amigo as tantas mortes que carregas!
Compreendo a indignação em que te encontras.
Está descrito, ilustrado nos teus livros, no teu trabalho de consultor, o desespero. A grande solidão ensina a respirar…
Por isto nos olhamos, e por isto nos escrevemos– para nos consolarmos.
Tenho dor na ausência. Que estúpida eu fui!
Amigo querido, a depressão é a doença das pessoas: trata de livrar-te desse desânimo. Esquece a dor, agarra a memória. Escreve. Quero te ver, mas sinto-me amarrada nesta casa, presa na inquietude.
Estás exigindo demais do teu corpo; precisas alimentar a saúde pelo que comes, nada de excessos. Teus gemidos — eu escuto, percebo teu refúgio amargo. Desacerto com as pessoas pode ser a tua adaptação. Desabafa. Grita.
Sigo lendo sobre Iberê Camargo.
19.
O CARRETEL
Iberê Camargo descobriu o ponto, o tema. Na literatura nos damos contas das repetidas vezes que a temática surge para se consumar na obra mais importante. O difícil é descobrir o eixo, o motivo, o pessoal. Iberê se concretizou nos carretéis A cada um seu tema, sua repetição.
“O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo cordão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia, era segurar o carretel pelo cordão, e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre os panos, ao mesmo tempo que proferia seu expressivo ‘o-o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da’ (‘ali’). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. (…)”
“(…) Finalmente, em acréscimo, pode-se lembrar que a representação e a imitação artística efetuada por adultos, as quais, diferentemente daquelas das crianças, dirigem-se à audiência, não poupam aos espectadores (como na tragédia, por exemplo) as mais penosas experiências, e, no entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso constitui prova convincente de que, mesmo sob o domínio do princípio do prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na mente; … ”[4]
O feito, a obra se define neste aparecimento e retorno, num ato contínuo e repetitivo. O prazer da execução e o reconhecimento do público concretizam o trabalho. Por que o texto de FREUD? Ilustração.
A vida clandestina se desenvolve ao lado e paralelamente à vida pública: o pintor lança o seu carretel.
Através do sucesso dos carretéis ele passa a ser único.
Ser aquele que constrange, incomoda. Entre conflitos Iberê escreve:
(…) “Agora a loucura domina o mundo, comanda com a autoridade da razão, fala como se fosse a verdade. Pobres dos inocentes, pobres dos peixes, pobre dos animais. (…), o homem é o único animal que não deveria estar na Arca. As criaturas vão ao extermínio jogando bombas atômicas e gases venenosos, como se fossem confetes. Ah! A imagem da loucura entrará em todas as casas pelo mundo afora, para a alegria sádica que dá ver morrer. Depois se põem coroas no túmulo do herói desconhecido, e o Papa reza pelos mortos.”
O mundo pode ser salvo por insubordinação.
Sem os protestos o que seria da civilização, da cultura, ou daqueles que nos dão, existindo, uma justificativa? Os insubordinados? O “sal” da Terra.
Tudo tem um preço; e pelo espírito independente de seu caráter, Iberê nunca foi subserviente, manifestou-se através de jornais, escreveu seu livro inconcluso de memórias e não abandona a pintura.
“O agora é este momento que já não é mais, quando acabo de pronunciá-lo. O tempo é um rio que nos arrasta, que nos leva para o nada. “Somos seres transitórios” – nos diz Dickens. A certeza desta transitoriedade nos deveria tornar mais vivos, mais atuantes, mais independentes. Somos no fundo bois de carga, passivos, domesticados, vivendo de mentiras. Não sei por que enveredei por este assunto.
Amiga, eu sempre procurei e procuro a verdade das coisas, tenho um sentido metafísico da vida.
Às vezes atravesso períodos de profunda depressão, sem motivo determinado, objetivo.
Estranho e limitado é o ser humano, incapaz de entender o seu próprio ego. Não raro sinto-me como meus ciclistas, que vagam por um mundo deserto, morto. No fundo, querida amiga, eu sou eles. Mas eu tenho que dizer, tenho que pintar a verdade porque só ela importa! E a beleza? Talvez verdade e beleza seja uma só coisa. ”
Fragmentos das cartas. Estou te encaminhando para poderes me ajudar a encontrar o eixo deste trabalho.
20.
O PENSAMENTO ANULA DISTÂNCIAS
Estás no movimentando meus dedos, remexo sentimentos para esclarecer o que foi atormentado desencontro.
Escreveste:
“Dizem os poetas que o pensamento anula as distâncias. Podemos ver, com os olhos da alma, a imagem que evocamos, mas — este é o tormento — não podemos tocá-la.
(…) Somos, querida amiga, dois prisioneiros que vivem em celas separadas, alimentando-se um da imagem do outro.”
É o tormento do amor.
Aceitamos o fato, não o desejo. E nos relatamos, delatamos enquanto vivemos vidas paralelas.
Recomeçou a chover forte.
Este inverno não termina nunca, tenho os pés gelados.
21.
O MOSQUITO
Lembras do conto O mosquito[5] de Iberê Camargo? Resolvi esmiuçar a linguagem. Em dois parágrafos, percebe-se a depuração de um processo. Inicialmente, descreve o inseto com o vocabulário específico de um pintor; e o pintor reafirma sua própria forma de expressão; depois o homem surge com poder ditatorial protegido pela impunidade. Metáfora coloquial.
“É apenas um traço vertical, minúsculo risco a creiom, na alvura vítrea do azulejo.
Vou aniquilá-lo, penso comigo, com um golpe de toalha. Concedo-te a vida somente o tempo que necessito para terminar de fazer a barba. Devo usar a lâmina com cuidado, devagar, para não cortar o lábio superior já puxado pela idade. “
O verbo aniquilar e a expressão conceder vida evidenciam a presunção do homem em dispor da vida e da morte num tempo que ele próprio determina ser o ideal. Naturalmente, temos o criador — artista manipulando o mundo a partir de elementos que a observação e a experiência lhe permitem.
Os parágrafos aclaram o funcionamento interno do artista.
Se existe forma de encontrar o caminho de Iberê, existe o paralelo do escritor, que emerge em contos e nos fragmentos autobiográficos: o verbo na tinta.
Toda a manifestação artística é transgressora.
Organizamos, desorganizamos para encontrar uma ponta, um início. Não existe o pintor, o escritor, o escultor, o músico, nem apenas o cientista, mas a expressão.
Há relação coerente entre vida e produção artística?
Um clichê: inquietude interior, insatisfação, levam o artista a descobertas, perspectivas que respondem à desconcertante questão: quem sou eu?
Descreve o inseto:
É apenas um traço vertical, minúsculo risco a creiom, na alvura vítrea do azulejo.
O inseto, possível analogia a fragilidade?
As palavras nos remetem ao visual; este é o exercício da escritura que desenha, prepara a tela. Ao lermos vamos, combinadamente, possibilitando a imagem real no abstrato traço vertical. Duas possibilidades.
A escrita do conto O mosquito, presa na imagem que se desloca para o papel desenhado. Na leitura vêem-se as mãos e o mosquito alongado. O que nasceu primeiro? A imagem através das palavras, ou o desenho?
O exercício de escrever tem como suporte o visual cotidiano interno de cada um? Suponho que sim.
Iberê desenha o mosquito para ilustrar o conto ou o conto faz acontecer o mosquito?
A natureza, e da natureza, o homem e no homem a linguagem: o traço.
O artista trabalha na febre da permanência:
Concedo-te a vida somente o tempo que necessito para terminar de fazer a barba.
Ou (…) Ele continua imóvel na imagem do espelho, à espera, sem saber, de sua morte, como todos os viventes. Aumenta minha prepotência sobre sua mísera existência.
Este “Concedo-te”, assim como Deus concede a vida, concede vida durante o mesmo tempo em que eu faço a barba, ele o todo poderoso, o Mestre, o artista. Aquele que pode reter o tempo. E continua: “na imagem”, que é o próprio ver do artista através do espelho. O espelho como a própria alma confessa; olhamos-nos no espelho, revelação, única possível de nós mesmos. O poder sobre o mosquito se manifesta por meio do tempo de vida concedido e, principalmente, o tempo que existe através do espelho. A natureza, nós mesmos, esperando, expectantes “sem saber, da morte, como todos os viventes. ” É o mosquito um ser vivo alienado, sob o domínio do Mestre; sem consciência, homem ou mosquito, sem saber do seu Destino, ou do seu tempo na terra, aguarda o tempo da morte.
Tempo como preocupação obsessiva do autor em suas obras escritas e/ou pictóricas. “Aumenta minha prepotência sobre sua mísera existência”. Esta é a revelação escrita da certeza de que mediante a produção escrita ou desenhada ou pintada ou expressa oralmente pode, o artista, deter tempo. Poder absoluto do fazer contra a inoperância de quem não faz, não pode, não sente e então mal respira e/ ou vive, o homem comum.
Tudo a rever e ordenar.
Hoje amanheceu com sol, temperatura amena. O inverno inicia, e mostra-se manso, quase cordato.
22.
O RELÓGIO
Estou no meio de livros, livro de, sobre, correspondência, o tal mencionado em carta anterior. Garimpo nas gavetas. As idéias se misturam, e as novas trilhas surgem. Estou envolvida com palavras …. Tua ideia de escrever sobre a obra pictórica é arrojada … Sigo nos contos.
No conto O relógio, por exemplo, descreve a obstinação como metáfora da própria ação do artista na criação, na pintura: quantidade de tinta, o ir e vir que busca a perfeição. Lê isto:
“Não pode parar. Sujo, fedorento, exausto arrasta-se de um a outro monte. Os dias se sucedem. A merda ensolarada enxuga-se e racha. Savino, exaurido, ardendo em febre, se obstina: com as mãos enrugadas pela umidade, dilaceradas, a pele gretada, queimada pela acidez da fermentação, continua a inusitada busca: investe contra os montes, desmancha-os, espalha a merda ao vento com furor.”[6]
Haverá conotação autobiográfica? Iberê, artista, homem destemido. Escrevendo não teme a palavra; enquanto, desespera, mas não interrompe. Como no conto, enquanto escava e descreve em página anterior:
“Ao esmiuçar a coleta diária, encontra a âncora e uma roda. (…) Encontra também um soldadinho de chumbo com a perna quebrada, uma cornetinha e carretéis. Savino comovido está a ponto de chorar.
— Poço encantado, transforma as coisas: estes são os meus brinquedos! ”
A escrita de Iberê transforma-se porque o artista fez importante trajetória pictórica, busca-se em cada palavra o tema das suas telas. Reafirma nesta frase a importância dos carretéis, a roda dos ciclistas, não do relógio. E o tempo que não para … Nem o artista aferrado no propósito de segurar o tempo…
Talvez o amor perpasse o homem e se agarre na obra, no vigor, neste obstinado e constante sentido de sobreviver, como se já estivesse morrendo por dentro. A doença com o mau cheiro, o chafurdar na lama, o desafio.
Turbulento, amável, reivindicador, autoritários adjetivos para o mestre.
O conto fede; com as palavras luta contra o tempo e possíveis ameaças. Persegue o tempo assombrado pela solidão.
Em carta: (…) “Há tanta solidão em mim e nas coisas que me cercam.
Ai, solidão! Repito o que já disse: minha alma vive como um cão sem dono. ”
Truculência, fervor excessivo, antecipação.
No conto ele usa a enxada para o trabalho de escavação:
Resoluto, mete dentro da fossa uma enxada que encontra no fundo do pátio. Ele a mergulha no lugar exato onde viu desaparecer o relógio.
O ato criador é esta pá que cava e cava o seu interior até o sangue; até jorrar a verdade que se esconde no medo e na sua própria mesmice de reconhecer-se apenas nela mesma. Toda a produção, contudo, alimenta-se do novo. O novo, definitivamente, está contido na individualidade. É necessário desenterrar os pedaços tal qual ocorre no texto O relógio. Neste conto, a escavação, que podemos entender, metaforicamente, é a mesma da memória. O conto O relógio traz como tema O TEMPO, horas de horror e de tédio, segundo Manuel Bandeira, que escorrega e desmantela-se como o descrito pelo autor; o tempo que some no buraco infecto de fezes e detritos… Estranha narrativa visualmente nauseabunda que termina nos fazendo compreender que é a própria descrição, a essência. Pictórico e olfativo conto. Talvez pudéssemos escutar o ruído e as batidas da enxada enquanto cava e remexe na procura do relógio desfeito pela ansiedade. Perdemos o tempo, tempo filosófico e cronológico, ansiosos na necessidade de agarrá-lo e retê-lo. Vemos pictoricamente descrito o tempo.
Iberê transpõe para suas telas a mesma temática: tempo fétido e avassalador que nos faz meter as mãos e a cara nas fossas do mundo. Está inescrupulosamente envolvido pela necessidade de retomar, salvar o tempo que resta num toque de perpetuação: o relógio como fetiche familiar e objeto de memória.
Os quadros da exposição, Moderno no Limite, podem ser exemplo disto.
23.
EU ME NOMEIO INSETO
A leitura se abre e ao contar sobre Iberê nova história. Por exemplo, ainda no conto O mosquito, quando faz alusão ao divino.
Ele vive porque lhe concedo viver.
E somos todos nós o mosquito impertinente enquanto ele, Iberê, reina?
O reinado se concretiza nos aplausos e se materializa hoje com a Fundação Iberê Camargo? Entramos na fortaleza e encontramos na exposição da obra, o soberano. Agora podemos redescobrir. Ele escreve na pintura, na palavra a biografia. Persegue o tempo, a beleza. Reverencia a vida consciente da cretinice da morte.
Já no conto O colchão descreve o incomodo da presença do não familiar ou dos fantasmas que o perseguem.
“Era qualquer coisa que me impedia de ficar livre e só. Ilusão ou não, eu o sentia ali e não podia estar tranqüilo, não podia sentir-me só com os meus pensamentos, com as minhas fantasias, com o meu trabalho, como havia desejado e agora desejava obsessivamente. ”
Em carta: “Estou pintando quadros de grandes formatos com a intenção de expô-los em Porto Alegre, Rio e São Paulo, simultaneamente. O primeiro da série Fantasmagoria 180 X 213 está reproduzido na revista Galeria, junto da apresentação tem um belo texto de Ronaldo Brito.
Apesar de alguns problemas estamos projetando construir casa e ateliê. Já compramos o terreno e mandamos executar o projeto. Espero que tudo dê certo. Eu ainda tenho muitos sonhos. É preciso sonhar mesmo soçobrando. O artista trabalha e trabalha, mas não esconde a briga diária da vida.
Hoje, três de outubro, é domingo, dia de missa e repouso. Não gosto do domingo, dia morto, parado como água de poço. Pintando poderia fugir da monotonia, mas hoje tenho o coração vazio, só as mãos trabalhariam. ”
O que importa é sempre o trabalho. O trabalho obsessivo que limpa o corpo, repousa a alma. Tudo manifestação corporal e mental. O homem, o artista, deus e o diabo, o bruxo. Importa descobrir o fio, voltar ao tema. Da possível aresta, renovar o velho, encontrar o bom lugar para uma vaidade menor, a luta desesperada pelo eterno, pelo para sempre da vida real. Felicidade ou infelicidade? Surpreendo-me ambivalente, batendo palmas. Oportunidade é a inteligência de mover os acontecimentos e atrair o interesse das pessoas, somos o grupo e queremos mais do que nunca ser reconhecidos pelos olhos, pela voz, pelas palavras. Não existe acaso… O certo se entende por oportunidade de executar. Estou tentada a me corromper. Ficamos neste fio imaginário do tempo querendo agradar o outro que se movimenta como projeção. O outro apóia a nossa própria concepção de existência. Sem a imagem, a certeza do outro, nós não existimos. Preocupados com a idéia que eles possam ter a nosso respeito, da nossa imagem refletida neste mundo de outros, muitas vezes, nos privamos das palavras, gestos e voz. Acredito que a correspondência entre sombras defina o que estou tentando explicar. Sombra que transita do interior ao real com inconformidade, compulsivo, obcecado. Pessimista inquieto, irreverente. Preciso descansar.
*
24.
AUSENTE NA FESTA
Temperamento apaixonado: tumultuada, angustiada, eu mais machuquei do que fiz bem para as pessoas. Injusta com o amor, prepotente e egoísta. O que restou?
Tornei-me espectadora dos meus próprios espetáculos. Enquanto acompanho o que foi feito sobre Iberê Camargo, dou-me conta que eu posso fazer muito mais, não faço. O que apresentam não é o suficiente.
A nuvem desenha imponderada história, e eu me escondo. Estou na porta dos fundos. Ponho-me a duvidar da inteligência. Onde escondi o lado esperto, ativo, onde esteve o meu cérebro? Como posso promovê-lo se me nomeio inseto?
Dou-me conta, lendo a apresentação da exposição Moderna no Limite, que a pretensão, sofisticação no palavreado não ajuda, pelo contrário, atrapalha quem procura se iniciar na obra de Iberê Camargo.
Linguagem, para quem não conhece jargão de catálogo, não esclarece, irrita. Erudição deles ou ignorância minha? É preciso mais do que levar o público identificá-lo na literatura e na filosofia. Quem vai até a Fundação Iberê Camargo para ver/conhecer a obra se perde no obscuro catálogo. Como não há indicativos nem explicativos na exposição, fica o impacto vazio do trágico.
Tudo passa a ser barreira cultural, intelectual.
Não educa. Assusta.
Hoje, na última apresentação da OSPA na Independência, na saída, escuto uma senhora que comenta a inauguração da Fundação Iberê Camargo, da seguinte forma: “eu não queria nada daquilo pendurado nas paredes da minha casa, mas o prédio é interessante. ”
Quem disse que toda e qualquer manifestação artística deve parar nas paredes das madames endinheiradas? E como esclarecer o equívoco, lendo o catálogo, procurando o quê e onde? Falta clareza, limpeza na linguagem.
25.
FRAGMENTO
Algumas pessoas chegam ao mundo para passear outras pra obrar como abelhas. Eu mesmo tenho uma etiqueta em branco… A pensar. Prisioneira da etiqueta: PROIBIDO.
(…) “Há mais de uma semana que os dias não têm sol e as noites não têm estrelas. Sinto-me deprimido.
Você fala em liberdade. Liberdade? O homem vive em liberdade condicional. A sociedade nos oprime. É preciso se ser forte para suportar as pressões. E, a vida do homem, amiga, é uma caminhada sem destino. Sei que estou sendo pessimista, mas devo expressar o que sinto. O sentido da vida está na própria vida, portanto, ainda que amargamente. Como vês, as palavras tropeçam e eu não me expresso bem. ” (…)
Cartas embriões.
Quando decidimos escrever, dividimos o caos interior em que nos encontramos. Clarear idéias é escrever, conversar no papel.
COMPARANDO TEXTOS
Porto Alegre, 1988.
(…)
“Tu não escreves mais. Teu silêncio me faz pensar no Vento da Desesperança que nos fala Mário Quintana.
Este vento que ninguém sabe onde mora e de onde vem, vento que vive como cão, que sopra sobre os charcos, que enraivece o fogo e propaga incêndios, que sopra sobre tudo que é podre, morto e ruim; este vento separa os amantes, separa os irmãos, separa os amigos e fará com que não mais se vejam, não mais se falem e, tudo isto, sem explicação ou razão. Ele transforma o amor em ódio. Ele apaga a vida.”
(…)
O texto autobiográfico de Iberê Camargo Ela mora no outro lado do rio[7]: contém o mesmo referencial, utilizado posteriormente num espaço de cinco anos, da carta transcrita acima. O evidente é a citação sobre Mário Quintana, O vento da desesperança, que mostra, menciona a separação entre diferentes afetos: na carta, o vento separa amantes, irmãos, amigos de forma a não se verem ou se falarem “e, tudo isto, sem explicação ou razão. ” No texto autobiográfico ele, o vento da desesperança, efetiva a separação da mulher que teria sido sua noiva, páginas 84-85, da seguinte forma:
Por muito tempo vivemos felizes. Mas um dia se desfaz o misterioso laço que une os amantes. O vento da desesperança, de que fala Quintana, soprou entre nós e nos separou.
Venho te ver – estivemos um tempo separados – e encontro-te distante, distraída e indiferente, mudada. (…)
– Resolvi não me casar dizes tranquila.
Retiro minha aliança do dedo e a jogo num vaso que está sobre a mesa, à nossa frente. Tu fazes o mesmo. Afasto-me sem dizer palavra e nunca mais pronuncio teu nome. Depois, cada um de nós segue caminhos diferentes. Queimo tuas cartas e os retratos e procuro esquecer-te para sempre.
Os fragmentos sublinhados retomam a problemática da separação e a evidência de que é uma separação definitiva que transformará amor em ódio.
Outro aspecto de intertextualidade, seguimento de linha condutora é a presença do elemento trem no mesmo texto autobiográfico acima comentado que diz o seguinte:
Tua imagem passa num relance na janela de um trem. Trens que se cruzam, destinos que se separam. Pensativa, com a face apoiada na mão, imagem ainda agora indelével dentro de mim. Ah, quantos quadros – maus quadros – pintei de mulheres com a face pousada na mão! Porto Alegre, 1993. Ela mora no outro lado do rio (p. 84 -85)
O texto diz um trem, e desta forma faz apenas uma alusão ao que descreve em outro texto, Há gente caminhando dentro de mim, do mesmo livro autobiográfico ao mencionar sua terra natal e, assim, esclarecer ao leitor que a noiva faz parte deste universo. Uma costura narrativa a retomada do trem da Estação de Ferro de Restinga Seca.
Há gente caminhando dentro de mim[8]:
Há gente caminhando dentro de mim, há trens chegando, há trens partindo. Meu pai, o estacionário – ostenta o seu vistoso boné vermelho, que o diferencia -, dá partida ao comboio com um toque de sino. Trilha o apito do chefe de trem. (…)
O trem elemento marcado em suas narrativas é quem leva sua noiva, conforme o final do texto Ela mora do outro lado do rio citado, anteriormente, guarda e assinala a imagem da mulher amada que, mais tarde, retomará em suas pinturas exclamando: Ah, quantos quadros – maus quadros – pintei de mulheres com a face pousada na mão! Forma esta em que a viu, talvez, pela última vez. Destes quadros podemos mencionar uma tela de Iberê com o título Cubista à moda Lothe; destaca uma das figuras femininas, que foi, recentemente, exibida ao público.
Estes retratos femininos, na sua maioria, datadas dos anos 40 e 50.
O final de um texto tem o elemento trem que será retomado, justamente em texto posterior no início estabelecendo uma possível linha condutora.
Ao ler a carta, leio o autobiográfico.
A carta datada de 1988 tem um campo semântico dramático: silêncio desesperança enraivece, incêndios, podre, morto, ruim, separa, três vezes o verbo separa é repetido e seguem-se palavras de conotação negativa, tais como: ódio, apaga, estes elementos todos são relacionados ao processo do Vento da Desesperança atuando sobre o relacionamento descrito no conto.
(Inserir a folha de jornal que publicou fotos destes retratos)
27.
INQUIETAÇÃO VAIDOSA
Cartas explicativas: desculpas para não sair de casa.
Lamento a negligência. O que não consigo escrever.
Infidelidade de sentimentos. Como mulheres que se casam, no susto do casamento e seguem virgens de sentimentos depois de trinta anos…
Fachadas impressionam mais do que o interior: forjamos a história.
A fantasia, e as cartas interceptadas, ou perdidas preenchem lacunas no imaginário de cada um.
Agora te escrevo apenas como testemunha: não tenho nem sei o que posso contar.
“Sente-se uma náusea de indecisão à medida que o dia se aproxima, mas não ousa dizer o que pensa porque já foram feitos tantos preparativos em torno dela. A felicidade e o conforto de muita gente seriam comprometidos. São momentos passageiros de intranqüilidade secreta, que só podem ser dissipados quando ela se entrega à alegria das pessoas que a cercam. ” [9]
Onde, estão as pessoas que se importam com o pintor?
28.
LUXO SUPÉRFLUO
Penso no que posso fazer e no que pretendo largar. No vigor, e na impossibilidade. Começo a medir o tempo de ficar no mundo. Tudo está tão urgente! As lembranças caminham pela casa. Nossa memória está nas frestas, naquela estante, atrás desta cadeira, dentro do forno aquecido. Na infância do cheiro, dos objetos. Existem refúgios característicos: voltamos a eles ao longo da vida. Aquele copo, o bibelô, o quadro do corredor, as cartas importam. Teus quadros cobrem a parede: um estudo de tela, cartas em molduras, carretéis em nanquim. Então estás ainda comigo.
29.
DESACERTO
Queria te contar do desacerto que foi voltar para este apartamento.
Aqui os fantasmas me cercam. As noites são longas, os dias gelados e vazios, embora eu me agite bastante: vou ao supermercado, faço comida, chego a saciar desejos de gula, passo os olhos pelas revistas, reconsidero a importância dos fatos, e recuo diante do abraço. Nem o sorriso me salva. Transformo gentilezas em caretas.
Embora a cidade seja pequena, necessito de carro.
As caminhadas deixam a sola do pé dolorida.
Quando saio, pago contas, compro flores, encontro as almofadas vermelhas que procuro, e compro fronhas macias.
Deveria usar um par de óculos, chapéu, alguma espécie de camuflagem.
Olho as pessoas como estrangeira desastrada. Nossa amizade cresceu nestas ausências: carta, receita para esconder o vazio, nossa ponte. Folhas rabiscadas estão na minha gaveta. Sinto culpa, releio as notas, refaço um parágrafo, acrescento uma ideia…Penso em desmistificar as cartas… transformá-las na publicação que substituirá o artigo que escreveria sobre teu trabalho.
30.
FALTA ENERGIA
Finalmente recebo tua resposta. Acho que entendes a minha dificuldade de adaptação. Escrevo. Leio os livros das estantes … Isto me faz bem.Sabes o que lamento agora? A falta de energia…. Qualquer coisa me deixa cansada. Até dores de cabeça tenho sentido; nas costas. É o exercício físico que não faço. Estou lenta. Sinto saudade. Saudade do que não fiz, suponho. Das tardes tagarelas, do café sem cafeína, e do cigarro …. Justamente o prazer supérfluo do ócio. Pessoas de papel…O pintor apaixonado pelo amor, ludibriado pela beleza. Rua da Praia desfigurada, o vozeirão se impondo com os manequins, os ciclistas, figuras perdidas em gigantescas telas… O artista Iberê, e os carretéis choram.Sim, tenho muito trabalho meu amigo! Estou a me curar desta languidez de morte. Queremos descartar o supérfluo, fugir da frivolidade: decretar sobriedade. Entrar no essencial. Não consigo. Por que não me deixei retratar? Agora, uma moldura sem retrato. Por que escapei, como fantoche, ou como sombra atrás das cartas. Limpo. Limpo e troco móveis de lugar, objetos e vou recriando o palco, e outra vez o “faz de conta que”… Um longo caminho para definir o que importa: isto quero, isto não quero… Morar é estar no teu espaço interior. Mudanças de cidade, casas, é troca de fantasia.
31.
O CINZENTO DO CÉU
Transcrevo carta do artista Iberê. Pode-se, então, compreender o quanto estivemos próximos. A incompreensão dos que ousam diante de preconceitos, barreiras. A falta de liberdade imposta pela compostura social. As amarras. Acho que o conjunto das cartas desenha o artista, e o recuo da musa que não foi pintada…
“Tua carta tem uma presença quase física, nela tu revelas a alma. Gosto de te ouvir gosto de te sentir perto de mim. Espero que o muro de Berlim que nos separa, termine por ruir. Não é compreensível, hoje, uma atitude machista, medieval. Não se pode aprisionar um coração. Eu te recordo sempre, com um carinho de amigo, mas a recordação, a lembrança não tem a concretude do agora, que é o presente da vida que flui.
O agora é este momento que já não é mais, quando acabo de pronunciá-lo. O tempo é um rio que nos arrasta, que nos leva para o nada. “Somos seres transitórios” – nos diz Dickens. A certeza desta transitoriedade nos deveria tornar mais vivos, mais atuantes, mais independentes. Somos no fundo bois de carga, passivos, domesticados, vivendo de mentiras. Não sei por que enveredei por este assunto.
Amiga, eu sempre procurei e procuro a verdade das coisas, tenho um sentido metafísico da vida.
Às vezes atravesso períodos de profunda depressão, sem motivo determinado, objetivo.
Estranho e limitado é o ser humano, incapaz de entender o seu próprio ego. Não raro sinto-me como meus ciclistas, que vagam por um mundo deserto, morto. No fundo, querida amiga, eu sou eles. Mas eu tenho que dizer, tenho que pintar a verdade porque só ela importa! E a beleza? Talvez verdade e beleza seja uma só coisa.”
Gostaria que visses esses meus últimos quadros, esses ciclistas de que falo.
Releio. E eu não consegui me mover. Descubro que esta doença chamada depressão imobiliza alma e corpo, e por mais que os médicos alertem, não acreditamos. Perdi o tempo…
32.
MUDANÇAS EFETIVAS
Não imaginas o que pode ser uma reforma com as pessoas morando no apartamento! O inferno em pó, ruídos e estragos. Não se pode acreditar que haverá melhoras no final. Sinto-me entregue aos operários lentos, desorganizados e, muitas vezes, incompetentes. Como sentar para te escrever longamente? Não encontro espaço. Assusta-me pensar que alguma coisa possa mudar.
Acompanho os desencontros e as dores de vocês, neste período de investigação. Tantos sobressaltos! Acostumados que estavam na vida de mão única! Estes deslocamentos modificam teu ritmo de trabalho. Mais do que nunca a presença da tua mulher, estreita a cumplicidade necessária ao casamento.
Os jornais silenciarão. Estarás entre amigo aqui.
O Rio Grande do Sul limitou teu espaço. Porto Alegre desfigurada na madureza: perdeste a Rua da Praia, o atelier, professorar. Mudou.
Quanto a mim estou mesmo cansada do descaminho, do desfeito avesso e das dores todas da separação, da desconfiança.
Leio. Trabalho. Escrevo por necessidade.
33.
DESENCONTRO
Na madrugada silenciosa, depois de abrir a quinta caixa, encontro o livro: abro, releio, remexo. Penso em ti. Hoje tentei te encontrar várias vezes por telefone. Passeias pelos meus desejos velados: doloridos sonhos inquietos. Voltas e vens e vais ao encontro de. Oxalá tu possas voltar, e transitar entre a tua vontade e a minha. Oxalá tu possas escrever, responder. Estar. Vontade de conversar, fazer grande o momento de te ver; mas nada depende de mim. Não se esticou o tempo. Lágrimas vazias. Apenas ansiedade inexplicável. Desejo de que palavras possam preencher ausência. O suspenso me inquieta. A vida faz cócegas. Abraçar e beijar, urgente.
O novo preso na superfície do momento das estrelas. Bom! Quieto. Ouço o calor. A conversa mansa de ontem já tão antes, escapa. Agora as semanas se fecharão nelas mesmas. Persigo a idéia de encontrar meu lugar. Sigo lenta e quieta. Onde estás? Dormindo agora.Não disse que te gosto, não esquece.
34.
XÍCARAS SOBRE A MESA
O telefone tocou cedo naquele sábado. Saí de Torres por volta do meio-dia. Tua casa cheia: amigos, curiosos. Vozes em baixo som de sussurros. Serviam café, chá, muitas xícaras sobre a mesa, bules.Fui ao teu encontro, no quarto: fervias por dentro. Tua pele queimava: difícil falar. Teus olhos conversavam, brilhavam, pediam socorro. Ninguém ficou sozinho contigo. Tua mulher deitada, com gripe, desfeita, ao teu lado. Balbuciavas. Segurei tua mão. Chorei seco. Conversamos sem voz: pediste para que eu fosse ver o teu último, gigantesco quadro no ateliê. Alguém me acompanhou. Abriu a porta e saiu. Pude chorar. Tudo muito patético, teatral, um prólogo de morte. Lá estava o azul da solidão: as três figuras distantes uma da outra e o berço do menino.
A tua volta ao Rio Grande do Sul, amarga. Compreendi as queixas. O paredão, a luz artificial, janelas fechadas, sem vizinhos, e nas paredes da casa, o mofo… Enquanto escrevo, traço mentalmente o desenvolvimento do teu mal, a doença. Confidenciaste a morte: “Está queimando por dentro. ”Atravessei tua solidão, nos dissemos adeus.Voltei para a sala: as pessoas se apertavam no sofá, bebericavam, mastigavam. Aguardavam a vez de conversar contigo. Patético ritual de despedida. De repente foge a intimidade, somos tantos! Ato público de um choro solidário pelo que acontecia. Era a despedida. Ironia: tu ainda estavas vivo. Todos ali, amigos, suponho: frequentavam a casa na hora do chá, no almoço. Beberam do vinho; provaram da gelatina com leite condensado, café preto, feijão, arroz: a intimidade das refeições. Enfim, está na lembrança, guardado, o dia do telefonema. A despedida. Temos dificuldade de dizer a verdade; aliás, será que a verdade existe? Trazer de volta uma pessoa ao redesenhá-la. O paradoxo da lembrança: lugar da infância que aquece alma, imaginação, constatar a imensa solidão que se descreve nas paredes da casa. A exata importância do beijo. Afeto, mais do que conturbado amor. Ficção, emoção sem responsabilidade. Lacunas, dúvidas preenchem o texto com a imaginação. Enquanto te penso, escrevo outra história. Nossas experiências preenchem lacunas…
35.
PENSANDO NO IMPOSSÍVEL
Se não tivesse acontecido o encontro daquelas pessoas que velavam agonia em soturna despedida, eu não o teria conhecido…
Se ele, o outro, não tivesse mencionado o avô francês, a filha em Israel… Se os olhos machucados não fossem azuis!
Se tu não estivesses morrendo do outro lado da porta, e eu não tivesse desesperado ….Nada teria acontecido.
O inusitado acontece no desarrazoado…. Imprevisível! Foi desta forma que tudo se passou: loucamente, sem lógica.
Se eu não tivesse presenciado aquele presépio invertido, não teria sorrido complacente ao discurso nervoso do outro lado da sala, e nunca teria vivido o amor no corpo de outro homem.
Das roupas pretas do luto, das mãos frias e dos cabelos desfeitos, da cadeira de espaldar alto, frustração.
Cega, piso nos meus próprios sonhos e termino encolhida.
Poço cinzento: respirar é morrer aos poucos: beijar teus beijos.
36.
TENTATIVA
Passados tantos anos, arrastadas histórias, estreitos, estranhos laços, o que resta?
Uma mulher assoberbada pela necessidade premente de sobreviver, atropela a vida.
A verdade existe? A verdade é um foco ou um fato?
Existem fatos, e os fatos podem ter dados verdadeiros ou ser, apenas, ficcionais.
Digamos que o que estou contando seja apenas noventa por cento ficcional. Ficamos neste fio imaginário do tempo querendo agradar o outro que se movimenta como projeção. O outro apóia a nossa própria concepção de existência. Sem a imagem, a certeza de alguém, nós não existimos. Preocupados com a idéia que as pessoas possam ter a nosso respeito, muitas vezes nos privamos das palavras, gestos e voz.
Acredito que a correspondência entre sombras defina o que estou tentando explicar. Sombra, pessoa que transita na interlocução. Ser, é aquele pedaço interior que a sombra possui, e arrasta quando se faz pessoa completa.
Idéia estranha esta de renunciar ao que significa um ser humano como conceito já formalizado.
Sinto-me desfeita.
37.
OS BICHOS
“Os que censuram aos homens sempre se preocuparem com as coisas futuras e nos ensinam a gozar os bens presentes, e com eles nos contentarmos, observando que não mandamos no que está por vir, talvez, menos ainda no que no passado, refere-se ao mais corriqueiro dos erros humanos, se ‘e que se pode chamar erro a essa tendência que, embora a ela sejamos impelidos pela própria natureza no afã da continuidade de sua obra, falseia a nossa imaginação, mais exigente de ação do que de ciência, ainda que ignoremos aonde nos leva. Nunca estamos em nós; estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança jogam-nos sempre para o futuro, sonegando-nos o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais. “Todo o espírito preocupado com o futuro é infeliz.” [10]
Ponderação pertinente ao mundo. Ou sempre fomos como somos?
O passado construindo o futuro, o hoje propondo as perguntas certas; perseguindo a utópica fraternidade, igualdade e liberdade: “é proibido proibir”. Sem freio.
Existir na plenitude de ser. O poder questionado porque corrupto.
É preciso desmantelar a organização que solapa a dignidade fraterna e a liberdade do homem. Conceitos fora de contexto: vagos e abertos: agarramos como espada e os lançamos para o outro lado, cegos de amor e sedentos de igualdade. Ontem a ordem seria derrubar o poder em exercício, hoje, assumir o poder seguindo ética igualitária.
O poder, afinal, é o velocino de ouro.
“Tudo é permitido se o mercado permitir”.
Não existe ética como freio, nem ideal político, ou tradição religiosa. O homem perseguido pela ambição tem medo de não entrar no mercado: a individualidade consumida por comida, roupa e moradia. A moeda deste mundo é o próprio homem: “O sociólogo e presidente da República, autor de ‘Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional’, volta a analisar o escravismo gaúcho e afirma: a tragédia da globalização: gerar uma parcela da população que não consegue nem ser explorada’. ” Manchete de jornal, escândalo dentro do homem. Reler Montaigne é regredir intelectualmente…
O homem é o rato dos grandes centros: contamina enquanto atravessa os esgotos, prolifera e infesta o mundo com doenças, destruição. Alimenta-se, quando pode, dos dispensários abastecidos com bolos de farinha branca, mas é esmagado pela vassoura doméstica de quem o descobre na rapina. Os ratos servem a ciência que desenvolve tecnologia; infestam o mundo, e dominam enquanto se multiplicam. Não há tempo para aprofundar a verdade. Encontrar certezas… Excesso de informação acelera dúvidas. O homem se fantasia de rato para roer, roubar e infestar. Assemelha-se a baratas tontas e nojentas na corrida elo poder. E, como cupins, devoraram velhas bibliotecas deixando buracos nas prateleiras.
Não há tempo para entender como amanhecer e entardecer se confundem. Nascer e morrer, mesmo grito. A presença constante do passado impede novas chances para homens de conversas descosturadas que não usam nem agulha, nem dedal! Velhos instrumentos sem uso, como são hoje os velhos livros não lidos. Resgata-se a família como núcleo salvador. Velha e pobre família arremedo de prazer, aconchego, verdade e multiplicação. Excomungada pelo patriarcal e autoritário sistema. Rótulo a ela dado para escamotear o poder autoritário e patriarcal que nos engole pela direita ou pela esquerda. A família se desfez como organização social, agonizante sobrevive em cada membro apartado pelo sistema. O exercício do poder como integrador ao mundo real. Quem são estes novos homens poderosos sem a corrupção do poder? Abram os braços para se fazerem reconhecidos: os mitos.
Enquanto o homem minimiza o próprio eu: limites versus possibilidade se confundem. As grandes cidades nos engolem. Não se reconhece a importância da interiorização (volta aos pequenos centros) que possibilita respirar e refletir com autonomia.
Ironicamente as feridas abertas são o alicerce.
Mutilados, seguimos o caminho sem entender o porquê de estarmos vivos. Apenas acordamos e voltamos a deitar.
38.
Niels Lyhne
Abril 2014. Agradável temperatura. A cidade com aquele ar de vazio próprio destas redondezas… Estou de ressaca das conversas de ontem … Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Acho que não dou conta. E a tristeza natural diante da tua tristeza segue comigo. Tudo que eu possa dizer, ou argumentar não pesa.Se me aprofundo na questão descarta. A militância não despreza estudos, conhecimentos, nem descarta certezas. Não me imagino como soldado nas fileiras, mas viva na vida. Existem muitas formas de militar, lutar pelo outro: serviço social, hospitais que carecem de uma presença. Ensinar higiene, primeiros socorros, a ler aqueles que não sabem… estou no meu sonho missionário. Apreendi na escola com as madres. E, de verdade, na igreja. Orar tem significado para mim… Eu me socorro nas orações. A fé segura a coragem. É difícil viver, isso já é repetitivo, gasto. Mas o que fazer?
“Pois a verdade é que nosso temperamento se desenvolve no mesmo passo a passo que os nossos estudos, neles torna-se claro, neles se resume. Aprender é tão belo quanto viver. Não temas ser absorvido por espíritos superiores ao teu! Não te quedes a cismar medrosamente na originalidade de teu espírito! Não te arredes de tudo que é poderoso, com medo que te arraste e afogue as tuas singulares qualidades. Tem calma, a originalidade que se perde no correr de um intenso trabalho de inteligência mão podia ser senão defeito, um frágil rebento destinado a perceber; essas qualidades duram apenas tanto quanto sua doentia e acanhada palidez. É de saúde que deves viver, pois a saúde se transformará em grandeza.” (p.162) Niels Lyhne – Jens Peter Jacobsen, Cosac&Naify. Livro denso, humano. Diz Rainer Maria Rilke: “Agora se lhe revelará Niels Lyhne um livro de esplendores e profundezas. Quanto mais leio, mais tenho a impressão de que tudo está aí dentro, do perfume mais discreto da vida ao sabor pleno e forte de seus frutos mais pesados. “Cartas a um Jovem Poeta do próprio Rilke também é um bálsamo.
Um dia depois do outro, um passo depois do outro. Um pé depois do outro como a vida se apresenta.
39.
GRANDES MUROS
Seleção da memória atrelada aos humores, ao cansaço físico e mental.
Escrever na cabeça, isto é, ordenar e executar no silêncio necessário o que vamos escrever ou dizer, elaborar antecipadamente. Registrar pedaços de vida, sobras da memória, o exercício. Esqueci detalhes importantes, insólita lembrança. Esqueci o importante, ou lembro, em detalhes, o que deveria ter esquecido.
Estou outra vez vivendo a dispersão. Dou-me conta que as leituras são aos pedaços, inacabadas.
Nada organizo: mesa cheia de papéis tomada por milhões de pastas e folhas. A concentração difícil e o motivo para não chegar ao fim, e a desordem.
Hoje acordei cedo.
Volto à desordem interior: o descaso com as leituras teóricas necessárias, o abandono de vida regular com as pessoas. A indisciplina me desconcerta, paraliso.
Recomeço a ler Morte de Virgílio de Hermann Broch, em êxtase com o discurso: “(…) pois somente o que repousa é capaz de servir de norte, somente o que é único, o que foi retirado ou melhor, redimido do fluxo das coisas, somente o que se segurou com firmeza – ai dele, será que ele em algum momento realizará tal ato de segurar, susceptível de indicar um caminho? – sim, somente o que se segurou com absoluta firmeza, nem que fosse apenas por um único instante no mar de milhões de anos, torna-se canto orientador, torna-se liderança; oh, um só momento de vida, ampliado rumo à totalidade, ampliado até formar o círculo do conhecimento total, aberto em direção ao infinito;(…) p.32-33
Volto a surpreender-me.
Por que não ler o próprio VIRGÍLIO?
Por que não ler o acervo inteiro, abrir porões?
Caminho pelas beiradas, à deriva.
O que quero mudar? Tudo.
Como? Não sei.
Pressinto a relação complicada: não abro espaço para o comum. Detesto todas as trivialidades. Reconheço apenas as mediocridades.
Sou companhia de silêncio.
Irônico! Quero a praia do amor tardio.
Dispersa, mudei de rumo. Outra vez.
F I M
Elizabeth M. B. Mattos
– 2001-
[1] Ducan,Isadora -Minha Vida – Ed.Livraria José Olympio, Rio de janeiro,1938, p.104/105.
[2] Ribeiro, Paulo. Iberê. Ed Artes e Ofícios. Porto Alegre. 1996.
[3] Citar livro
[4] Freud, Sigmund, Edição STANDARD brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XVIII, Além do princípio do prazer (1920), p. 26-29. Imago Editora 1969 RJ
[5] Camargo, Iberê. No andar do tempo 9 contos e um esboço autobiográfico, LPM Editores S/A,1988.Porto Alegre.
[6] Camargo, Iberê. No andar do tempo. LPM editores,1988.P.73-74.
[7] Camargo, Iberê/ Edusp. 1998. P.83.
[8] Camargo, Iberê. Gaveta dos Guardados. EDUSP.1998. P.69.
[9] McEwan,Ivan.Reparação. Tradução Paulo Henrique Britto – São Paulo: Companhia das Letras,2002.p.205.
[10] Sêneca