Você se perdeu no caminho, mais ou menos do mesmo jeito que apareceu, no repente. Misturou pontos atados de outras histórias.Você apareceu naquela tarde de luto, entre a morte e a vida do amigo pintor. Você estava lá marcando presença cercando o mito Iberê Camargo. Todos estavam lá. Acaso fúnebre, mas amoroso. Chegava de Buenos Aires, numa das suas infindas idas e voltas, na procura ansiosa de nova casa, novo rumo. Construir em pedras gastas o passado. Enterrar a cada folha escrita uma memória meio esquecida. A luta desmancha, acelera o desmantelamento, confunde o real. Neste momento nos conhecemos, antes das memórias esquecidas.
Abafada pela tristeza do último olhar, pela dificuldade da fala, escutei sem ouvir. Queima, como Hiroshima (a cidade queimada, a cidade de cinzas, a cidade de morte), a voz de Iberê… História não vivida, mas imaginada em cada detalhe do inacabado em pinceladas no gigantesco quadro azul, o último. Três personagens se afastam e convergem no grito solidão. O pintor imagina o escritor omite desvia. Você foi o ritual de passagem, – transição da narrativa: o pintor pinta, o jornalista escreve. O fio do acaso. Como se meu amigo pintor, antes de morrer, entregasse em tuas mãos um pedaço de amor para ser vivido. Se ordeno a lembrança daquele dia esbarro em você. Alinhavei o romance do mar e lembranças agrestes do artista pintor. Na sacada debruçada no penhasco você incluía notas de rodapé, títulos. Estendeu o braço acolheu olhar e manuscrito. Se pudesse soubesse escrever memória! Dou-me conta da falência das palavras: escrever seria, sempre, antes de tudo, ler.
Releria Javier Marias escreve na sua trilogia: SEU ROSTO AMANHÃ.
“Minha memória está tão cheia que às vezes não a suporto. Queria perdê-la mais, queria esvaziá-la um pouco. Ou não, isso não é verdade, prefiro que ainda não me falhe. O que eu queria é que não houvesse enchido tanto. Quando jovem, você sabe, a gente tem pressa, e teme não viver o suficiente, não aproveitar as experiências bastante variadas e ricas, a gente se impacienta e acelera os acontecimentos, se possível, e se carrega deles, faz estoque, a urgência é muito estranha. Ninguém deveria ter este medo, nós, velhos, deveríamos ensinar isso a gente, mas não sei como, hoje ninguém escuta os velhos. Porque no fim de qualquer vida mais ou menos longa, por mais monótona que tenha sido, e anódina, e cinzenta, e sem turbulências, sempre haverá demasiadas recordações e demasiadas contradições, demasiadas renúncias e omissões e mudanças, muito passo atrás, muito arriar de bandeiras, e também demasiadas deslealdades, isso é certo. E não é fácil ordenar tudo isso, nem mesmo para se contar a si mesmo. Demasiada acumulação. Demasiado material brumoso e amontoado, e ao mesmo tempo muito disperso, demasiado para um relato, até para um relato apenas pensado. E não falemos das infinitas coisas que caem no ponto cego do olho, toda vida está cheia de episódios literalmente invisíveis, você ignora o que aconteceu porque simplesmente não viu, não teve a possibilidade de ver, boa parte do que nos afeta e nos determina está tapado, como dizer, não se ofereceu à visão, subtraiu-se, não houve ângulo. A vida não é contável, e é extraordinário que os homens tenham passado todos os séculos de que temos conhecimento dedicando-se a isso, empenhados em contar o que não pode ser contado, seja em forma de mito, de crônicas, anais, atas, lenda ou gesta, versos de cego ou cantigas, de evangelho, vida de santos, história, biografia, romance ou elogio fúnebre, de filme, de confissões, memória, de reportagem, dá na mesma. É uma empresa condenada, falida, e que talvez nos traga menos benefício do que danos. Às vezes penso que valeria mais abandonar o costume e deixar que as coisas apenas passem. E depois se acalmem.” (p.109-110. Vol.1) Febre e Lança.