Mês: setembro 2012
IBERÊ CAMARGO e artes plásticas
Conheci Iberê Camargo na Aliança Francesa de Botafogo, Rio de Janeiro, na Rua Muniz Barreto. Na sala à direita de quem entra na casa de pedra, exposição dos carretéis. Foi em 1974. Eu seguia o curso de francês intensivo. Passamos a conversar. Estabelecemos referências. O autor de Pioneiros e Bandeirantes, o acadêmico Clodomir Vianna Moog, amigo do pintor, meu sogro. Colecionador dos imensos quadros de Iberê Camargo, eram amigos. Sua casa na rua Marquês de Pinedo, Laranjeiras, já tinha acolhido o artista. Geraldo e eu gostávamos do sítio em Carangola, Petrópolis, chegamos a a nos instalar por lá, assim sempre ausentes … Nunca estávamos onde deveríamos estar. Nos encontramos nesta exposição …, e a conversa foi fácil. Conheci a Maria também, também ela amiga da Frigga, minha sogra. E foi amizade certa.
O curso de gravura que Iberê ministrou em Porto Alegre foi frequentado pela minha irmã mais velha, as apostilas terminaram em livro, técnica da gravura, um dos prazeres do artista.
Pintores amigos, referência em Porto Alegre, Rio de Janeiro: Glauco Rodrigues, Carlos Scliar. Danúbio Gonçalves, Francisco Ferreira, Vitório Gheno. Darel, Carmélio Cruz. O Glauco, por exemplo, morou na casa da Vitor Hugo. Dele o magnífico biombo feito em nanquim (foto abaixo a maquete emoldurada). Danúbio Gonçalves sabia contar as histórias de Paris de 1950 quando ser artista poderia ser viver na Cidade Luz. Devo ter registro em cartas de Danúbio Gonçalves detalhes destas histórias. Referências.
Meus escritos na Revista do Globo já mencionavam pintores…1964. Xico Stockinger, curiosamente, acabei trabalhando, por indicação da galerista Tina (Galeria Tina Zappoli – exclusividade com Iberê Camargo), mais tarde, na Garagem de Arte, Luciana de Abreu, Porto Alegre – galeria de Francisco Antonio Stockinger, e Itamara. Carmélio Cruz, exposições em Porto Alegre, hóspede de minha mãe Anita Mattos. Pintou dois retratos meus, 1968 (aquarela), Porto Alegre.1970 (óleo), em Torres.
Iberê morava na rua das Palmeiras, Rio de Janeiro. Picotes de lembranças. No atelier do artista apreendi sobre cores, volume. Como eu, gostava de rezar memória. Escreveu biografia. Flávio Tavares e eu trabalhamos na seleção deste material. Conversa, café descafeinado, cigarros. A foto com Ana Maria Vianna Moog menina, no apartamento da Viúva Lacerda, Humaitá. A minha correspondência com ele inicia nos anos setenta.
“Querida Elizabeth: Recebi a tua carta. Vejo-te a beira do mar. Enche, pois, a tua mão de mar, e os teus olhos de luz. Na minha lembrança, tu és uma presença. Eu perdi o jeito de correr pelas praias e de me misturar com os peixes. Faz isso por mim. De Torres guardo este fragmento, por certo o mais agreste, o mais autêntico. Ao pé do penhasco, o mar enrola-se como uma grande cobra verde. Ao longe ele é sereno. A distância dá placidez as coisas. Tenho produzido pouco ou nada. Espero melhores dias. Mando-te a minha saudade que é muita.
Afetuosamente, o Iberê
Rio, 28 – 1 – 75.”
DESENCONTRO
Abro a última gaveta daquela cômoda grande da sala de jantar, agora no canto direito. Ali estão cartas, fichas, rascunhos. Passados tantos anos sem te escrever, retomo nossa conversa. Transcrevo parágrafos de um livro! Reconheço nesta leitura o sentimento de perda; a inexperiência… No caso deles, como no nosso, não houve o romance, mas reconhecimento da paixão, e posteriormente amizade.
“Rodin era baixo, troncudo, vigoroso, com o cabelo aparado curto, e umas barbas patriarcais. Mostrou-me as suas obras com a simplicidade dos grandes homens. Por vezes, murmurava um nome diante das suas estatuas, mas percebia-se que esse nome, qualquer que fosse, não tinha a menor importância para ele. Depois, corria a mão pelas formas da sua criação, como que a afagá-las. Vinha-me a impressão de que sob estas carícias, o mármore se amolecia, igual ao chumbo derretido. Finalmente, pegou num bocado de argila dúctil, e passou a afeiçoá-la entre as palmas musculosas. Enquanto isto resfolegava com força. Todo ele era uma forja em trabalho, crepitando fogo. Num instante tinha moldado um seio de mulher, que lhe palpitava entre os dedos.Tomou-me pela mão, chamou um fiacre e fomos até o meu atelier. Vesti rapidamente a túnica e dancei para ele um idílio de Theocrito, que André Beaunier havia traduzido especialmente para mim:
Pan aimait la nymphe Echo,
Echo aimait Satyre, etc.”
A seguir parei para explicar-lhe minhas novas teorias sobre a dança, mas não foi difícil certificar-me que ele não dava nenhuma atenção às minhas palavras. Sob as pálpebras caídas, fixava-me com olhar brilhante. Depois, com aquela mesma expressão fisionômica que adquiria diante de seus trabalhos, aproximou-se de mim. Passou-me a mão pelo pescoço, pelo peito, acariciou-me os braços, correu-me os dedos pelos quadris, pelas pernas nuas, pelos pés também nus. Pôs-se a modelar-me o corpo, como se estivesse diante de um barro mole. Enquanto isso se desprendia dele um bafo ardente, que me queimava, enlanguescia… Por todo o desejo gostaria de abandonar-me entre os seus braços, e o teria feito, se não fosse a absurda educação por mim recebida, e que me levou a recuar num gesto de pavor. Então, sem mais pensar, enfiei, às pressas, o meu vestido, mesmo por cima da túnica, e conduzi-o precipitadamente até a porta. Que pena! Quantas vezes não lamentei, depois, aquela incompreensão pueril que me privara de oferecer a virgindade ao grande deus Pan, ao poderoso Rodin!”[1]
Escolhas erradas, ou atropelos do amor? A insegurança não nos permite sonhar com estrelas, mas com margaridas no campo. A beleza complicada, simplicidade. Somos ceifados. O encontro de Isadora com Rodin ferve, mas não transborda…
Lamento o que já não posso desfazer. Penso no que poderia ter sido diferente entre nós dois…O poema inspirou Drummond: eco e ressonância. Pan aimait la nymphe Echo, Echo aimait Satyre, etc. Curiosa conversa entre homens de diferentes tempos.Tu não és Rodin, não sou Isadora, mas também lamento minha incompreensão…
“Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que ão amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa foi para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.”
Carlos Drummond de Andrade
Desencontro. Conheci um alguém, uma pessoa diferente ou igual, a mesma …, pois é. Outra história se fez na imaginação, por escrito … Depois voltei. Aquietei. Penso: por que tanto desencontro a cada encontro? Nenhuma voz faz eco. Olhos boca pensamento se fecham. Apenas aquelas, aquelas mesmas fantasias. Abençoado mar de Torres, na nossa memória a história. Estamos debruçados nas sacadas. Caminhamos na areia. Nossas nossas ondas. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2018
[1] Ducan,Isadora -Minha Vida – Ed.Livraria José Olympio, Rio de janeiro,1938, p.104/105.
OBJETOS
TRÂNSITO
Correspondência FORA DO TEMPO
Caro amigo:
Passaram-se vinte e nove anos! Outra mudança, desta vez radical quanto a espaço. Os livros aqui, amontoados. Devo abrir um por um: recolher fotos, cartões, talões de cheque e até cartas… Um dia, dois, e no terceiro, encho um carrinho de supermercado, chamo os sebos interessados, e fecho os olhos. Esqueço. Há tanto para ler!Tão pouco tempo! Luxo inviável.Voltei para a cidade: o apartamento? Uma grande sala iluminada, duas janelas rasgadas até o chão abrem as venezianas para uma sacada de um metro e tanto de largura. O balcão de ferro abaulado, uma grade pintada de branco. Coloquei vasos: carreiro de violetas, jasmins, orquídeas, alfazema, uma muda de pitangueira, e um arbusto de primaveras: bom espaço, ensolarado. Pelas venezianas, o jogo de luz. Trouxe os discos de vinil, a pequena vitrola, e muitos caixotes de livros. A estante, eu mesma pintei de vermelho queimado. Gostei de escovar, ordenar… Naquela mesa de centro, de duas gavetas, coloquei a pasta de papelão das gravuras, arrumei os livros de arte, dicionário, em cima dois vasos de cristal. O quarto não é grande. Banheiro com banheira, espelho sob uma janela de trinta centímetros de largura, lá no alto da parede do sol. O piso com branco e preto. Cozinha apertada.
Passaram-se 29 anos!
Hoje encontrei e reli tuas cartas. Uma delas colada, como se nunca tivesse sido aberta: quatro páginas de letra esparramada. Contas da morte da tua mãe, do testamento, do retrato que encontraste. Naquela tarde, fiquei contigo em pensamento. Estou de férias lá da loja.Olheiras, por noites em claro. Durmo pouco, os carros buzinam, as pessoas gritam, e há gatos na vizinhança.Na calçada, lá em baixo, as mesas do café–restaurante, também uma casa de sucos logo na esquina. Apenas a floricultura fecha as portas cedo. Os jacarandás enfeitam meu horizonte. Sinto-me como se estivesse bem no meio da calçada. Instalei a poltrona de orelhas ao lado da janela; lembras dela? Mandei estofar de amarelo escuro, comprei uma banqueta para apoiar os pés. Ias gostar.
Vinte e nove anos se passaram dos passeios, do café preto, do cigarro mentolado, das frutas secas, e dos pastéis da esquina. Elizabeth M.B. Mattos – 2012 – Porto Alegre
GASTON BACHELARD
A POÉTICA DO ESPAÇO
“O crítico literário é um leitor necessariamente severo. Apresentando às avessas um complexo que o uso excessivo depreciou a ponto de entrar para o vocabulário dos homens de Estado, poder-se-ia dizer que o crítico literário, que o professor de Retórica, sempre sabendo, sempre julgando, fazem muito bem um complexo de inferioridade. Quanto a nós, afeitos a leitura feliz, não lemos, não relemos senão o que nos agrada, com um pequeno orgulho de leitura mesclado de muito entusiasmo.Enquanto que o orgulho se revela habitualmente num sentimento maciço que pesa sobre todo o psiquismo, a pontinha de orgulho que nasce da adesão a uma imagem feliz permanece discreta, secreta. Está em nós, simples leitores, para nós, e só para nós. Ninguém sabe que lendo revivemos nossas tentações de ser poeta. Todo leitor, um pouco apaixonado pela leitura, alimenta e recalca, pela leitura, um desejo de ser escritor. Quando a página lida é bela demais, a modéstia recalca esse desejo. Mas o desejo renasce. De qualquer maneira, todo leitor que relê uma obra que ama sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito.”
(p.11/Poética do Espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal/ Livraria Eldorado Tijuca Ltda,Rio de Janeiro)