A vida quando chega viva lá de dentro da pessoa transborda… Trovões e raios. Tanta água! E depois tanto sol! Tudo ao mesmo tempo, e, já não sabemos se é bom, ou se é ruim, bonito ou assustador. Tudo ao mesmo tempo. Na areia ou em alto mar? Estranho viver engasgando… E bem que desejaria apenas me embalar tranquila, e sorrir, depois chorar. Viver não sobreviver. Não agarrar, mas solta, livre, e, sem me machucar. A liberdade parece, assustadoramente, perigosa e solitária. Por que estou nesta confusão toda? Elizabeth M.B. Mattos – março de 2017 – Torres
Mês: março 2017
Não sou
Existe/há uma vida que se esconde de mim mesma, e do outro. De todos. Ela some, não explica, depois assusta. Se me aproximo, desaparece. Por mais que eu tente ser eu, sou outra. Sempre outra que se interpõe, reage e se impõe… Digo, digo, eu explico, aliso o tempo, aplaino o caminho, e me exponho, ou desapareço. É outra. Não chego, não é nada. O ia se contraria neste ia que não vai… Mutante. Já sou outra, escorrego, mergulho. E este par, este outro que me toca já se esfumaça sem chegar. A vida tem mesmo uma vida que se esconde em outra vida. Não sou. Por mais Eu que eu possa ser, não sou. E assim, meu querido, sou tua sem ser, e tu és meu, também, sem ser. Somos muitos. O muito / excesso de nós mesmos, tu e eu, e por isso não somos… abril de 2017 – Elizabeth M.B. Mattos, Torres.
Mulheres Azuis
“Le brésilien D. J.: era assim que a gente chamava D. J. naquelas noites em que ficávamos até não sei que horas batendo papo no bar ‘Flor de Minas’, lembro que os trens apitavam lá na estação Central do Brasil, era uns apitos chorados e roucos e mui tristes, doía como uma faca furando uma coisa que a gente nem tinha mais (mão ou perna amputada), e D. J. que não bebia nem nada, só tomava sua água tônica, tossia aquele nó na garganta e falava que em Paris havia mulheres azuis. Era na hora em que os trens apitavam e dava aquilo em todos nós que D. J. lembrava das mulheres azuis, chamava – as de femmes bleus, D. J. era professor de francês e até para pedir sua água tônica à garçonete Odete ele falava em la bouteille et le verre; e nós esvaziávamos uma fila de Brahmas (mas faço questão de não deixar dúvida: D. J. só bebia água tônica, quando muito tomava uma Coca-Cola) e ficávamos ouvindo D.J.contando aquilo das mulheres azuis: elas iam à Île de St. Louis, falavam com uma voz de frevo tocando e — é como se eu ouvisse de novo a voz de D. J. — quem tivesse sorte podia ver as sardas nas costas delas, umas sardas feitas pelo sol de algum mar. D. J. parecia outro, os olhos dele brilhavam e ele dizia que ia para Paris no mês que vem. […] ‘A gente fica como se uma lua tivesse entrado dentro da gente. Mas é preciso estar em estado de graça para ver uma femme bleu... D. J. teve quantas quis, até o dia que descobriu que só as mulheres azuis faziam os homens felizes.” (p.75.76.)
A morte de D. J. em Paris – Roberto Drummond, segunda edição, Ática,1977
Trem noturno para Lisboa
“Tudo está tão diferente. Não havia dúvida de que se referia à falta que Amadeu (???) fazia. À falta de sua voz suave de barítono nos corredores. Não era só que não o víssemos mais, que não o encontrássemos mais. Via-se a sua ausência, ela era palpável. Sua falta era como o vazio nítido em uma fotografia da qual alguém recortou um vulto com a tesoura, e assim aquela pessoa que falta se torna mais importante e intensa do que todas as outras pessoas. Era assim que sentíamos falta de Amadeu: pela sua precisa ausência.” (p.166) Pascal Mercier in Trem Noturno para Lisboa
Da próxima vez
Da próxima vez irei ao teu encontro com sapatos de saltos altos e batom. Da próxima vez estarei com brincos importantes, impecável vestido que cobrirá os joelhos. Terei um lenço de seda enrolado no pescoço. Escolherei o anel certo, pesado, mas sem pedras preciosas, ouro com ouro, e as unhas estarão vermelhas. As mãos tratadas, o corpo perfumado. Da próxima vez levarei frutas como presente, não chá, nem livro. E abrirás o vinho adequado para a hora que se propõe adequada. Não pedirei uísque nem tantos copos com água … Beberei bebericando, serena. Comeremos comedidas fatias de queijo, e beliscaremos nacos de baguete, como os franceses. Uvas, maçã e morangos serão o perfeito. Delícias do fim da tarde rosada e gostosa. Um abraço cheio de cerimonia e cortesia. Da próxima vez nos sentaremos na ponta do sofá, cruzarei as pernas, uma sobre a outra, e elas se alongarão elegantes cobertas por uma meia de seda bem fina, acinzentada. Então colocarás um vinil de Mozart. Uma Sonata para lembrar George Sand e Chopin. E teremos a conversa comedida do segundo encontro. Sem talheres e mesa para nos confundir. Estaremos nós dois na boa cerimônia da elegância. E depois de meia hora a conversar sobre pintores e a olhar livros de arte a chuva surpreenderá o céu com raios e trovões. Não ousarás me tocar porque estou com a cor certa nos olhos delineados, e o cabelo impecável num coque trançado. Daremos um pequeno sorriso e abençoaremos a natureza que alonga o encontro. Elizabeth Mattos, Torres.
Sensualidade erotisada
Qual o fato novo para mudar radicalmente? Estou grávida. Parece extraordinário que esteja neste estado, afinal, nosso encontro tão apressado inquieto… Sem maçã nem vinho. Entre os livros e os quadros. O fetiche. Estou grávida. Brincadeiras de abraçar e beijar precisam de tempo e de reflexão. Filhos, antes de amorar amores. Depois que ele nascer estarei a te esperar. Virás me buscar, e no giro deste encontro nunca mais separar. No abraço outro beijo. Com os pés no barro da argila Xico Stockinger nos transformará em escultura. Bronze ou ferro e madeira. Elizabeth M.B. Mattos, Torres – 2017
A invenção da solidão
“Il se levait tôt chaque matin, ne rentrait que tard le soir, et entre les deux le travail, rien que le travail. Travail était le nom du pays qu ‘il habitait, dont il était um dees plus ferventes patriotes.”(p.68) L’invention de la solitude, Paul Auster. Livre de Poche,1982.
“Levantava cedo todo dia, voltava tarde para casa toda noite e, nesse meio tempo, só trabalho, nada senão trabalho. Trabalho era o nome do país onde vivia e ele era um dos maiores patriotas. Isso não significa, porém, que trabalho para ele fosse prazer. Trabalhava duro porque queria ganhar o máximo de dinheiro possível. Trabalho era um meio para alcançar um fim — um meio para o dinheiro. Mas o fim não era algo que lhe pudesse também proporcionar prazer. Como escreveu o jovem Marx: Se o dinheiro é o elo que me liga a vida humana, ligando a sociedade a mim, ligando a mim a natureza e o homem, não será o dinheiro o elo de todos os elos? Não pode ele desfazer e atar todos os laços? Não é ele o agente da separação universal? ‘
Meu pai sonhou a vida toda se tornar milionário, ser o homem mais rico do mundo. Não era tanto o dinheiro em si que ele queria, mas aquilo que o dinheiro representava: não só sucesso aos olhos do mundo, mas um modo de se tornar intocável. Ter dinheiro significa mais do que ser capaz de comprar coisas: significa que as privações do mundo jamais nos atingirão. Dinheiro no sentido de proteção, portanto, não de prazer. Por ter vivido sem dinheiro quando menino, e, portanto, vulnerável aos caprichos do mundo, a ideia da riqueza tornou-se para ele um sinônimo da ideia de fuga: fuga da injustiça, do sofrimento, de ser uma vítima. Não estava tentando comprar a felicidade, mas simplesmente a ausência de infelicidade. Dinheiro era a panaceia, a objetivação dos seus desejos mais profundos e mais inexprimíveis como ser humano. Ele não queria gastá – lo, queria possuí – lo, saber que estava ali. Dinheiro não como um elixir, portanto, mas como um antídoto: o diminuto frasco de remédio que levamos no bolso quando partimos para a selva — no caso de sermos picados por uma cobra venenos. ” (p.63-64) Paul Auster, A invenção da solidão: tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
A quarta carta
Estou a te pensar, estou a pensar no labirinto, estou a pensar em nós dois, estou a pensar como seremos, tu e eu. Fico indo e voltando como se fosse possível medir o que não é pelo que é. Como foi embalar, meninos, uma fugaz tarde de março? Penso, estremeço. Sinto medo. Se houver outro beijo, aquele que não nos demos, se as horas se enfiarem apertadas e saciadas, se a luz entrar devagar, e eu sorrir sem pejo … Se eu imaginar que o corpo é invólucro perdido e achado comandado pelo desejo … Se …
Acordei depois de um sono bem grande no meio da noite. Uma das delícias de viver sozinho é poder estar viva a qualquer hora sem nenhum constrangimento. As janelas estão todas abertas, a luz da calçada ilumina um pedaço da sala. Ônix cuida o movimento dos gatos, o vento sacode o que pode sacudir, e eu escrevo. Esperei o ramo de jasmins, ou seriam anêmonas, rosas? Ninguém me trouxe flores. E pensei. As histórias são as dele, a vida é dele, os acertos dele, eu, eu não sou parte dele sou apenas um Eu. E voltei no/ao/ em tempo. Telefones soam no meio da noite. O fantasma desce, entra, se acomoda em qualquer cadeira e firma o olhar. E logo, cadeiras tomadas … Estou no palco com vontade de acarinhar indefinidamente acarinhar. Sono, vigília, insônia, ânimo. O que posso fazer com estas coisas todas remexidas? Como posso controlar o revirado? Sem ponto vou andando, com virgula respiro, nas reticências imagino, nas interrogações choro e nas exclamações compreendo. Choramingo porque o tempo o tempo me pareceu nosso, apenas nosso, egoisticamente nosso. Elizabeth M.B. Mattos, Torres.
De frente para o mar
“Sonhava com tarefas inacabadas, inacabáveis.”
Carmélio Cruz, óleo sobre tela, 1966 Torres
Estou de frente, na frente do mar outra vez. Posso ver a Ilha dos Lobos, areia, pedras, gente, cães, o gramado. Fico olhando… O mar muda de cor e de movimento e de conversa. Trepida esta vida miúda, a minha. Uma agitação de coisa boa me cerca. O apartamento novo tem uma sala ampla com janelões cheios de maresia. Outra vez perto do mar. Depois de tantas e infindáveis mudanças, talvez, esta nem seja a definitiva, mas gostaria de convidar todos os meus fantasmas para sentirem este cheiro, e brindar. Felicidade de alma. Não se explica. E tudo será do jeito que gosto. De quadros, o Iberê Camargo ficou na parede menor. Glauco Rodrigues trouxe Jandira, têmpera a ovo sobre madeira de 1951. Do Danúbio Gonçalves as aquarelas de mar e flores. Os retratos de Carmélio Cruz ficarão juntos, na galeria das mulheres. Os nanquins coloquei uns sobre os outros numa coluna, gosto de Darel e do Aldemir. E pensei no olho exterior, que assiste. Olha e vê outra coisa que não vejo. E do olho interior de cada quadro que segue na sua corrida do imaginário. O plástico (a arte) exerce o prazer desta interioridade exposta. A mesa retangular ficou encostada na outra parede para receber o meu material de trabalho, os vasos amontoados, também os castiçais, e duas fruteiras coloridas da Lattoog. Em cima, encostado, o autorretrato do Pedro Moog. As paredes são brancas, mas estão se colorindo… Duas Pantoche soltas no meio da sala. E, para a rede com franjas rendadas, consegui um bom lugar. Poucos móveis. Um sofá pequeno e na lateral aquelas mesas ninho tão do meu agrado. Coloquei tapetes mexicanos, coloridos, mas pesados. O pequeno persa na frente da cadeira com estofado de flores miudas. Gosto de andar descalça. O assoalho com lajotas vermelhas, me agrada. No quarto menor estantes nas duas paredes, e uma escada metálica que roda nos trilhos onde ela vai até o teto. Uma pequena mesa no centro, duas cadeiras. Uma luminária que vem ser moderna e vermelha. Elizabeth M. B. Mattos – março 2017 -Torres.
Glauco Rodrigues, Jandira têmpera a ovo sobre madeira, 1951.
“Certo dia, Simon Segal quis fazer meu retrato. Era um dia de inverno em que eu estava inteiramente sonhador. Sonhava com a vida que me fez – não sei por que! – filósofo. Sonhava com tarefas inacabadas, inacabáveis. Em suma, Segal me surpreendeu numa hora de melancolia. Mas aí está o testemunho de minha vida difícil. O pintor, estou certo, disse em sua linguagem uma das minhas verdades. ” (p.34) Gaston Bachelard, O Direito de Sonhar.
Fitas coloridas
Nas pontas de cada fita (uma tira comprida, estreita de qualquer tecido ou material) está uma medida de amor. Da saudade ao carinho, da mágoa a tristeza, da frustração a certeza. Pode ser de veludo, de corda, de tecido … não importa tamanho, comprimento ou mesmo a cor. Fita amarela, verde vermelha ou azul ou cheia de listas, ou pontinhos ou com desenhos pintada … A fita se estica dá uma volta e se revira num laço. A fita explica/ diz, grita, sublinha, enfeita este presente.
Festiva, amorosa explicação deste te gosto inexplicável. No começo e no final a cada ponto da fita uma história. De amor, de despedida, de saudade, e de ainda gosto. Não termina o amor bem-amado se foram empacotados enfeitados com as fitas coloridas desta memória cheia de fitas… Elizabeth M.B. Mattos, Torres.