Reagir

O desânimo agarra silencioso, forte. Não é depressão, mas tristeza aguda. Não é apenas a  lama que avança, nem o apito do vento, ou esta chuva cortando. Talvez o efeito de estações desarrumadas. É novembro, sinto frio, e  medo. Às vezes sinto medo. Elizabeth M.B. Mattos – 2015 novembro

 

 

Questão africana

[…]”ler não é uma recreação tipicamente africana. Música sim, dançar, sim; comer, sim; conversar, sim; – muita conversa. Mas ler, não, principalmente, não a leitura de grossos romances. Ler sempre nos pareceu, a nós, africanos, um negócio estranhamente solitário. Nos deixa inquietos. Quando nós africanos, visitamos grandes cidades europeias, como Paris e Londres, notamos como as pessoas nos trens tiram livros das bolsas, dos bolsos, e se isolam em mundos solitários. Cada vez que um livro aparece é como uma placa levantada. Me deixe em paz, estou lendo, diz a placa. O que estou lendo é mais interessante do que você poderia ser. 

Bem, nós somos assim na África.  Não gostamos de nos isolar dos outros e nos retirar para mundos privados. Nem estamos acostumados que nossos vizinhos se retirem para mundos privados. A África é um continente onde as pessoas participam. Ler um livro sozinho não é participar. É como comer sozinho ou falar sozinho. Não é o nosso jeito. Achamos isso meio louco.”(p.47-48) 

Elizabeth Costello, J. M. Coetzee. Companhia das Letras, 2004. São Paulo.

Elizabeth Costello é a biografia de uma mulher mãe, irmã, amante, escritora. Ocupa um espaço entre a ficção e o ensaio.  J. M. Coetzee  desenvolve profunda e perturbadora meditação sobre a natureza do romance.

Albertina desaparecida

Esquizofrênicas as tuas cartas, ou o conjunto delas. Em qual delas posso confiar? Na mulher que me ama e me induz ao amor, ou na outra que me ordena que me afaste porque ela própria já me antecipa que resolveu estar distante?

Ontem recebi tua enxurrada de cartas. Li cada uma delas. E por ordem cronológica, a partir do selo do envelope. O problema é saber com qual das cartas fico, a qual respondo? Agitei-me, no início, com as duas primeiras cartas, quando me propões, ou sugeres arrumar a mala, deixar tudo, e viver contigo. Aí, algures, alhures. No meu remoto e ignoto inconsciente, me vi chegando a Minas Gerais, logo Vala Seca, malas na mão, e tu me recebendo com o sorriso que te faz melhor que tu, o que és, e que é muito. Li essas cartas-convite sentado junto ao bureau. Quando, em seguida, tocou a vez de outra carta. Mudei de lugar. Fui direto ler na cama, onde ainda permanece teu cheiro, nosso cheiro, mas no fundo só o teu perfume.  Li a carta do rompimento deitado para que o golpe fosse menor. Em poucos minutos,  passei da euforia de sermos definitivamente um do outro, a depressão de não mais te ter, não mais te ver, jamais voltar a te sentir. Esquizofrênico amor o nosso. Elizabeth M.B. Mattos – 2015 – Torres

Sem dúvida, do mesmo modo que, tempos atrás, eu dissera a Albertina: ‘Não a amo’, para que ela me amasse, ‘Esqueço as pessoas quando não as vejo’ para que ela me visse muitas vezes. ‘Resolvi deixá-la’, para prevenir qualquer ideia de separação – agora era por querer absolutamente que ela voltasse dentro de oito dias que lhe escrevia: ‘Adeus para sempre’, porque desejava revê-la que lhe escrevia: ‘Acho perigoso tornar a vê-la’, porque viver longe dela me parecia pior que a morte que lhe escrevia: ‘Você tinha razão, juntos seríamos infelizes’. Ao escrever-lhe esta carta fingida […]”. 

Albertina desaparecida, a versão de A fugitiva alterada pelo próprio Proust. Inédita até 1986. (p. 54) Editora Nova Fronteira, 1989. Rio de Janeiro

“‘Que conhecia eu de Albertina? um ou dois perfis contra o mar… Amamos em função de um sorriso, um olhar, um par de ombros. É o quanto basta; depois nas longas horas de esperança ou de tristeza, fabricamos uma pessoa, compomos um personagem ...’  Nosso sentimento pode ter se tornado muito forte porque o nutrimos de angústias e hipóteses, mas está construído sob alicerces muito frágeis para aguentar o peso do edifício. Além disso, a pessoa que amamos, como todas as outras, é incognoscível, de forma que, mesmo se a conhecêssemos mais, não  a conheceríamos de todo. Após anos de vida em comum, que sabemos, que conhecemos de quem nos acompanha? Algumas frases, alguns gestos, alguns hábitos. Mas os pensamentos secretos que constituem sua essência permanecem – nos, por definição, inacessíveis, enquanto seus pensamentos são deformados pela linguagem, pela vontade de agradar, pela incapacidade de se explicar em que quase todos estamos. ‘a gente sempre se decepciona,’diz Proust, ‘com o pouco que há de uma pessoa real nas suas cartas.’ Podem ser cartas brilhantes, carinhosas, comoventes, mas é raro que exprimam toda a natureza de alguém.”(p. 176) Em busca de Marcel Proust,- André Mourois Editora Siciliano, 1995. São Paulo.

Volto a me debruçar

A coisa mais difícil é não se interessar por nada. Não ler, não ter nenhuma distração. Alcançar o silêncio e a escuridão. No entanto, é no silêncio que a realidade se acende. É no silêncio que as vozes chegam.  E preciso ouvir a palavra. Mas é  a imagem que conversa…  Não escuto.

Estranho! Sempre temos vontade de viver na imaginação de alguém. O outro atravessado no olhar… agarrado/agarrando…

A janela devolve o movimento. Luz e som. Corro atrás das coisas e perco a alma. Esvazio o coração de pesares. Dúvidas, arrependimentos. A experiência sufoca. Guardo a inspiração.

Copiar é o exercício do artista. Copiar o gesto, a palavra. Para copiar é preciso ver, observar, olhar. E, para ser feliz é preciso eliminar pensamentos. Fugir para longe do corpo, o corpo nunca está satisfeito.

Sinto preguiça. Volto a me debruçar na janela.

B. A. 17 de maio 

Estou perdido no mundo. Não sei sequer que horas são, meu relógio de pulso, sem pilhas, não me dá o norte do mundo. Estou sozinho no meu apartamento, no meu, não no nosso). Sei que é de tarde pela inflexão do sol. E que é muito tarde porque estou famélico e o frio aperta mostrando que estou sem me alimentar. Aqui estou desordenado, desorientado, perdido. Todas as coisas foram para o apartamento novo e escrevo -te da mesa da cozinha, no pouco que aqui restou intacto. Creio que  que eu restei intacto. Intacto, mas começo a sentir o tiroteio. Ontem recebi tua enxurrada de cartas. O porteiro as havia guardado no nosso apartamento para me entregar em mãos.  Isso atrasou-as uns dez dias. Talvez tenha sido bom. Se as tivesse recebido antes, talvez não houvesse enviado tantos telegramas. F.T. E eu digo saudade / esvaziar um amor demora.

Saudade utilitária. Cuidado com a palavra saudade! Tem um sentimento que se diz saudade, mas é antes necessidade. Necessidade de companhia, de apoio, um utilitário. O sentimento amoroso fica soterrado. Não se trata do outro, mas de uma bengala. O depósito, a segurança. F.T. Elizabeth M.B. Mattos – 2015

LEITOR

 

Leio, e faz muito,

desde o tempo dos tempos

ou de mim.

Transformei-me num leitor.

O que me sobra de gente

às vezes nem dá por ler,

aonde fui me meter!

Era o saber, era a vida, era a possível saída,

apenas caminho a andar, 

sem chegar e sem parar,

coisa de perder o ar!

Que horror,

transformei-me num leitor!

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Paulo Hecker Filho

Vento, Águia, Coelho, editora Alcance, Porto Alegre/RS 202

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Prêmio Jabuti 2015

3609Sucesso ao livro, ao autor, ao amigo, ao meu professor!

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“Acho que te falei que o meu livro Do mito das musas... ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras, não? Pois bem: o dito cujo emplacou outro prêmio, na categoria Humanidades, da ABEU (Associação Brasileira de Editoras Universitárias). E está entre os 10 finalistas do Jabuti, na categoria Teoria / Crítica Literária, Gramáticas e Dicionários. O resultado final sai antes do fim do ano. Pode começar a torcer, por favor. Enfim, o livro parece ter emplacado, o que me deixa bem contente.”

“Saiu o resultado final do Jabuti, e o livro Do mito das musas ganhou o prêmio. As musas do título estão me favorecendo, e ainda há quem diga que elas não existem”.

Meu amigo querido, fiquei na torcida com a certeza. Estou completamente feliz!

Camões, pois é

O recado que trazem é de amigos, / Mas debaixo o veneno vem coberto, / Que os pensamentos eram de inimigos, /

No mar, tanta tormenta e tanto dano, /Tantas vezes a morte apercebida; / Na terra tanta guerra, tanto engano, / […] Onde pode acolher-se um fraco humano, / Onde terá segura a vida curta,/ Que não se arme e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno? (105-106), Canto Primeiro, Os Lusíadas de Luis de Camões

 

Ao mesmo tempo

Generosidade. Compreensão. Pessoas amargas. Vaidosas. Outras inteligentes, mediadoras. Medíocres. Não se consegue classificar. Ditados populares. Discurso pronto? “Sou velho, posso dizer o que penso”, “são jovens, não sabem o que dizem”, ou ainda, “crianças repetem o que ouvem em casa”. Justificar. Generalizar pode ser a receita.
Planamos. Flutuamos.
Acho que a vida pode se desenhar colorida na esquecida generosidade sorridente. Cheia de adjetivos. Estou no balanço do perdão. Quero entender a dor, este aperto, a falta de ar. Será que tudo assim ao mesmo tempo enlouquece?

Não sei nem vou explicar

Não sei o que dizer. Vou me esconder na caixa azul. Guardada, extraviada. Amarela. Vermelha a caixa de cima. Estou a respirar pelo rasgo. Triste. “As coisas acontecem ou não acontecem, só isso. Nada é realizado pelo suor e pela luta. Quase tudo o que chamamos de vida é apenas insônia, uma agonia porque perdemos o hábito de adormecer. Não sabemos deixar as coisas correr. Somos como o boneco de uma caixa de surpresas pendurado na ponta de uma mola e quanto mais lutamos mais difícil é entrar de novo na caixa.” Estou na caixa azul. Guardei a lama tóxica de Mariana no vidro de palmitos, aquele da tampa enferrujada. Em Minas Gerais, o rio Doce, contaminado, morre. Paris chora. Estremeço. Encostei o velho roupeiro contra a parede externa, assim escondo o buraco. Não vou me mexer, nem explicar porque amo a França inteira, ou Minas Gerais, ou o Rio de Janeiro, ou o balneário de Torres. Logo vou ficar outra vez alegria. É assim mesmo, sem sentido. “Sentia pena da raça humana, da estupidez do homem e de sua falta de imaginação.” Henry Miller, Trópico de Capricórnio.

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