despedida

No fundo de seus olhos azuis, um lampejo. Um brilho intenso de tristeza. E raiva. Que cena tão simples havia sido lembrada? Mansa e dilacerante. O dia de terminar. Ou a falta de luz… Entrega sem volta, sem pergunta. Esvaziada expressão. Altero a voz, o olhar.

Sonhos se partem: os teus ali, os meus aqui. Não somos mais. Ou apenas, odor… Rosas, petúnias, hortênsias e cravos, laranjas, pêssegos e morangos. Sem esquecer das amoras azuis, e das lágrimas. Na despedida beijo teus olhos. Elizabeth M.B. Mattos –  Rua Redentor. Dia de paz. Rio de Janeiro – 2014

 

Portão Azul

Escreve Javier Marías, o espanhol: “[…] e o que tinha falhado era o tempo, que talvez nunca passe totalmente, ao contrário do que costumamos acreditar, como tampouco nunca deixamos de ser inteiramente o que fomos, e não é tão raro escorregar no passado de um modo tão vivo que este se justaponha ao presente […]” Então eu me ponho a ler devagar, errado, desconcentrada. Dispersiva, parando, bebericando chá, comendo abacate, querendo café, suco, fatia de bolo, bergamota. Ou vou solta num olhar através das vidraças, imagino o outro lado. Procuro, volto à página interrompida… Qual página? Já não importa, está na trilogia Seu rosto amanhã. Inoperante. Atabalhoadamente, adoro esta palavra, resolvo te escrever sem preencher, minimamente, o programa. Amadeu, em Trem Noturno para Lisboa, discursa sobre o uso necessário das palavras, e afirma estarem gastas, vazias do sentido primeiro, sem sentido, ou escondidas num contexto diferente, já código, ruídos, comunicação, nem poesia, nem cuidado. Palavras perseguidas, ou preenchidas por visões pessoais. Lobo, preto, lustroso, inquieto, pequeno, desconfiado, fiel, medroso, teu. Atabalhoadamente volto a escrever. Vou abrir a porta, acender as luzes. Elizabeth M. B. Mattos – Portão Azul, junho de 2014.

100 anos de Iberê

Iberê Camargo:

Pintor brasileiro. O sentir colorido pressente o espaço de um mundo, acede a verdade na obra.  Nele não apenas o traço definitivo, mas a cor. Não é pura representação, enfeite, ou adorno, a arte, mas também ar. A verdade do sentir. A diferença da percepção, as estruturas intencionais. Ou não? O sofrimento da ausência, irrisório. Pensar a tela Solidão. Quem perdeu definitivamente o contato não tem consciência nem do contato nem da perda. Nossa intimidade com o mundo é flutuante, a pintura definitiva, como cartas. Vamos sublinhar as pessoas, a arte, assim permanecem. Cem anos de Iberê. Elizabeth M.B. Mattos – 2014

Junquilhos

Meu amigo, em tempo:

Também eu assinalei esta passagem. Amadeu introspectivo, vigilante. Ao ler o fragmento, de imediato, parei. Levantei os olhos, fechei o livro. Voltaram, enfileirados, acontecimentos que antecederam escolhas. O velho amargado desejo de casar. O silencioso momento do nascimento. O medo que antecede ao filho. A tomada de decisão apressada. As inexplicáveis rupturas. Mentalmente, fiz a lista destes cortes doloridos, todos, mas ainda assim, propulsores. A dor, a resolução, a caminhada. O silencio imperioso. Prosaicamente se acomodaram nas caixas, nos maços de papel, nos arquivos, paradoxalmente presentes em objetos, fotografias. Segredos dos segredos que levam ao inferno. Ou para o inferno? No entanto, sem estrondo, sem notícia no jornal, sem grito se torna definitiva a escolha. Sangue escorre como lágrima, escorre.

“ Na verdade, a dramaticidade de uma experiência decisiva na vida é de uma natureza inacreditavelmente silenciosa. ” (p.48) Trem noturno para Lisboa, Pascal Mercier.

Sim, meu amigo, a tua leitura caminha com a minha leitura. No mesmo tempo!  Hoje escolhi junquilhos para colocar no vaso. Elizabeth M. B. Mattos

Portão Azul, lugar nenhum, em junho de 2014.

Coisa difícil…

Um rasgo de luz no céu. Frio, como se fosse inverno, mas é outono. Das laranjas, dos cítricos, e do fogo, aquecendo, ainda pouco, sem pinhão. Ou com pinhão? Vagares esquecidos. Cristovão Tezza:Todos os significados reais estão fora das palavras.” Gostei da liberdade, do casamento aberto. Respeito ao amor. Mesmo amor aos filhos que não compreendemos, e aqueles que abandonamos, sem o desespero de envelhecer, apenas uma costura para encontrar o sentido da vida. Assim o livro O Professor vai se compondo, fácil assim, mas não é. Ainda: “É impressionante a rapidez, a eficiência com que o ouvido brasileiro procura e descobre todas as nuances ocultas de significado no evento da fala enquanto as palavras todas discorrem sobre outras coisas que não têm nada a ver, e é impressionante como também respondemos com palavras que estão longe do que importa, mas deixando nas frestinhas da sintaxe os sentidos secretos do que realmente queremos dizer. ” 

” – Em outras palavras, professor: o ouvido brasileiro é o ouvido mais apurado do mundo para interpretar o não-dito e responde a ele. Ele se alimenta daquilo que não é dito. A percepção brasileira navega quase o tempo todo no subentendido.” (p.140-141) 

Portão Azul, depois do começo. Ainda em junho de 2014.

Imperfeito Dia

Meu amigo:

Segue cinzento. Desfiz as malas depois de viagem inteira sacolejando nas voltas da angústia. Gavetas abertas, duas portas do armário escancaradas, e as roupas na mala. Escolhi chá, como tu sabes, evito café preto. Protejo as noites da vigília. Sentei naquela cadeira perto da janela olhando sombras. “Quem é que conhece as verdadeiras razões dos seus temores? ” Voltei a repetir em voz alta a frase. O suor no inverno, o fogo no corpo, e esta respiração ofegante acusa medo. Fico imóvel, espero que passe. Não sabemos de onde chega, mas sentimos. Se olhares o desenho das nuvens, também tu, meu amigo, vais estremecer. Encobre esperança, esconde o riso, silencia o piano. Faço um esforço para abrir os olhos. Medo. Temor, insegurança. Esbofeteada no meio da calçada, surrada, espremida na voz ríspida da notícia que se espalha. E a cada empurrão, duas, três horas para recompor o ânimo. Estes esbarrões, estes gritos, nomes indizíveis flagelam. O cheiro da maconha, do álcool, deste desmedido alienamento assusta. Já nem sei se quero encontrar razões para temores. Acostuma a covardia. Ingenuidade, credibilidade, palavra nem importa. Agressão nos envelhece num átimo. Estou covarde.  Da viagem posso te contar que as feras na África oferecem menos perigo do que as nossas esquinas.

Nota:

Imperfeito dia! As propagandas, e as ‘figurinhas’ das revistas estavam repetitivas… Desanimador o jogo!

 

Portão Azul, ainda 19 de junho de 2014.

Das cartas de junho

Como é que se escreve uma carta depois de tanta ausência? É preciso dizer, confessar o meu engano. Começo a entender a situação. A vida que planejei – sonhei -, planos, expectativas -, essa vida se apaga entorpecida. Não posso voltar ao ponto zero. Como explicar? O futuro como uma cidade nunca visitada. Uma cidade do outro canto do país. Viajei de um lado para outro, com todos os pertences empacotados, chegando tantas vezes, e não encontrando… O percurso marcado claramente no mapa, mas quando chego, dou-me conta que o lugar não é aquele, não mais, ou nunca foi. A cidade que procuro desapareceu – talvez nunca houvesse existido. Uma sensação de ruptura. Numa vida, havia uma cidade para a qual viajava. Em outra, se tratava apenas de um lugar que havia inventado. Desta incerteza, ou desta obviedade o meu terror! Não vou conseguir chegar, e já não tenho mais forças para recomeçar. Buscar o que nunca existiu? Voltar para casa. Acertar o tempo de ficar, de permanência sem espiar, sem sonhar, sem querer avançar. E avançar justo para o lado que não tem estrada, nem cidade, nem nada. Interromper a esquizofrenia da invenção. Da poeira. Dos embates, quixotadas. Este descalabro por estar lá, ficar, ser reconhecida. Nunca deveria ter ido, nem tentado! Não existe pode ser entre as pessoas, não existe voz… Há qualquer coisa de mágico no saber ficar, entender que mesmo pela janela, o outro lado da sua rua é a referência perfeita. Se existe âncora, se existe paz, não está nas cidades visitadas, no caminho percorrido. Não se trata de prisão, mas certeza. E sequer de contar para o outro, ninguém ouve. Palavras são moedas. Desconheço numismática. Estou equivocada. A saída? Escrever para você.

Acabei de reler os dez capítulos da tese: Um só Pintor, tantos olhares! Recolhi velhos cadernos de francês, folhei livros separados em pilhas, por assunto, ideia sua. Sentei no sol do meu tapete, mas não compreendi nada sobre o lugar para onde voltei. Estou perdida, meu amigo.

Albertina Martins Cardozo

Portão Azul, 19 de junho de 2014

Elizabeth M.B.Mattos – junho de 2014 – Porto Alegre

Rio Grande do Sul

Nesta tarde de novembro alagada de sol, a minha consciência positiva de proprietário é um dilúvio de orgulho. De orgulho generoso e patriarcal. Dez homens, uma comparsa de esquiladores, no extenso galpão eventualmente assoalhado de couro e tábuas, beliscam o silêncio – só o silêncio? ”, desta forma começa o livro de Aureliano de Figueiredo Pinto.  Puro requinte.

Há cheiro de rebanho – respiração, transpiração animal, dejetos, lãs vivas – em cada objeto e cada canto. ” Ou ainda: “ Estou rápido, ríspido nas ordens, nas providências, no comando de meus serviços e das lavouras. ” Também uma descrição preciosa assim, tudo continuação, nada excesso, perfeito: “ A  tarde amansa-se de longas sombras, que as árvores estiram nos gramados rentes, à maneira de chalés e fichus de vovozinhas, corando, quarando nos últimos ouros do crepúsculo.” Precisão, beleza. No primeiro capítulo, já em três páginas. Não posso transcrever completo, mas afirmar, primoroso. Memórias do Coronel Falcão.

Era verão

Dores. Estranho movimento: acelerar, interromper. Problema para respirar, incômodo, dor, e ansiedade se misturam. Cheguei cansada. Costas partidas. Dor. Bastante dor. Mais à esquerda. Aperta. Aborrece. Dificuldade para dormir. Incômodo. Alívio depois do diagnóstico. Remédio certo o aperto é contornável.

O corpo pesa e pende para o lado esquerdo. Embora as persianas estejam fechadas não consigo me isolar. Vento, mormaço, movimento contínuo de carros. A luminosidade oblíqua explica: estou em casa. Tudo é bem-vindo, estou em casa. Busco intimidade comigo mesma, serenidade. Necessito do espaço, deste silêncio sem dor. Maldita dor!

Que acúmulo de objetos! O excesso, desmedida importância. Desqualificada exaustão. Amolecimento. Incerteza pestilenta.  Sentimentos batidos no centrifugador, picados. Confusos.  Medo de morrer. A dor sinaliza a chegada, o ponto. Limitado caminho. Medo personificado, vivo. Um envelope com surpreendente conteúdo: o que deveríamos priorizar nesta vida, neste momento? O próprio olhar, a mão estendida? Como expressar, colocar em palavras aquilo que nos parece o melhor, ou interferir no injusto, no atropelado pela ansiedade de cumprir, experimentar? Toda observação é descabida, descabelada, sem propósito. A cada escolha uma avalanche de cor, sabor, e obviedades. Sinalizadores inúteis. Por que não poderíamos parar de provar? A lágrima desce na emoção da felicidade, ou como válvula. Pressão maior, descuido, intimidade que se solta? Não sei. Um só dia com as características de mês, ou ano. Resultados imperfeitos num tempo que se propõe ideal.

Histórias são repetições: o véu, as alianças, as cadeiras, o sino, as pessoas, o deus, a confissão, a incerteza, o amigo, a pessoa, a delicadeza das flores, exuberância, volta, fotos: excesso de fotos que se cristalizam. Identificam? Fotos para o permanente, imortalidade. Alma do momento. Sopro da felicidade.  Foto que foca o espaço entre os dedos. O modelo. O suspiro. Não sei. A revelação aberta das imperfeições que se querem perfeitas. O porta retrato, a poeira do tempo, o abraço, o copo, a garrafa, os pratos. O doce. O movimento da luz. A música. A dança. Já o corpo se apresenta inteiro, doído, apertado, mas inteiro. O sono, a cama. Travesseiros, cheiro, leveza, peso, os carros acelerando, freando, o som da televisão. Desconforto. Felicidade? Estou viva. É o começo que assinala o fim. O concluído. A exuberância da voz nos abraços, no encontro com gosto de café, de laranja, de pão fresco, ovos, o espaço. O conforto do carro, velocidade, chuva e música. Outras histórias. Saudade. Água, luz e sono. Muito sono. Elizabeth M.B. Mattos – 2014 – entre Porto Alegre e Torres

 

Madrugada Suja

Miguel Sousa Tavares, o autor de Equador. Gosto do jeito ligeiro. Das histórias. Descrições mesmo que repetidas. Fluência. O esperado, mas pesquisa. Fotografia. Diferente de estar no trem, no trem questionamos, pesamos, voltamos atrás, nem avançamos…

A leitura tem aquela coisa de intenso, mergulho e um hoje / agora. Findo o livro num relampejar: o que faço deste domingo? Domingo chuvoso que já termina. Vou te escrever. É isso? Gosto de começar, do início. Nada a lamentar, como diz um amigo querido, mas aquele jeito de interromper, deixar-se ficar tão a meu gosto, por quê? Não sei. Por trás do apaixonado o escritor se esconde na rotina interior, armazenamento. Isso o Tavares deixa vivo. No entanto, Madrugada Suja passou pelas estantes das livrarias, passou. O fundo político, a corrupção deslavada, esta bruta dificuldade de ser limpo… O autor resgata. Seremos resgatáveis? Não sei. Talvez, com a mesma urgência, se queira partir pra Medronhais da Serra, não Lisboa, mas sempre Portugal. Elizabeth M.B. Mattos – 2014 – Rio de Janeiro