intelectual

“Quando não se é intelectual, a inconsistência e a pobreza das ideias faz temer que todo o escrito (exceto um poema, talvez um conto) resulte inútil e ridículo. Ideias, ou seja, estabelecimento de relações, cabeças-de-pontes, pontes. Cercado de livros, inclino-me sobre uma flor que deixaram na minha mesa. Ela me olha com a sua pupila cega e translúcida; acho que se me olhasse de verdade, não me veria.” (p.10) Julio Cortázar Diário de Andrés Fava

para o meu João

“Na esfera das obrigações, do trabalho, não me sinto mal por estar obrigado a ganhar um salário (nunca dizer, nem por distração: ‘ganhar a vida’); a canseira desse trabalho impessoal me lança com mais vontade às conferências, a um concerto, a uma perseguição ardente. O que verdadeiramente me frustra (homenzinho, funguinho, medroso) é o trabalho do amor, dos carinhos, dos laços com a minha gente. Não perco a liberdade porque trabalho, mas trabalho para conservar o círculo, a family reunion, o prazer das amizades. Não sei romper os laços; e o que é pior, vejo claramente que deveria rompê-los (ou ter pelo menos a certeza de que posso fazê-lo esta noite ou na semana que vem); vislumbro em mim a semente dos que devem estar sozinhos para poder dar algo, mas permaneço em Buenos Aires, cercado de pessoas que me querem bem – e assim, quando o carinho não escolheu ninguém, isso significa…

[…] Mas o que importa é verificar diariamente como o círculo impõe sua lei, provoca reações, dá polimento às arestas, contagia os vocabulários, corrói as pontas, unifica os credos; como aquilo que se chama ‘o grupo’, ‘a turma’ ou nossa equipe […] e isto faculta deslizes amáveis na vida (anda, vai ver fulano para que te façam o desconto na Albion House) e encaminha toscos destinos em grilhões bem burifados (tens que ler Greene; é necessário ir ao Cine Club; convém que seja você o autor da nota sobre o livro de Monona..) e mamãe, tão doente, e o seguoa da Previdência, e ” (p.77-78) Júlio Cortázar Diário de Andrés Fava – José Olympio Editora – 1997

Quando a gente não sabe fazer a conversa toda, nem convencer ninguém, nem conversar sobre isso ou aquilo porque as pontes foram detonadas, ou nunca existiram, e alguém não entende o porquê de usar reticências, enfim, como fica cansativo explicar, explicar… Ou pensar sem saída. Se eu vejo e tu não enxergas nada, por onde eu começo? Se escutas, mas não queres ouvir.

Cortázar tem razão: “Diante de algumas pessoas é imperioso fingir-se de idiota para que não nos tomem por idiota.” (p.79)

E às vezes é assim mesmo, ” o amor olhando por dentro de uma pequena xícara de café” (p.18) ou ” Há coisas que a gente ama na lembrança, mas já não pode atualizar, tolerar a presença.” (p.108). e isso me lembra as conversas com FT / e as cartas / os encontros, e as minhas cartas que o tal Eduardo H. segurou a pedido do Iberê Camargo? Que ridículas cartas seriam? E os retalhos ficam maiores do que a colcha. Gosto de me rir quando penso nestas coisas extraviadas, a vida de viver, e os encontros que nunca existiram, e aquelas confissões todas. Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2023 – Torres

P.S. Paulo Sérgio seria/teria sido uma guinada, uma decisão, mas eu tive muito medo, e rasguei a carta, aos pedacinhos bem pequenos, nunca te contei isso. Do medo não brota nada. Não penses que és apenas um parágrafo, claro que não. Eu sempre irei/iria/vou para São Paulo.

fatos heróis e filhos

Chegando ou saindo, coisa de acontecer no Rio Grande do Sul: os cinco a se encontrarem: a mãe e os filhos. O colorido da história. Das estórias remexidas, as nossas! E vai acontecer outra vez. Os cinco. Estremeço e já sinto. Antecipo. Sem combinação, ao acaso. Uma decisão puxou a outra e arrastou Rio de Janeiro, Recife e São Paulo. A explodir! Não acredito, digo, não importa, festejo.

O calor de cada fresta deixa entrar imaginação. Real / de realidade / mundo, de totalidade, verdade difusa, confusa. As obras / o fazer / o jogo. Escondidos a modificar um fato / o esquisito movimento… Notícia da vida / picotes, remendos. Antes, num tempo de cinquenta anos, ou sessenta ou quarenta, ou sei lá, eu não tinha tempo de escrever. Atropelada pela urgência, amores encontros e os tais desencontros, a correria de subir e descer, os filhos. Assim mesmo eu escrevia todos os dias /muito muito muito. Pensava acelerado e cristalizava sonho e vontade. Agora o esforço. E este tempo encerado, lustrado, enorme a me encarar. Sem preguiça, alerta, grande e vazio.

Ah! Existe a mordaça. Cristal / invenção e vontade eu dançava todos os dias, hoje a dança me embala, cuido a música. E não pensava… Acho que os fatos me antecipam, e o viver, a vida me carrega, faz acontecer o momento, ou apaga tudo… Foi assim quando Gustavo morreu, foi assim quando cheguei a Pernambuco, foi assim que eu visitei o Francisco Brennand. Foram assim os três dias de chorar e dormir que inundou a minha vontade. E plantou margaridas e trevos no jardim. Acordei feliz. Inundada em tempestade sem raios nem trovões, nas curvas do Capibaribe… Sei lá quantos anos se passaram, passaram, devem ter voado também. Lembro das comidas, dos passeios, do sono, das risadas da Luiza, dos sonhos, das cartas que escrevi, dos amigos alagados nos meus prantos a me fazerem rir. Lembro do meu sono. Embalada nas palavras, e no teu ritmo, nas histórias que me contas, eu te escrevo com saudades de ti. Agora, meu querido, temos a Lagoa do Violão e o mar, bem, o mar está algumas quadras a nos esperar… da janela temos a Serra do Mar. Temos Torres, meu querido. Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2023

E Paris. Para lembrarmos.

exagero

Foto de Pedro Moog- 2023

“Não é exagero dizer que o primeiro problema real que enfrentei na vida foi o da beleza. Papai era apenas um simples sacerdote rural, de vocabulário parco, e ensinou-me que ‘não existe na terra coisa mais bonita que o Templo Dourado’. Eu não conseguia deixar de sentir uma certa irritação à ideia de que aquela beleza já estava no mundo antes que eu soubesse dela. Se a beleza realmente existia ali, isso significava que minha própria existência era uma coisa afastada da beleza.’

Ansiedade desarrumada como duas palavras estranhas e esticadas. Estou querendo uma paz pequena que me estrangule, mas resistirei. Vou dormir todas as frestas, vou escutar música fora o lugar, desarrumar as gavetas e cantar. O prazer do meu canto /manto define; fomos ver as baleias, vou para Porto Alegre , depois São Paulo se me espera, acertar o passado com a graça do atraso…resgatar Paulo Sérgio e as conversas serão empilhadas, empacotadas, as nossas. Gustavo morreu, ainda não morreu, estamos juntos tecendo formas… o tempo se estica. Como demais. Vou guardar os doces para os merinos pensar = mudanças com eles e o devaneio se perfuma. Elizabeth M.B, Mattos – agosto de 2023 – Torres

carta / eco / voz

Descrição, o interior da tua palavra / carta, faz eco aqui neste lado. Teu escrever desorganiza o meu dia. As cores modificam a luz, o tom, o quadro… Os pincéis se agitam para contar da pitangueira florida, amoreira e doce de goiaba… Escuto tua voz, inclino minha alegria doméstica e sonho com teu poder poderoso. Eu? Sou eu derramada no que escreves / encho de flores a casa e preparo o encanto para te receber. Acompanho teus passos lentos com prazer. Elizabeth M. B. Mattos – agosto de 2023 – Torres com a janela ensolarada e o sono.

fotografar a Ônix pode ser entrar no sonho…

aniversário chocolate e tantas tantas tantas flores

As compridas tulipas rajadas estavam muito esticadinhas em suas hastes, como se fossem filas de soldados, e lançavam olhares desafiadores às rosas, que ficavam do outro lado do gramado, dizendo: ‘ Nós agora somos tão esplendidamente belas quanto vocês.’ As borboletas roxas esvoaçavam por toda a parte com pó de ouro nas asas, visitando as flores, uma a uma; uns lagartinhos saíam dos buracos do muro para se aquecerem no sol quente e as romãs estouravam e abriam com o calor, deixando à mostra seus coraçõezinhos sangrentos. Até os pálidos limões amarelos, que pendiam em quantidade da melissa mofada e, ao longo das arcadas, sombras pareciam ter adquirido tonalidade mais rica com a maravilha da luz do sol, enquanto as magnólias abriam suas vastas flores que pareciam globos de marfim recurvado, enchendo o ar de pesado perfume.” (p.83-84) Oscar Wilde Histórias de Fadas – O aniversário da Infanta

De fato estou com minha estória embutida… O fato de estar resolvida não me impede ver / imaginar flores e espalhar tinta colorida na tela que preparei. Pego os pincéis e vou passando pelas pastas, molhando as pontas nos potinhos e sigo a me esbaldar: sangue e imaginação atiçando as cores, e o texto. Estou cansada. Fiz a mudança ontem.

A casa tem um quintal apertado, e venezianas amarelas. A lareira com pedras irregulares (difícil de limpar), mas funciona. Comprei nós de pinho. Com lenha seca e gravetas o fogo iluminou o frio deste agosto. Setembro vai me acordar pensando primavera para me dar parabéns! Comi o bolo de chocolate. Abri o livro e as fadas entraram com o Príncipe Feliz do Oscar Wilde. E eu acomodei todos os fantasmas de amor e bebi o vinho para festejar. Pensei em reinventar meus cabelos e ficar blonde e bela. Por que não aceitar o tempo mudando tudo? Todas as vontades em lugares diferentes… Flores em pequenos vasos, enfileiradas no parapeito da janela. Sinto que os anos se desdobram, soam como sinos soam… As minhas invencionices me aquecem, mas a verdade, a evidente, é o danado deste frio misturado com morangos e ideias, e música. Dancei. Dancei e espalhei os discos de vinil pela sala. Esta história de entender estórias desalinha qualquer lógica. Vou amontoar os sonhos em baixo dos travesseiros e trazer as vontades para baixo dos cobertores e dormir. Amanhã vou colocar as roupas nas gavetas, as louças no armário, e polir as pratas enquanto mergulho as taças na bacia com sabão e luxo. Ficarão lindas amanhã. Amanhã. Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2023 – Torres

E o gosto de vida modifica tudo. “ Um gago tentando desesperadamente pronunciar o primeiro som é como um passarinho tentando despegar-se de um visgo espesso. Quando finalmente consegue se soltar, é tarde demais. Lógico, há ocasiões em que a realidade do mundo exterior parece ficar esperando por mim, como se cruzasse os braços, enquanto tento me soltar. Mas o que fica esperando não é uma realidade fresca. Quando, depois de todos os meus esforços, consigo atingir o mundo exterior, tudo o que encontro é uma realidade que mudou de cor e saiu de foco – uma realidade que perdeu o frescor que eu considerava necessário, e que recende um pouco a podridão.” (p.7) Yukio Mishima O Templo do Pavilhão Dourado – Editora Rocco, 1988

aparecer desaparecer

Meu querido:

“Múltiplas mudanças na cor do mar, de momento a momento. Mudanças nas nuvens. E a aparição de um navio. O que estava acontecendo? O que eram os acontecimentos?

Cada instante os trazia, mais impressionantes do que a explosão de Cracatoa. Só que ninguém notava. Estamos demasiado acostumados ao absurdo da existência. A perda de um universo não é algo que valha a pena levar a sério.

Os acontecimentos são sinais de infinita reconstrução, infinita reorganização. Sinais vindos de um longínquo sino. Um navio aparece e põe o sino a tocar. Num instante o som se apropria de tudo. O mar e os sinais são incessantes; o sino toca para sempre.

Um ser. (p.7) Yukio Mishima Mar da Fertilidade. vol.4

Meu querido amado: as histórias lidas e ou as inventadas, o lugar onde tu e eu penduramos o ar e a conversa: tudo está guardado / reservado. Guardadas as misteriosas caixas. Empilhadas. Dentro a saudade amarga, descontrolada…

Estás tão longe! Esqueço tua voz, teu olhar e teu jeito apressado de fazer e agradar. Teu jeito de resolver o mundo e os amores todos desarrumados, esquecidos a se remexerem na memória, na tua e na minha. Não vou construir nem fazer nada, tu vais. Vou olhar o mar, mudar de casa outra vez, plantar o mundo num lugar mais longe, ou mais perto, não sei, claro, eu te levo amado, comigo. Não importa que estejas no Japão, ou é na Alemanha? Ou caminhas pelas ruas… Paraste para tomar um café. Não importa. Quem sabe o Uruguai ou o Chile? Tua Suíça, teu sonho. Quero estar nele, grudada.

Eu não tenho escrito. Queria te contar dos velhos discos de vinil que brincam com minha memória. Tens razão quanto a música, aos metais, aos vocalistas e eu, tenho razão quando o piano que me transporta. Tantas vezes Modena! Outras Paris. Tantas vezes incerta, agarrada nas beiradas, a sobreviver! E tua voz… Por que perdi tua voz? Parece desengonçado este jeito de te inventar, mas, sei que viajas na minha invenção e juntos descemos, mãos dadas, ao jardim em frente da Lagoa do Violão. É o tempo voltando… Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2023 – Torres – quase chegando a Porto Alegre

lucidez

Não sei em que momento consigo ser lúcida -, ou se ela chaga com uma carga de emoção que a história / o fato se desenrola com clareza. Então sou capaz de ver / olhar e sentir o completo / o todo. Se explico fica cruel e difícil. Sempre existe um algoz / muitas vezes somos nós mesmos que nos castigamos / deixamos de acreditar, e quando deixo de acreditar não faz sentido nem isso nem aquilo. Nem mesmo ajudar… Como pedir ajuda? Como explicar? Não, não existem palavras nem jeitos, fico estupefata assistindo…Vou cair, vou cair, vou cair. e o tempo em que as palavras, as conversas não fazem sentido. O sentido talvez esteja numa xícara de chá, num olá bem humorado, numa risada alegre, aquela nos surpreende. Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2023 – Torres com chuva ruidosa, grande esta chuva… Talvez seja para molhar, de verdade. precisamos renovar o mundo.

W. Somerset Maugham

[…] o medo destrói qualquer defesa; até mesmo a vaidade é solapada por ele. Grande parte das pessoas têm um furioso desejo de si mesmas, e apenas são detidas pela pouca vontade dos outros em escutá-las A reserva é uma qualidade artificial que se desenvolve em nós como resultado de inumeráveis contras.

[…] Não gosto de passar muito tempo com as pessoas aborrecidas. Nem com as pessoas interessantes. Acho cansativo o convívio social. A maioria das pessoas, creio eu, ao mesmo tempo se distraem e descansam com uma conversação; para mim isso foi sempre um esforço. Quando era jovem e gaguejava muito, cansava-me falar por muito tempo, e, mesmo agora que relativamente consegui curar-me, é um sacrifício. É um alívio para mim quando posso ficar sozinho e pegar um livro para ler. 72)