raios trovões e tanta água correndo. cascatas nas ruas. um lamento intenso de chover, chover. sem pausa, com a ventania estourando flores, sacudindo árvores: uma conversa cinzenta. busco o colorido das flores insistentes… Elizabeth M. B. Mattos – outubro de 2023 – Torres com chuva, muita chuva.
Os vestígios de hoje se confundem. Na memória esquecida de hoje voltam inquietos, violados. Se anotei a receita hoje, e arrumei a casa para depois beber o café, esqueci… Esqueci a tal anotação, não encontro o papel. Estes falhos instantes me atormentam. Releio tua carta. Escrita jovem, saltitante a tua. A minha se arrasta até entender que estás vivo, inteiro, alojado nas experiências, nas tuas repartições… as tuas, não as nossas. Que medo eu sinto! Como esta guerra, estas guerras que se misturam na frente da câmara para redefinir o velho. tão o mesmo! Pois, com certeza estás certo. Remendar as lembranças quando o de antes não faz sentido… Há que pesquisar, cheirar a terra, acreditar na chuva e neste sol modesto de agosto. Eu te vejo amanhã. Eu te vejo da mesma janela… Um beijo. Elizabeth M. B. Mattos – outubro de 2023 – sempre foco os anos pares – o dos meus 18 anos…
Faço comida fora da hora. Invento o frango, corto em pedaços. Sinto cheiro da vida, e, claro, penso / lembro que cozinhávamos juntos. De repente, vejo/enxergo o sítio: os cães e teus amanheceres. As margaridas. Tua cerca de atravessar conversa. Tua festa em Viamão. Passo a borracha no tempo. Mas a voz fica em riscado apertado: lápis forte, o desenho marcado… Não adianta apagar. Passo outro lápis colorido por cima, avermelhado, o amarelo se mistura ao verde. Teu sorriso se ilumina. Muito bom pensar em ti. Vou te escrever uma carta para alegrar este frio de Porto Alegre. Elizabeth M. B. Mattos. Outubro de 2023.
Dia esquisito. Festeja-se como Dia da Criança, na verdade, dia de Nossa Senhora Aparecida. Memória: dia em que minha mãe morreu. Eu não estava em Porto Alegre / em Rio Pardo, eu acho, ou o que importa? Tanto tempo! A data, inusitada e significativa data/marco do tempo, as nossas: as tuas. O que de fato importam? Importam. Mais avança o tempo, a idade, a minha, a tua importam. Questiono o porquê, e como, e como será amanhã? Como estás meu querido? Elizabeth M. B. Mattos – outubro de 2023
O pai, guri. Eu com Ana Maria, Pedro e Joana, pequena. Érico Veríssimo, Rita Ruschel, a afilhada.
Luiza, a minha caçula gaúcha. Rio Pardo – Fazenda Santa Branca
quero estar / sentir a brincadeira, meu querido, amado. como vou te contar a ausência destes dias? sem palavras, entre vírgulas?! ou sei lá, sem voz. gira o caleidoscópio e me verás, inteira, festiva. igual presa na saudade. escuto e escorrego. vício de te pensar, de chegar…
fez bonito, fez céu branco no azul. agora chove tanto e tão e tanto, gosto de ter meu mundo lavado, enxaguado.
e não me dizes nada, como no poema… pois é, como o poema que mandaste / escrevo no teu silêncio e imagino. lembro o beijo. desastrado beijo o meu, os livros me explicaram, tu não disseste nada, surpreso. coisa de menina. estávamos na tua biblioteca.
descemos as escadas, às pressas, surpresos, os dois: uma enxurrada de palavras… não lembro mais. sentamos no pequeno sofá e começaste a tocar violão, a música equilibrou a tarde. a música responde a toda e qualquer inquietação, a gente embala e esvazia o tempo.
vou beber água mineral e me distrair com a bolinhas… Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2023 – Porto Alegre
Volto a estudar, estudar como menina: um certo enfado, uma surpresa. Pensava que sabia tudo, que nunca esqueceria ou que… Estudar e anotar, e repetir sem decorar. Como uma rajada de vento agitando os cabelos a surpresa me surpreende. Vou a me impressionar com a novidade… Mesclo, refaço, absorvo e logo, tão ao mesmo tempo, chega a incerteza: para que? por quê? A lógica. Interrompo. Talvez o livro de Georges Bataille, Ma mère, comece a fazer efeito… Detalhada e minuciosa leitura. Internalizo a emoção do autor, acordo a minha… Afinal a verdadeira leitura. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2023 – Porto Alegre
O momento é um movimento de uma luz que não ilumina, mas aquece. Uma dor que caminha arrasta os pés. Desorientada, sem rumo.
As lágrimas descem. A urgência se encabula na incapacidade de fazer mais, mas a vontade entre festeira, e desanimada, oscila, arrasta o fragmento. Brinca. Beth M.B. Mattos – outubro de 2023 – Porto Alegre
Agarro o tempo da coragem: energia, impulso de conseguir. Conseguir exatamente o quê? Viver.
Viver tem um querer escondido. Coragem para dizer não. Acomodar, equilibrar as frutas, trazer o verde com os pincéis carregados de marrom, e não sendo bem lavados, relaxadamente mergulhados no ponte, veio o amarelo lambuzado! Acerto o quadro, o desenho, as cores me confundem… A vida tem estes arrepios incertos! Noites mal dormidas e um punhado de energia… Elizabeth M. B. Mattos – outubro de 2023 – Porto Alegre assobiando
As frutas, o presente. Todo o abraço de ser dois, de festejar o encontro de ser dois. Do amor não posso desistir. Então, eu te espero todos os dias, eu espero invadida por doçura meu querido. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2023 – Porto Alegre
“Eu vi um santo que talvez estivesse parado sobre um poço. Para dizer a verdade, talvez não tenha visto nada, mas senti algo que teria de expressar assim. A água corria, e o que o santo fazia também vinha jorrando sobre a beirada, como se fosse um tanque mansamente transbordando para todos os lados. Acho que deveríamos ser assim, pois então sempre agiríamos direito, pois seria completamente indiferente o que fazemos.” (p.529) Robert Musil O Homem Sem Qualidades Editora Nova Fronteira
Talvez, uma incerteza inquieta e desanimadora. Dizer não significa encontrar o poço. Esta coisa de jorrar, de água a escorrer, pode ser desperdício. Abundância, certamente, indiferença. Transbordar enquanto se respira. Chorar por não conseguir dizer. E aperta por dentro. Não dizer pode ser omitir, deixar passar o abraço, o beijo, a certeza. Não te escutar quando queres mesmo receber, acertar. Num instante o vento, ou a trovoada querendo dizer… O bom são palavras boas, também desafio de ser reflexo do emaranhado, o nosso. Pedir perdão não basta. É preciso entender a loucura de não saber, não poder ajudar. Esfarelado momento. O que de fato eu posso fazer? Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2023 – Porto Alegre