salva e atropela

A memória salva, depois atropela com as surpresas… Observações, sensações esmiúçam o vai e vem da narrativa, justificam. Por um minuto justificam, o que parecia injusto se aperta e se confirma. Sim, algumas pessoas transbordam… Eu compreendo o sentimento. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2023 – Torres

Renato Rosa – 2012

intensidade e abismo

velada, escondida, ou contada,

a estória inventada é história verdadeira

estranhamento intenso de abismo,

pode ser o sentimento

“Mesmo num dia de tempo bom, ‘o tempo’ humano está ruim – murmurou Shingo, sem propósito, desistindo de olhar o céu recortado pela janela do seu gabinete. E começou a trabalhar.” (p.231) Yasunari Kawabata- O SOM DA MONTANHA

sem enfrentamento, sem voz, no estranhamento, o ruído se faz assustador -,

não tem definição o cansaço intenso, nem a desorientação do mando… a pessoa escorrega. Elizabeth M.B. Mattos- novembro de 2023 – Torres

separar / perder / mergulhar

A pessoa se separa de um companheiro, ou de uma amiga, daquele ser único, especial: o perfeito amor dos amores compreendidos. O melhor. Assim mesmo eu me separei, assim mesmo… Inúmeros motivos externos, internos. Turbulências, perdões ou confissões. Eu me separei, chorei, chorei, chorei tristeza de perda, tristeza de fracasso, de solidão compreendida. A gente se separa de um jeito tão ruim, tão faca enfiada… E os anos se multiplicam em vida, vive-se: outros sorrisos, outras graças com desgraças, sempre, mas tão outras e outras que já a transformação daquele barro, daquele lambuzado se faz história. Pois é, acordei para contar depressa, antes de dormir outra vez, a riqueza deste tempo, tempo de recompor, de voltar para ser a gente mesmo, é o precioso. Passa susto, passa passa passa e a pessoa começa a catar pedrinhas e brilhantes, florezinhas e surpresas, e o vazio fica precioso, colorido.

Não tenhas medo de te separar, e separando recomeçar, a alma, estes sentimentos de dentro, pulam e se refestelam e recomeçam a bombar energia, vitalidade, sonhos e novas vontades. Multiplica-se o que parecia marasmo de poça ou lago em mar aberto, ou praia rica de ondas, ondas salgadas quentes e geladas, perfeitas. Elizabeth Menna Barreto Mattos – novembro de 2023 – Torres – entre sono, bocejo, acordar e outro sono –

muito frio, a respiração fica branca

Faz frio, a respiração fica branca. Chove muito e tanto: os olhos cheio de lágrimas não me deixam ver. A boca soluça, tanto e muito! E aqueles passarinhos miúdos, em bando sobem na mesa e assumem o pote de arroz com alegria gulosa e voam e voltam. Alegria perfeita neste almoço corrido de meio de semana, o perfeito. Perfeita. Em casa a água racionada, a luz em tempo de conserto, o silêncio concentrado. Sem celular, sem vozes. A cantoria da chuva me fez dormir de tarde com aquela paz certa do dia perfeito. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2023 – Torres

(bom teres escrito, bom estares envolvido com as plantas e a terra, bom saber que a vida se arrasta mansa e coerente, a doçura chegou)

intransponível

tenho horários internos desencontrados, ou… exigentes. o sono, o cansaço suga, será o horário da infância, somado ao da juventude?! interno. vontade de descobrir..

o certo é que o solar, o real não me domina… vou deixando a órbita e no rascunho, no risco mal traçado, defino o sono, a vontade de dormir… vou descobrir como pode ser diferente, e por tempos indeterminados, e não consigo dominar agora. desmotivação? Elizabeth M. B. Mattos – novembro de 2023 – Torres – um pouco fora do lugar, pois é!

genial

” – Ultimamente, minha cabeça não funciona com clareza, tanto que, ao olhar a flor do girassol, acabo pensando na minha cabeça. Será que minha mente é bem organizada como aquela flor? Havia pouco, no trem, vinha pensando se não poderia mandar somente a cabeça para a lavanderia ou para o conserto. Cortar o pescoço seria um método rude demais, queria apenas removê-la do tronco e entregar ao hospital Universitário, como se faz com as roupas na lavanderia. Enquanto o hospital processa a lavagem do cérebro, ou conserta as partes estragadas, o corpo descansa em casa, dormindo profundamente por três dias, uma semana, o tempo que for necessário, sem se revirar no leito nem ter sonhos.” (p.39) Yasunari Kawabata O SOM DA MONTANHA

olhos azuis

Os olhos azuis não eram teus, o gosto do mimo não tinha nada com aquela situação de emergência. Tua corrida, teu zelo, não explica a morte, porque ele, o pintor, nem era teu amigo. A comédia da substituição… Farsa da notícia. A narrativa que se explica, ou nunca se esclarece. Os dados não são precisos porque a vida é mesmo assim, imprecisa e inconclusa. E tinhas uma linha, um determinado e preciso foco: serei / sendo herói. E a história, a nossa, alinhavamos… Com certeza, somos os heróis a farejar o possível do heroísmo, e chegamos ao impossível. Quanto equívoco se torna a verdade: foi amor, foi paixão, foi despedida, foi espera, e foi tão pouco…

O equívoco foi meu, a raiva é minha, a estória se tornou história, a minha, eu não sabia nada de nada. Rastejei na tua luz, vês?! Tinhas luz própria sim. Não precisavas da notícia, eras a notícia. Ah! Como esta memória me persegue! Por isso foste a Torres e levantaste minha vontade a uma potência de desafio. E escreveste minha estória de princesa -, estavas a fazer sessenta anos e eu… Treze anos, ou doze anos mais nova, menina brincando de bonecas na minha fantasia de sobreviver. Não. Não éramos adolescentes. O barulho do momento, meu fraquejar, ou fortaleza, sei lá! Pensei ser a Cinderela calçando o sapato de cristal definitivo. Tu eras / foste/ és o meu sapato de cristal. Desculpa, eras o meu Príncipe. E eu reclamo o direito de ser Princesa até hoje. Aonde estás? Elizabeth M. B. Mattos – novembro de 2023 – Torres

Nota no livro de Yasunari Kawabata O Som da Montanha:

Comemoração dos sessenta anos de vida, baseada na astrologia chinesa. O cruzamento do ciclo de doze anos do horóscopo com o ciclo de dez valores numéricos resulta em sessenta diferentes combinações. Considerando-se que completar sessenta anos representa o renascimento da pessoa.

segredo da alma

Para contar segredos da alma, para dizer daqueles deslizes e dos pecados é preciso inventar a história. Catar palavras que irão descrever, na narrativa, o vigor do pecado. O sentimento, a generosidade, aquela altivez necessária para continuar, apesar de… (como escreve Lispector) apesar de, continuo viva. Explicar dizer mencionar arde por fora e sufoca. Sinto o enfado, o esgotamento, o peso e a vontade despencando… Continuo. Se eu confessar que os livros pesam dentro do corpo, não exagero. Entendo o prazer do mar, da areia, do teu sorriso, do teu mergulho. Olhos arregalados para a vida. Teu abraço, tua disposição, teus ouvidos atentos, e o beijo. Afinal, existires no teu olhar azul, na estupefação do amor, resume a minha vida. Eu te amo. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2023 – Torres – obrigada

ainda são duas horas da tarde, e eu sigo te amando tanto, e tanto

Meu querido: o norte, o sul, o leste, e também, o oeste norteiam. Não sei o que te escrever, nem falar enquanto sinto. Eu sinto. Deixa eu ler em voz alta, deixa apoiar a cabeça no teu travesseiro, deixa eu te contar, sublinhar:

Não sei de melhor treino para um escritor do que passar alguns anos na profissão médica. Creio que pode aprender muito da natureza humana no escritório de um advogado; mas ali em geral temos de lidar com homens em pleno domínio de si mesmos. Mentem tanto como mentem para o médico, mas mentem com mais firmeza, e pode ser que para o advogado não seja tão necessário conhecer a verdade. Além disso, os interesses com que lida o advogado são geralmente de ordem material. Ele vê a natureza humana de um ponto de vista especializado. Mas o médico, principalmente o médico de hospital, a vê em toda a sua nudez. As reticências podem geralmente ser desmascaradas; geralmente não há nenhuma. Pois na maioria das vezes o medo destrói qualquer defesa; até mesmo a vaidade é solapada por ele. Grande parte das pessoas têm um furioso desejo de falar de si mesmas, e apenas são detidas pela pouca vontade dos outros em escutá-las. A reserva é uma qualidade artificial que se desenvolve em nós como resultado de inumeráveis contras. O médico é discreto. Seu ofício é escutar, e nenhum pormenor pode ser demasiado íntimo para os seus ouvidos.’ (p.71) Confissões W. Somerset Maughan

Aqui, meu querido, Somerset Maugham resume a nossa conversa penosa, mas nossa. Explica o que tu e eu já sabemos…Avança. Mas chego ao que não temos coragem de dizer, então, uso a citação, posto que me escutas, e me beijas enquanto leio.

‘Não gosto de passar muito tempo com as pessoas aborrecidas. Nem com as interessantes. Acho cansativo o convívio social. A maioria das pessoas, creio eu, ao mesmo se distraem e descansam com uma conversação; para mim isso foi sempre um esforço. Quando era jovem e gaguejava muito, cansava-me muito falar por muito tempo, e, mesmo agora que relativamente consegui curar-me, é um sacrifício. É um alívio para mim quando posso ficar sozinho e pegar um livro para ler.’ (p.72)

Estou a rir enquanto te escrevo. Lembro de um momento que reuni uma meia dúzia de livros que importavam (ao menos para mim) com a nítida ideia de passá-los para tuas mãos, ou para reler juntos, como agora, fatiados. E tu olhaste, com doçura, mas sério e justo e já afirmaste: não lerei nada disso, esquece, e foi um beijo de amor… Nunca chegaremos a dizer tudo, nunca faremos metade, ou acerto de qualquer tempo… Complicado trançados de amor! Maiores e definitivos… Histórias que eu te conto sapateado na alegria de ser apenas eu… Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2023 – Torres. Não te preocupa, nunca baterei na tua porta, nem mandarei flores…

dia anterior

No dia anterior, um vento úmido e extemporâneo havia rondado a vela das embarcações e, ao entardecer, o céu se cobrira de estranhas cores. Vagalhões galoparam a superfície do mar, um ronco soturno percorreu a praia, batatas d’água e tatuzinhos deram-se pressa em alcançar terras altas. Tangida por fortes ventos, a chuva começou a desabar no meio da noite, e sons que lembravam flautas e gritos ecoaram no céu e no mar.” (p.60) Yukio Mishima Mar Inquieto

Ecos e tormentos. Um ponto na dimensão de mancha. Incerteza certa (jogo de palavras) a dançar violência nas obviedades da reflexão, sempre oscilantes. Este mar de Mishima atravessa as calçadas e as ruas. E a lagoa se transforma em mar. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2023 – Torres