nada original

não somos originais – salvo quando vou até até a beira do mar e o mar está verde água claro limpo e… este meu amor mar

depois é o mesmo, fazer a comida, limpar / lavar a louça, descascar as frutas, levar o sol para os lençóis, abrir todas as janelas e receber o vento.

“Quando papai traz para casa o salário da primeira semana, mamãe fica contente porque pode pagar o italiano bondoso da mercearia e pode levantar a cabeça com orgulho, porque não tem nada pior no mundo do que estar em débito com alguém. Limpa a cozinha lava as canecas e os pratos, tira os farelos de pão e comida de cima da mesa, lava a caixa de isopor e encomenda um bloco de gelo fresco de outro italiano […] Ferve água no fogão e passa o dia inteiro lavando nossas camisas e meias, fraldas dos gêmeos, nossos dois lençóis, nossas três toalhas, numa bacia enorme. pendura tudo no varal atrás do prédio de apartamentos e a gente pode ficar olhando a roupa dançarem no vento e sol. Ela diz que não quer que os vizinhos fiquem sabendo que roupa se tem para lavar, mas não tem nada mais gostoso do que o aroma de roupas secas ao sol.

Quando o papai traz para casa o salário da primeira numa sexta-feira à noite, sabemos que o fim de semana será maravilhoso. No sábado à noite, mamãe ferve a água no fogão e nos dá banho numa bacia grande e papai nos seca.” (p.21) Frank MacCourt AS CINZAS DE ÂNGELA Memória

E nossas memórias encaixadas nas páginas de um livro se sacodem alegres, não serão esquecidas e estão cheias de mãos que acariciam, lavam, arrumam, e vejo o fogo nas lareiras, as flores nos vasos, e sinto o cheiro do cigarro… E sinto os perfumes da casa. E a casa tem uma majestade que me acompanha… Elizabeth M.B. Mattos – março de 2024 – Torres

escorregadio

Contar / dizer, de alguma forma, a verdade daquele momento, daquele momento que foi o teu passado / resgatar, parece impossível. Resvala, escorrega, derrapa nas inconsistências… Toco no proibido, transformo em árvores natalina o possível. Nada é verdade. Estou a descascar uma possibilidade possível: infelicidade coroada. Quando, quando eu posso me nomear feliz? Se entendo de liberdade, de ir e vir, sem comandos, sem esquerda ou direta, ou ladeira, sem lago nem piscina, sem aperto e abraço e carícia esquisita… Sim, lá está um paraíso vislumbrado, mas… inominável, tudo seria galopar aqui e ali.

Urbana, reclusa, e alegre. As esquisitices empacotei na alegria das bonecas de papel, nas pedras polidas coloridas ( os azulejos das reformas ) eram transformados em reis e rainhas. Aquela flor “boca de leão” brincava. Fazê-la falar, reviver depois de colhida (coitada!), ficava nas caixas de sapato com janelas e portas… mansões. Os gramados eram as florestas, as formigas, os monstros, dia com inverno e verão, ventanias imaginadas, e chuva de mangueira. Assim as memórias se enfeiram na narrativa da criança, do jovem, do jovem adulto, e do velho. A realidade ela mesma é impossível, está sempre paramentada. O gosto do teu abraço se desfaz na possibilidade daquele abraço perfeito. Como poderemos ajustar? Criar um departamento de vigilância. Alguém julgará a verdade da mentira. Haverá punição. Vamos recolher aquele livro, retirar o vídeo da televisão, calar o jornalista, multar a emissora.

O tempo que morei na fazenda, parcos cinco ou seis anos, registram o melhor período das crianças e dos cavalos, das ovelhas, dos gansos e dos cães. Com luz elétrica e telefonia, sem luz, sem telefone. Com açudes abastecendo, com água faltando e sol queimando a plantação. Segui acordando na madrugada, enfileirei as crianças e as escolas estaduais e particulares (eram tantos!) recebiam a tropa… ah! Saudosa Santa Cruz do Sul que agora (estranhamente) proíbe leituras / recolhe livros distribuídos, vai pro palco num arremedo de censura, uauuuuu! Não pode ser verdade que eu não posso andar sem calcinhas por aí, ou que preciso de maiô para tomar banho na minha piscina particular?Ufa! estou cansada! Até de dizer a verdade! Elizabeth M. B. Mattos- março de 2024 – Torres

chuva molhando o verão

Chuva chuva e chuva: novidade espalhada. Haja coragem de se mostrar o /por inteiro: lacunas da memória… Logo teremos eleições, enfeitadas e desgastadas: surpresas não particulares ao Brasil, estamos todos ajoelhados, rezamos, nem sei bem se temos fé…Talvez eu possa voltar a ter fé, tão inclinada eu fui a certezas! Íamos a missa e sabíamos latim. Regra importante: trabalhar. Resolvi abrir um curso / orientação e debates = textos. O que serão estes ditos textos? O pensamento e a conversa por escrito. Elizabeth M. B. Mattos – março de 2024 – Torres

azedo esforço

Noite de doçura especial: hora de caminhar e atravessar as calçadas, agora silenciosas e frescas: mundo ideal. A beleza da lagoa, as garças se acomodam e a passarinhada dorme. Céu estrelado embora tivessem ameaçado com temporal, e, eu, assustada, fechei escotilhas, limpei / lavei o barco. Recolhi as velas, abasteci, e esperei a chuva que traria o calorão silencioso… Noite verão! Amanhã conto detalhes do asfalto, dos novos gerânios e das roupas nas cordas da lavanderia, gavetas perfumadas. E a Páscoa caminhado nas pontas dos pés… Elizabeth M. B. Mattos – março de 2024 – Torres (dormir dormir é preciso)

Perdi o gosto da memória, da saudade… Um nada no abafado verão. urgência de ser agora, mas, o peso das passadas, pequenas caminhadas, deste hoje verão, sem mar… um engasgo. Tua visão da Vitor Hugo se mistura com a ideia de envelhecer, ainda estão por lá os jacarandás? Ou serão todos engolidos, aos poucos, pequenas mordidas, sem mastigar… Nem penso mais, um buraco, um nada. A espera de um estrondoso silêncio apertado. Um beijo. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2024. Torres – este mês irei a Porto Alegre, atravessarei meu cansaço crônico e irei ver /visitar a rua Vitor Hugo, como tu… Eu, desavisada, nem me surpreenderei das mudanças… oxalá possa chorar de tanta saudade e me veja sentada no muro esperando o tempo passar.

descabelado

Descabelado, sem cabelo ou… Sei lá como explicar. Acompanho o que anda, o passo das dobradinhas, ou será que correm? Ou se perderam nos círculos? Estão telhando os projetos? Colocando telhas… Amargo ou doce parece tão surpreendente!

E o silêncio amigo? O chá, o café, o calor que aperta satisfeito? Desanimo, nem digo nada… Eu quero, mas não me mexo. Para não mencionar a depressão vou empilhando os livros, compro bananas, e faço listas. Troco os móveis de lugar. Ah! Minha amiga Magda sempre encontra solução em se tratando de casa, arquiteta, pronta sabe num lance rápido que a cadeira com orelhas ficará melhor naquele lado da lareira e o tapete não deve sair de onde está… A mesa nova, um excesso, mas as cadeiras se apertam bem e quando estivermos juntos, estaremos em roda festiva. Comprei flores. Outras que não sejam as do campo… Outras. E as folhagens, protegidas se refestelam no verão…O verão das tuas confissões e dos teus beijos! A menina escabelada, sou eu a te amar. Tão bom que abraças! Elizabeth M. B. Mattos – março de 2024 – Torres

a m o r

amor é um tropeço: o amor é engasgo, um corte, é completo e tão intenso na finitude – acho , penso, imagino que nunca soube definir, mas se define na alegria ligeira e ativa que nos faz ferver: uma fogueira cheia de fagulhas e carvão e luz, luz…, quanto tudo é tão obscuro, escuro e impossível. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2024 – Torres quando o verão se arruma para terminar… eu te amo

P.S. É a Ales Jon Fosse – livro extremamente perturbador

o outro ou sou eu, eu?

…,talvez a imobilidade, o tal cenário que não muda, ou a expectativa. Sei não. Sei sim. O que eu digo, e, ou, penso importa só pra mim mesma. Vou falando / dizendo, explicando, pensando e escrevendo… Coisa de vício / de entrar no buraco e ficar. A tal famosa caverna, tão comprometida caverna! Melhor não é citar, vamos pensar noutra coisa… Não o que Rousseau fez, mas bah! Ter um castelo, ter um jardim, floresta e distância com mordomia?!… É bom! Nascer do lado certo e aquecer o pensamento, ou melhor, dedicar-se a cabeça / esta coisa que temos em cima do corpo, que… Sim, a cabeça. Que deve ter cabelos e certa celeridade… Enfim! Pensar. E a tal da leitura, não por obrigação. Quem sabe pra alienar mesmo, e não dizer o óbvio. O óbvio atrapalha os outros… Conversar sobre batatas e cenouras e cozidos, ou contar como é a cama de noite, não. Cuidado com o óbvio. Aí você se dedica a comentar / coisa modesta / poderia ser picotar os livros lidos. Enfeitar a leitura com beterraba e alface picada, cebolas… Dar aquela ajeitada para ver se o outro / o amigo / o curioso / ou até o desavisado leia. Tá. Pescou o peixe, ficou com pena, jogou de volta ao mar… Bem, tá tudo onde deveria mesmo estar, em lugar nenhum…

E súbito chega o interesse e a conversa começa: ouviste a notícia?…, que horror o que aconteceu com o rapaz q foi entregar a comida. A lei?! Passa ou não passa. Alguém escandalizou em Portugal numa ênfase desnecessária. Dizer o que pensa? Não. Dizer o que é possível dizer… Parece que a conversa vai ser interessante. Eu me animo. E aí vem perguntas. Perguntas estranhas: tu tens um cachorro? compraste o livro X, lesto o Y? vendeste aquele quadro? viste o fulano hoje? ontem? O que tens comido? Macarrão?… Elizabeth M. B. Mattos – março de 2024 – Torres

Esqueci todas as respostas, ou quem telefonou esqueceu que sou eu do outra lado do fio… Ah! Memória é coisa esquisita, assustadora… Memória? Ou o completo desinteresse das pessoas umas pelas outras?

a castidade do medo

Saí há pouco no pátio, molhei as plantas. Depois fui tomar café debruçado no portão da rua. Ter um pôr do sol todo rosa, com uma lua crescente (em libra). Tua carta me fez muito bem. E muito mal. Compreendo tudo o que você diz, são coisas que me digo, também. Mas há uma diferença entre você saber intelectualmente da inutilidade das procuras, da insaciabilidade – vixe, que palavra! – do corpo e conseguir passar isso para seu comportamento – tornar ato o que é pensamento abstrato. Os caminhos são individuais / intransferíveis. Meu problema maior é a minha própria moral – ou a que adquiri através da educação, da sociedade, não importa. Meu problema é que tenho dentro de mim, muito claros, os conceitos de “moral” e “imoral”. E que cada “imoralidade” que cometo me deixa um saldo enorme de culpa, de amargura, de sofrimento. Não encontrei Deus ainda, como você. Ele não veio até mim – e digo isso lembrando de um provérbio zen: “Quando o discípulo está preparado o Mestre vem a ele.” Ainda não veio. Ainda não estou preparado. Mas estou mais tranquilo. E percebendo coisas: a memória da gente é safada: elimina o amargo, a peneira só deixa passar o doce. Então eu tinha esquecido que esta cidade te cobra preços altos. Ela é uma mulher ( ou um homem) belíssima (o) que se oferece, tentador, como se amasse, te envolve, te seduz – e na hora em que você não suporta mais de tesão e faria qualquer negócio, ela(e) te diz o preço. Que é muito alto. Quanto a mim a aconteceram – algumas tragédias do coração. Diálogos ridículos, tipo és um mito para mim e eu dizendo […] Caio Fernando Abreu – sábado, 2 de março de 1996

ah! as cartas! sempre trazem uma verdade de pimenta, ou açucarada do momento, um abrir e um fechar, tudo ao mesmo tempo. Houve o tempo manuscrito, apressado, e a carta escorregava numa emoção qualquer querendo uma resposta, um beijo, um aconchego. Nem era carta, mas um desejo de retorno. Uma pressa para chegar no outro que estava mesmo do outro lado, na outra cidade, no outro país… ah! Se era longe a gente cuidava um pouco mais a carta, mas aquela luz iluminava /ilumina um desejo forte nosso… as cartas em comprometem porque revelam um minuto, nunca tudo. o beijo, o abraço, o desejo está, certamente, picotado. Eu sou apaixonada por este esticado elétrico da fala /comunicação / dizer pelas cartas. as histórias se definem nas entrelinhas numa emoção q não está explícita mas tão evidente! eu guardei esta matéria da Zero Hora sobreo Caio F.

a sequencia vai ser censurada, então, não escrevi / transcrevi. censura é modernidade com direito a punição das bravas…, então, confesso, tenho/sinto medo. Mas sempre deixo um rastro…Quem se interessar tá lá ZERO HORA, sábado, 2 de março de 1996 – eu, encolho o meu eu, e… Elizabeth M.B. Mattos – março de 2024 – Torres

” Era real. E feio. Alguma coisa não estava mais lá. A alma? Pode ser.”