As tintas voltamSe transforma o ateliê da imaginação. Papel, cartas. Recorte, traço, datas, vontade. Vontade  lavada. Angústia, brincadeira solta, entregue nas tuas mãos. No sonho sonhado volta o amigo. Risco. Perto. Fazendo e relendo.

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“Dizem os poetas que o pensamento anula as distâncias. Podemos ver com os olhos da alma a imagem que evocamos, mas – este é o tormento – não podemos tocá-la.Tu estás ao meu lado, assiste-me pintar; eu acompanho teus passos. Tu apareces no meu vídeo, eu no teu. Somos, querida amiga, dois prisioneiros que vivem em celas separadas, alimentando-se um da imagem do outro. Estou acuado vivendo um momento de grande tensão. O diabólico plano do Führer das Alagoas atingiu nosso naviozinho. Agora estamos procurando juntar os destroços para construirmos uma jangada, que errará à mercê dos fétidos ventos de D. Zélia. É irônico e trágico ver a ditadura entrar a passo de ganso pela porta da democracia. Positivamente, o Brasil é um país bandalho. Querida, preocupo-me com os teus desacertos e com tuas mágoas, que são profundas. Gostaria de analisar e discutir estas coisas, pessoalmente. Tu sabes, que te quero bem.   Beth, não descures do teu aspecto físico, pois o que está bom reflete dentro, na alma. Tu és uma mulher bonita. Para não engordar basta seguir um regime. Sei que não se devem misturar hidratos de carbonos com proteínas. Pensa nisso amiga. Junto vai um rabisco, minha imagem por dentro, agora Escrevo-te, às pressas, para que não fiques sem o meu carinho. Beth, o coração guarda segredos. Eu quero te ver.  Com muito afeto o Iberê.” 

Tudo de volta, misturado, aqui. Tenho que fazer tudo outra vez, tu também. Acertar, corrigir, refazer. Reler. Pontuar. Tudo outra vez. As tintas voltam deslocadas. Sinto tua falta, sem entender muito tua ausência agora tão definitiva. Não! Por que o delírio? Estás tão perto! Da conversa. Das tintas. Dos pincéis, em francês, em italiano, em português. No Rio de Janeiro. Em Nonoai, Porto Alegre. Penso no que perdi, e no que não aconteceu. Nada confiável, muito menos a memória. Tua lembrança conto e aplaudo. Volto a cada carta. Silêncio. Dizer, ouvir, desenhar, colorir as palavras. Apagar tudo outra vez. Arriscar. Não há amor, não há ódio, não há amigos, não há inimigos, não há fé, não há paixão, não há bem, não há maldade. Tão poucas vezes juntos! Ao te escrever volto às cartas que não chegaram. Extraviadas, violadas… Por tanto tempo estivemos perto estando separados. Ao te escrever, meu desespero derrama aflições. Tu me acalentaste com tuas preocupações. Eu me apoiei, egoisticamente, no teu brilho. Minhas cartas, tantas vezes ilegíveis, te faziam voltar pra mim… Uma resposta, um desenho. A notícia recortada. Envaidecida descuidei-me delas, tuas cartas perdidas… Elizabeth M. B. Mattos – março – 2014 – Torres

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