
Porto Alegre depois do verão, o domingo. A chuva pesada devolve o inverno.

Porto Alegre, 4 de agosto de 2014.
Hélio, meu amigo querido:
Surpresa ao encontrar suas cartas, bem guardadas, intactas. Procuro desenhos. Lembro bem que durante as aulas costumava rabiscar. Saudade de todos nós! Em algum lugar desenhos, noutro fotos, a memória a se mover dançante.
Desta angustia que menciona sofro ainda: ausências. Lacunas! Estar junto, dividir, olhar, conviver, e chego perto da Olga, Suzy, José Luiz, Sofia, Roberto, Laila. Notícias vagas de cada um. Você, você, meu amigo… Não estava na formatura. Desapareceu o menino no sonho. Poetando. Não dos meus, porque penso você, indago, procuro. O que a vida revirada nos fez? Lembra da professora Beth que morava em Ipanema? Esteve em Torres. Lembra do Ciro? Casaram. E o Roberto? Aquelas férias torrenses me aquietavam. Escrevia cartas. Lia bastante. Pensava em vocês. Um desterro anual. E a saudade da rua Viúva Lacerda, de Ipanema apertava. Eu me aninhava no sono.
Aquele morar alimentava devaneios: livros, quadros, e cada objeto motivo de reviravoltas pela infância, por Copacabana, Leblon, amores. Cresci neste Rio de Janeiro desde meus 18 anos…Não uma viagem, mas permanência. Do Beco das Garrafas direto pro Largo Humaitá, cenário. De passagem Torres, Porto Alegre. Exercito o tu, abandono temporariamente o você…
Sigo escrevendo, debatendo, agitada, inquieta. Escondida. Calada. Não vais acreditar que os cabelos estão todos brancos. E já tenho netos. O Rio de Janeiro me acolhe, Porto Alegre encanta, mas Torres ressurgiu definitiva. Saudade de você!
“Rio, 17 de janeiro de 1977
Querida Beth,
Somente hoje ao retornar de minhas férias – tomei em minhas mãos tua cartinha tão querida. Estranha é a minha natureza! Algum tempo longe de ti, e de nossos outros colegas, trouxe-me uma angústia fina e penetrante no peito. Chego, à esta altura de minha vida, à conclusão de que estudar, adquirir cultura, não seria tão importante, mas, sim, conviver contigo, com nossos colegas, nossos sonhos, nossas perplexidades.
Como têm sido teus dias? Tens lido muito? Já conseguiste empregada? Tens rido bastante? Dormido bem? Sentes saudade do Rio? Do teu apartamento cheio de coisas tuas? Das árvores da tua rua? Ou o encanto de Torres te fez esquecer o que aqui deixaste? Eu não te esqueço, eu não te esqueço, eu não te esqueço…
Como vão teus pais? Eu gosto muito deles. Da doçura de teu pai e da inconvincente dureza da tua mãe.
Sabes, eu pensei que nas férias fosse escrever muito, mas nada pude fazer. Parece que só tenho alguma inspiração quando estou tenso, cansado, esgotado, indormido. Se estou bem, esvazio-me. Acho que durante muito tempo não voltarei a gozar férias: não quero ser estéril. Pelo menos não mais do que já sou. Viva a canseira! A tensão! A perplexidade!
Ai vai um poema:
Porque não se conformava,
Sonhava em vez de acordar,
Morria, enquanto vivia,
E morreu enquanto sonhava.
Num longo tempo viveu,
Embora tão curto, é verdade.
E deu vida à própria morte
Antes temida e presente.
E, agora, vencida e distante,
A morte, qualquer morte,
Era pouco, era nada,
Pois a vida foi tudo,
Era tudo…
E morreu, enquanto sonhava
Passando-se inteiro ao sonho,
Resgatado para sempre,
Vivendo no sonho sonhado.
Até logo, Elizabeth. É bom conhecer você. Bom gostar de você. Salve o Rio Grande do Sul (o “l” deve ser pronunciado à gaúcha).
PS: O número do prédio em que trabalho é 115.
Hélio “