Rotina

Não suporto a rotina arrastada do ócio, nem o vagar dos que se querem importantes, sérios, e assim ocupados, imóveis.  Não lavar a louça, a roupa, os vidros. Varrer o chão, e cozinhar a própria comida. Não podem. Passear os cães, beijar crianças. Não podem. Gostam de se amontoar sérios nos cafés das esquinas.

Prefiro molhar as plantas, varrer calçadas, escutar este silêncio do mar, da montanha, das avenidas. Sol, crepúsculo, pedra quente. E frio gelado. Aqui neste mundo sem urgências, nem passado, nem futuro, o minuto.

Cortem meus pés, fico imóvel… Amarem as mãos, enxergo. Arranquem os olhos. Adormeço

Estranhezas

Pesadelo, sonho. Fuga. Procura de refúgio no vazio, no descompromisso. O não pertencer a nenhum grupo. Um vácuo. Sem vaidade. O anonimato temerário. Sem caminho, perigosamente solitário. Sem apoio. Uma inteireza. Sem continuidade, plenitude. A consciência do grupo. Falta de ar, submeter-se…Submissão, angustia do pertencente. Lado certo, o justo? Ou equívoco. Falta de ar. Sufocar, e seguir o mesmo caminho. O diário. A rotina. Uma sina sem escolha. Seguir o rebanho. Programar. Estabilizar exige tanto!

Sem, sem, cem vezes o eu, nenhuma vez nós. O grupo corrói o sentimento de inteireza, subverte a vontade. Exige. Alerta. Os animais ultrapassam a barreira. Diferenças evidentes, outro bando. Dependência sem competição.

Estranho sono. Fantasmas, cheiros, vultos. E a morte ao final. Envelhecer tem este componente de alerta. O inimigo está na outra calçada. Libertação? Recomeço? Todos os pecados se amontoam na consciência, pesam. Trava. E tudo inicia na posse. No meio do copo com água, o vinho, depois a sede. Estranhezas…

 

“Compreendi então que pouquíssimos homens se realizam antes de morrer, e aprendi a julgar com mais piedade seus trabalhos interrompidos. Essa obsessão de uma vida frustrada imobilizava meu pensamento num ponto fixo como abcesso. Dava-se com a minha ânsia do poder o mesmo que se dá com o amor, que impede o amante de comer,  dormir, e até mesmo amar enquanto certos ritos não se cumprem.” (p.94)
Memórias de Adriano  de Marguerite Yourcenar: 3 Edição. Editora Nova Fronteira. Tradução de  Martha Calderaro

SOS Torres

“O público, hoje em dia, já não perdoa o autor, depois de pintar a ação, não se manifeste a favor ou contra; mas ainda, em pleno desenrolar do drama, quer que ele tome partido, que se pronuncie francamente por Alceste ou por Filinto, por Hamlet ou por Ofélia, por Fausto ou por Margarida, por Adão ou por Jeová. Não quero afirmar, é claro, que a neutralidade (ia dizer: `indecisão`) seja a marca de um grande espírito; mas creio que a muitos dos grandes espíritos repugnou bastante…concluir – e que o fato de expor bem um problema não pressupõe que ele já esteja resolvido.”

André Gide – o Imoralista

Matreiro, contumaz, medroso

Timorato menino, nascido no interior do Rio Grande do Sul, região alemã, tudesco. Gentil, magro, inquieto. Dos estudos um caminho acompanhado de perto por mãe contumaz. Para o filho sonha e trabalha duro: menino de interior, o homem da capital. O pai, carrancudo, amargo, não se envolve com o sonho da mulher. Observa na distância, olhos lavados de azul. Casa modesta e limpa.  Engalanada nas festas de aniversário. Nestas ocasiões, o requinte de carnes, gastos extras. Vida de parcimônias. A economia de detalhes os transforma, a todos, em pessoas acomodadas, austeras. Preocupação, o menino Francisco. Corpo franzino, testa larga, e vontade de mudar com o mundo. Joelhos vermelhos nos calças curtas, camisa aberta, e braços suados. Já no quintal administra a comunidade cooperativa: distribuir frutas aos amigos. Distribuir jornais. Coletar papel, latas, e vender pastéis. Ríspido, seco. Resposta, arde como pimenta quente. Opina. Já o olhar, ah! o olhar é derramado nas meninas. Gosta de descrevê-las em poemas: tranças, bochechas rosadas, saias penduradas em pernas roliças. Matreiro. Escola fácil. O perigo, o curioso está na capital.

O perigo é respirar, pensar. Somos todos meninos do interior, perigosamente vivos.

Amoreiras

Frutíferas da lagoa: pitangueiras amoreiras ameixeiras e todas as que não conheço estão a espreguiçar folhas verdes. Amoras ruborizadas apontam. E as azuis  acordam … Hoje aquele cheiro de mar dando voltas na Lagoa do Violão! O entardecer veste a lua… Doçuras de Torres. Respirar! Elizabeth M.B. Mattos – 2014 em Torres

Hoje agora quero de volta esta sensação …, por que não posso voltar?

Conexão

O que eu digo penso, importa.

Afirmo explico sinto pondero, e me faço ouvir…

Esqueço do temporal das trovoadas, e  dos raios.

Aquela escuridão!

É o outro … O outro que não consigo escutar. Não ouço.

África. Não Torres, não a lagoa, nem a serra. África!

A bofetada

 “Minha querida Nora,” uma carta.  Assim começa a narrativa, A Coisa. Surpresa! Inquietude! Implacável. Primeiro, citações, Baudelaire… Longas citações, bem ao gosto. Depois ousadia libidinosa. E o conto agarra o leitor. Imediatamente, estupefata. Descrições, minúcias. Respirei. Pois é. Enquanto escrevo, enquanto leio, venço barreiras. Violência. Incomunicabilidade. Subserviência. A Coisa. É preciso avançar. Ultrapassar, insistir. Detalhes!  Difícil. Escrever. Difícil. Da leitura de Herman Hesse, O menino Prodígio, para Alberto Morávia: bofetada. A brutalidade de uma bofetada.

Bem comportada

– Ele nunca me amou. Casou comigo porque era moça bem comportada. Fui bem comportada a vida inteira!
Não disse nada. Ela continuou:
– Estou a me despedir… Assim, bem comportada.

Amanhã desperto pra ser amada! Como flor, grama, esquilo, ou menina…

E, certamente, não serei mesmo, bem comportada!  Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2014 – Torres

Hélio – cartas – Ipanema

FOTOS BETH 019391985_300764286611377_1474868942_n (1)Porto Alegre depois do verão, o domingo. A chuva pesada devolve o inverno.

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Porto Alegre, 4 de agosto de 2014.

Hélio, meu amigo querido:

Surpresa ao encontrar suas cartas, bem guardadas, intactas.  Procuro desenhos. Lembro bem que durante as aulas costumava rabiscar. Saudade de todos nós! Em algum lugar desenhos, noutro fotos, a memória a se mover dançante.

Desta angustia que menciona sofro ainda: ausências. Lacunas! Estar junto, dividir, olhar, conviver, e chego perto da Olga, Suzy, José Luiz, Sofia, Roberto, Laila. Notícias vagas de cada um. Você, você, meu amigo… Não estava na formatura. Desapareceu o menino no sonho. Poetando. Não dos meus, porque penso você, indago, procuro. O que a vida revirada nos fez? Lembra da professora Beth que morava em Ipanema? Esteve em Torres. Lembra do Ciro? Casaram. E o Roberto? Aquelas férias torrenses me aquietavam. Escrevia cartas. Lia bastante. Pensava em vocês. Um desterro anual. E a saudade da rua Viúva Lacerda, de Ipanema apertava. Eu me aninhava no sono.

Aquele morar alimentava devaneios: livros, quadros, e cada objeto motivo de reviravoltas pela infância, por Copacabana, Leblon, amores. Cresci neste Rio de Janeiro desde meus 18 anos…Não uma viagem, mas permanência.  Do Beco das Garrafas direto pro Largo Humaitá, cenário. De passagem Torres, Porto Alegre. Exercito o tu, abandono temporariamente o você…

Sigo escrevendo, debatendo, agitada, inquieta. Escondida. Calada. Não vais acreditar que os cabelos estão todos brancos. E já tenho netos.  O Rio de Janeiro me acolhe, Porto Alegre encanta, mas Torres ressurgiu definitiva. Saudade de você!

“Rio, 17 de janeiro de 1977

Querida Beth,

Somente hoje ao retornar de minhas férias – tomei em minhas mãos tua cartinha tão querida. Estranha é a minha natureza! Algum tempo longe de ti, e de nossos outros colegas, trouxe-me uma angústia fina e penetrante no peito. Chego, à esta altura de minha vida, à conclusão de que estudar, adquirir cultura, não seria tão importante, mas, sim, conviver contigo, com nossos colegas, nossos sonhos, nossas perplexidades.

Como têm sido teus dias? Tens lido muito? Já conseguiste empregada? Tens rido bastante? Dormido bem? Sentes saudade do Rio? Do teu apartamento cheio de coisas tuas? Das árvores da tua rua? Ou o encanto de Torres te fez esquecer o que aqui deixaste? Eu não te esqueço, eu não te esqueço, eu não te esqueço…

Como vão teus pais? Eu gosto muito deles. Da doçura de teu pai e da inconvincente dureza da tua mãe.

Sabes, eu pensei que nas férias fosse escrever muito, mas nada pude fazer. Parece que só tenho alguma inspiração quando estou tenso, cansado, esgotado, indormido. Se estou bem, esvazio-me. Acho que durante muito tempo não voltarei a gozar férias: não quero ser estéril. Pelo menos não mais do que já sou. Viva a canseira! A tensão! A perplexidade!

Ai vai um poema:

Porque não se conformava,

Sonhava em vez de acordar,

Morria, enquanto vivia,

E morreu enquanto sonhava.

Num longo tempo viveu,

Embora tão curto, é verdade.

E deu vida à própria morte

Antes temida e presente.

E, agora, vencida e distante,

A morte, qualquer morte,

Era pouco, era nada,

Pois a vida foi tudo,

Era tudo…

E morreu, enquanto sonhava

Passando-se inteiro ao sonho,

Resgatado para sempre,

Vivendo no sonho sonhado.

 

Até logo, Elizabeth. É bom conhecer você. Bom gostar de você. Salve o Rio Grande do Sul (o “l” deve ser pronunciado à gaúcha).

PS: O número do prédio em que trabalho é 115.

Hélio “