Não há silêncio

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Chuva contínua batendo nas vidraças, numa fala ininterrupta. Escuto. Já é terça-feira. A carta que te escrevi mentalmente foi no domingo.  Fazia sol, quase quente o inverno torrense. Segui o rastro da maresia. Sai das dunas, atravessei o arvoredo de espatódeas floridas e amendoeiras esparramadas rumo à nova cidade. Torres enormes apontam. Vazias. Casas fechadas. Recolhidas porque é inverno. Gramados aparados. Um carro, outro, uma moto. Duas pessoas. O cachorro e eu.  Hibiscos na divisória de terrenos baldios.  Pouco, nenhum vazio  por aqui. O vazio guarda- se no peito. Cresce adubado pra florir. O meu tem camélias. Vazio interno que habita as pessoas, colorido.  O lugar físico foi tomado, povoado. Explosão imobiliária. Pelas calçadas irregulares sigo com os olhos velhos paralelepípedos. Gosto deste calçamento heroico.

O mar naquele verde acinzentado, pestanudo, penteado com espumas brancas. Areia fina, endurecida.  Sinto vontade de avançar e beber água salgada. Gaivotas. Pedras, as nossas falésias!

Sinto não ter janelas frente ao mar. Pesqueiros amanhecendo no horizonte. O cheiro, a maresia. Areia fina grudada nos vidros.  E o som do vai e vem. Fluxo como se fosse o centro de capital: carros e pessoas, mas não é, apenas o mar e o vento. Agito. O som sacode o corpo. Não há silencio por aqui…

É da natureza humana ter sonhos

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Ao acaso, ainda lendo Coetzee, apreendo forma, sentido. Apreendo prazer.

Estou de volta pro mar. Esperando a medalha. Esperando. E, no entanto, sem fazer nada especial.
“ A gente gosta de pensar que é especial, meu menino, cada um de nós. Mas de verdade mesmo não pode ser assim. Se todo mundo fosse especial, não sobrava para ninguém ser especial de verdade. Mas nós continuamos a acreditar em nós mesmos. A gente desce até o porão do navio, no calor e na poeira, carrega o saco nas costas, leva para a luz, vê os amigos batalhando do mesmo jeito, fazendo exatamente o mesmo trabalho sem nada de especial e sentimos orgulho deles e de nós mesmos, nossos camaradas trabalhando juntos com um objetivo comum; mas num cantinho de nosso coração, que escondemos bem, cochichamos para nós mesmos: Porém, porém, você é especial, você vai ver! […] ” (p.58)
J.M. Coetzee, A infância de Jesus.