tempo perdido: vigiar

Quanto tempo perdido! Este eu agarro: tarde, tão tarde! Corajosa: começo a leitura. Não sei se consigo, se vou vencer, e me superar. Eu cito para instigar, fazer cócegas. Viajar!

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava (céus! já aqui estremeço, eu penso, acho?!) Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixo vivo no moquém:quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. (que maravilha isso,  não resisto, interrompo, e digo! repito! Como não antes?) O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra a cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso…

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso esclarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse… Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela  já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar…” (p.32-33) Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas

Claro! …os grifos são meus, ou já são nossos de tão falado/dito/ comentado o texto, (vou revisar se copiei certo,), mas nunca lido. Eu vou por esta vereda e por este sertão! Cheia de coragem! Que o diabo não me tente, e eu não abandone a leitura para ficar a esfregar vidros, polir móveis, enfileirar livros e vigiar bicicletas… Que eu consiga! Corajosa hoje, amanhã não sei, mas vou sinalizando…

Que atrasada estou!Eu vou…Elizabeth M.B.Mattos- abril de 2019 – Torres. Vigiando a bicicleta. Li e reli: não transcrever errado. Prosa única.

adoro estante e cartonado da aquarela do stockinger

 

sinto receio, não desisto

A estrada seria longa. Todas as estradas que levam ao que o nosso coração almeja são longas. Mas esta estrada meu olho mental podia ver num mapa, profissionalmente, com todas as suas complicações e dificuldades, mas, ainda assim, bastante simples de certa forma. Ou se é um marujo, ou não se é. E eu não tinha dúvidas de que era um deles.” (p.58-59) Joseph Conrad

A Linha de Sombra

Mesmo quem nunca abriu um livro. Abra este. Leitura tem cheiro, forma, gosto. Posso sentir. Faço analogias, e…

O impulso: ou se é, ou não se é. Como seria melhor/maior/completo se… Parece pouco desejar, apenas desejar. Temos que ser dois, estranho/engraçado/ irônico porque sempre somos apenas um eu. Há que haver toque e beijo. A tal amorosidade para sermos dois. Elizabeth M.B. Mattos – abril de 2019 – Era abril quando saí da Garagem de Arte – simples assim:  ‘Não precisamos mais…’. A ruptura arranha. Despedidas! Claro!

…e a vida segue. Eu te encontrei. Elizabeth M.B. Mattos – abril – 2019

cuidado

“... O canto de Ulisses. Quem sabe como e por que veio-me à memória, mas não temos tempo para escolher, esta hora já não é mais uma hora. Se Jean é inteligente vai compreender. Vai: hoje  sinto-me capaz disso. Quem é Dante? Que é a Divina Comédia? Que sensação estranha, nova, a gente experimenta ao tentar esclarecer, em poucas palavras o que é a Divina Comédia. Como está organizado o Inferno. O que é o ‘contrapeso’, que liga a pena à culpa. Virgílio é a razão. Beatriz a Teologia. Jean ouve atento. Eu começo, lento, cuidadoso:

‘Lo maggior corno della fiamma antica

Cominciò a crollarsi mormorando,

Pur come quella cui vento affatica.

Indi, la cima in qua e in là menando,

Come fosse la lingua che parlasse,

Mise fuori la voce edisse: Quando…”

Eis que a ponta maior da chama antiga/começou a mover-se, crepitando,/ tal a que um vento ríspido castiga./ E de um e de outro lado se agitando/ um som soprava, como que saído/ de seu calor, e que dizia: ‘Quando… (p.114)

Abre os ouvidos e a mente, eu preciso que compreendas:

Considerate la vostra semenza:

Fatti non foste a viver come bruti,

ma per seguir virtude e conoscenza.’

(Relembrai vossa origem, vossa essência;/vós não fostes criados para bichos,/ e sim para o valor e a experiência) 

É como se eu também ouvisse isso pela primeira vez: como um toque de alvorada, como a voz de Deus. Por um momento, esqueci quem sou e onde estou. Pikolo pede para eu repetir estes versos. Como ele é bom: compreendeu que está me ajudando. Ou talvez seja algo mais: talvez (apesar da tradução pobre e do comentário banal e apressado) tenha recebido a mensagem, percebido que se refere a ele também, refere-se a todos os homens que sofrem e, especialmente, a nós: a nós dois, nós que ousamos discutir sobre estas coisas, enquanto levamos nos ombros as alças do rancho.” (p.116)

É a experiência de passar/dizer/explicar/ comentar um saber: a leitura de um livro de poucas páginas que leio devagar, a pensar, a voltar na leitura. Tempo urgente de caminhada penosa, porque a vida não espera o momento certo. E sempre estamos a caminho, no meio do caminho… Será certo quando estiver junto/contigo a te falar. A leitura faz transposições mágicas. Não estou num Campo de Concentração, não sou italiana,  também não compreendo alemão, como Jean posso ler em francês, como Levi há sempre, para mim, e para ti, urgência de nos olharmos porque nos reencontramos apartados um do outro. Não foi há 30 anos atrás, foi neste hoje que nos sacode. E dizer o que sinto, ou o que nunca serei, ou sublinhar todo um agora, com a pressa, a urgência da vida. Quando eu converso, ou te pressinto, eu respiro. E.M.B.Mattos  – abril de 2019 – venta em Torres porque o verão se despede.

Seguro Pikolo, é absolutamente necessário e urgente que escute, que compreenda o que significa esse come altrui piacque, antes que seja tarde demais: amanhã, ou ele ou eu poderemos estar mortos ou não nos rever nunca mais, devo falar – lhe o que era a Idade Média, esse anacronismo tão humano e necessário e no entanto inesperado, e algo mais, algo grandioso que acabo de ver, agora mesmo, na intuição de um instante,  talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui, hoje…”(p.117) Primo Levi É ISTO UM HOMEM – Tradução de Luigi DEL RE – Editora  Rocco  Rio de Janeiro – 1988

Ouso repetir que o livro conta a vida, seguro todos o nosso momento premente e importante. Sacode o coração. O hoje e o agora importam. Então eu te chamo. Talvez eu não tenha nada para dizer, talvez tu também fiques constrangido, apertado no instante de ser tu e eu, no entanto, a vida, como um trator nos largou neste

A G O R A.

Estupefatos, porque vivos. E aqui tem sol, vento, água e tempo. Não importa mais a poeira, a reconstrução, a beleza e a ordem que persigo. Tratarei do possível. Trarei flores para nos distrair da desordem. E seremos amigos. Isso é muito bom. Embora blindados somos.  Ulisses volta para Penélope que o esperou uma vida inteira. Mas não se deixa ficar, a inquietude o carrega. A vida se transformou nesta agitação ansiosa.Beth Mattos