“... O canto de Ulisses. Quem sabe como e por que veio-me à memória, mas não temos tempo para escolher, esta hora já não é mais uma hora. Se Jean é inteligente vai compreender. Vai: hoje sinto-me capaz disso. Quem é Dante? Que é a Divina Comédia? Que sensação estranha, nova, a gente experimenta ao tentar esclarecer, em poucas palavras o que é a Divina Comédia. Como está organizado o Inferno. O que é o ‘contrapeso’, que liga a pena à culpa. Virgílio é a razão. Beatriz a Teologia. Jean ouve atento. Eu começo, lento, cuidadoso:
‘Lo maggior corno della fiamma antica
Cominciò a crollarsi mormorando,
Pur come quella cui vento affatica.
Indi, la cima in qua e in là menando,
Come fosse la lingua che parlasse,
Mise fuori la voce edisse: Quando…”
Eis que a ponta maior da chama antiga/começou a mover-se, crepitando,/ tal a que um vento ríspido castiga./ E de um e de outro lado se agitando/ um som soprava, como que saído/ de seu calor, e que dizia: ‘Quando… (p.114)
Abre os ouvidos e a mente, eu preciso que compreendas:
‘Considerate la vostra semenza:
Fatti non foste a viver come bruti,
ma per seguir virtude e conoscenza.’
(Relembrai vossa origem, vossa essência;/vós não fostes criados para bichos,/ e sim para o valor e a experiência)
É como se eu também ouvisse isso pela primeira vez: como um toque de alvorada, como a voz de Deus. Por um momento, esqueci quem sou e onde estou. Pikolo pede para eu repetir estes versos. Como ele é bom: compreendeu que está me ajudando. Ou talvez seja algo mais: talvez (apesar da tradução pobre e do comentário banal e apressado) tenha recebido a mensagem, percebido que se refere a ele também, refere-se a todos os homens que sofrem e, especialmente, a nós: a nós dois, nós que ousamos discutir sobre estas coisas, enquanto levamos nos ombros as alças do rancho.” (p.116)
É a experiência de passar/dizer/explicar/ comentar um saber: a leitura de um livro de poucas páginas que leio devagar, a pensar, a voltar na leitura. Tempo urgente de caminhada penosa, porque a vida não espera o momento certo. E sempre estamos a caminho, no meio do caminho… Será certo quando estiver junto/contigo a te falar. A leitura faz transposições mágicas. Não estou num Campo de Concentração, não sou italiana, também não compreendo alemão, como Jean posso ler em francês, como Levi há sempre, para mim, e para ti, urgência de nos olharmos porque nos reencontramos apartados um do outro. Não foi há 30 anos atrás, foi neste hoje que nos sacode. E dizer o que sinto, ou o que nunca serei, ou sublinhar todo um agora, com a pressa, a urgência da vida. Quando eu converso, ou te pressinto, eu respiro. E.M.B.Mattos – abril de 2019 – venta em Torres porque o verão se despede.
“Seguro Pikolo, é absolutamente necessário e urgente que escute, que compreenda o que significa esse come altrui piacque, antes que seja tarde demais: amanhã, ou ele ou eu poderemos estar mortos ou não nos rever nunca mais, devo falar – lhe o que era a Idade Média, esse anacronismo tão humano e necessário e no entanto inesperado, e algo mais, algo grandioso que acabo de ver, agora mesmo, na intuição de um instante, talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui, hoje…”(p.117) Primo Levi É ISTO UM HOMEM – Tradução de Luigi DEL RE – Editora Rocco Rio de Janeiro – 1988
Ouso repetir que o livro conta a vida, seguro todos o nosso momento premente e importante. Sacode o coração. O hoje e o agora importam. Então eu te chamo. Talvez eu não tenha nada para dizer, talvez tu também fiques constrangido, apertado no instante de ser tu e eu, no entanto, a vida, como um trator nos largou neste
A G O R A.
Estupefatos, porque vivos. E aqui tem sol, vento, água e tempo. Não importa mais a poeira, a reconstrução, a beleza e a ordem que persigo. Tratarei do possível. Trarei flores para nos distrair da desordem. E seremos amigos. Isso é muito bom. Embora blindados somos. Ulisses volta para Penélope que o esperou uma vida inteira. Mas não se deixa ficar, a inquietude o carrega. A vida se transformou nesta agitação ansiosa.Beth Mattos