para o meu João

“Na esfera das obrigações, do trabalho, não me sinto mal por estar obrigado a ganhar um salário (nunca dizer, nem por distração: ‘ganhar a vida’); a canseira desse trabalho impessoal me lança com mais vontade às conferências, a um concerto, a uma perseguição ardente. O que verdadeiramente me frustra (homenzinho, funguinho, medroso) é o trabalho do amor, dos carinhos, dos laços com a minha gente. Não perco a liberdade porque trabalho, mas trabalho para conservar o círculo, a family reunion, o prazer das amizades. Não sei romper os laços; e o que é pior, vejo claramente que deveria rompê-los (ou ter pelo menos a certeza de que posso fazê-lo esta noite ou na semana que vem); vislumbro em mim a semente dos que devem estar sozinhos para poder dar algo, mas permaneço em Buenos Aires, cercado de pessoas que me querem bem – e assim, quando o carinho não escolheu ninguém, isso significa…

[…] Mas o que importa é verificar diariamente como o círculo impõe sua lei, provoca reações, dá polimento às arestas, contagia os vocabulários, corrói as pontas, unifica os credos; como aquilo que se chama ‘o grupo’, ‘a turma’ ou nossa equipe […] e isto faculta deslizes amáveis na vida (anda, vai ver fulano para que te façam o desconto na Albion House) e encaminha toscos destinos em grilhões bem burifados (tens que ler Greene; é necessário ir ao Cine Club; convém que seja você o autor da nota sobre o livro de Monona..) e mamãe, tão doente, e o seguoa da Previdência, e ” (p.77-78) Júlio Cortázar Diário de Andrés Fava – José Olympio Editora – 1997

Quando a gente não sabe fazer a conversa toda, nem convencer ninguém, nem conversar sobre isso ou aquilo porque as pontes foram detonadas, ou nunca existiram, e alguém não entende o porquê de usar reticências, enfim, como fica cansativo explicar, explicar… Ou pensar sem saída. Se eu vejo e tu não enxergas nada, por onde eu começo? Se escutas, mas não queres ouvir.

Cortázar tem razão: “Diante de algumas pessoas é imperioso fingir-se de idiota para que não nos tomem por idiota.” (p.79)

E às vezes é assim mesmo, ” o amor olhando por dentro de uma pequena xícara de café” (p.18) ou ” Há coisas que a gente ama na lembrança, mas já não pode atualizar, tolerar a presença.” (p.108). e isso me lembra as conversas com FT / e as cartas / os encontros, e as minhas cartas que o tal Eduardo H. segurou a pedido do Iberê Camargo? Que ridículas cartas seriam? E os retalhos ficam maiores do que a colcha. Gosto de me rir quando penso nestas coisas extraviadas, a vida de viver, e os encontros que nunca existiram, e aquelas confissões todas. Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2023 – Torres

P.S. Paulo Sérgio seria/teria sido uma guinada, uma decisão, mas eu tive muito medo, e rasguei a carta, aos pedacinhos bem pequenos, nunca te contei isso. Do medo não brota nada. Não penses que és apenas um parágrafo, claro que não. Eu sempre irei/iria/vou para São Paulo.

Deixe um comentário