a castidade do medo

Saí há pouco no pátio, molhei as plantas. Depois fui tomar café debruçado no portão da rua. Ter um pôr do sol todo rosa, com uma lua crescente (em libra). Tua carta me fez muito bem. E muito mal. Compreendo tudo o que você diz, são coisas que me digo, também. Mas há uma diferença entre você saber intelectualmente da inutilidade das procuras, da insaciabilidade – vixe, que palavra! – do corpo e conseguir passar isso para seu comportamento – tornar ato o que é pensamento abstrato. Os caminhos são individuais / intransferíveis. Meu problema maior é a minha própria moral – ou a que adquiri através da educação, da sociedade, não importa. Meu problema é que tenho dentro de mim, muito claros, os conceitos de “moral” e “imoral”. E que cada “imoralidade” que cometo me deixa um saldo enorme de culpa, de amargura, de sofrimento. Não encontrei Deus ainda, como você. Ele não veio até mim – e digo isso lembrando de um provérbio zen: “Quando o discípulo está preparado o Mestre vem a ele.” Ainda não veio. Ainda não estou preparado. Mas estou mais tranquilo. E percebendo coisas: a memória da gente é safada: elimina o amargo, a peneira só deixa passar o doce. Então eu tinha esquecido que esta cidade te cobra preços altos. Ela é uma mulher ( ou um homem) belíssima (o) que se oferece, tentador, como se amasse, te envolve, te seduz – e na hora em que você não suporta mais de tesão e faria qualquer negócio, ela(e) te diz o preço. Que é muito alto. Quanto a mim a aconteceram – algumas tragédias do coração. Diálogos ridículos, tipo és um mito para mim e eu dizendo […] Caio Fernando Abreu – sábado, 2 de março de 1996

ah! as cartas! sempre trazem uma verdade de pimenta, ou açucarada do momento, um abrir e um fechar, tudo ao mesmo tempo. Houve o tempo manuscrito, apressado, e a carta escorregava numa emoção qualquer querendo uma resposta, um beijo, um aconchego. Nem era carta, mas um desejo de retorno. Uma pressa para chegar no outro que estava mesmo do outro lado, na outra cidade, no outro país… ah! Se era longe a gente cuidava um pouco mais a carta, mas aquela luz iluminava /ilumina um desejo forte nosso… as cartas em comprometem porque revelam um minuto, nunca tudo. o beijo, o abraço, o desejo está, certamente, picotado. Eu sou apaixonada por este esticado elétrico da fala /comunicação / dizer pelas cartas. as histórias se definem nas entrelinhas numa emoção q não está explícita mas tão evidente! eu guardei esta matéria da Zero Hora sobreo Caio F.

a sequencia vai ser censurada, então, não escrevi / transcrevi. censura é modernidade com direito a punição das bravas…, então, confesso, tenho/sinto medo. Mas sempre deixo um rastro…Quem se interessar tá lá ZERO HORA, sábado, 2 de março de 1996 – eu, encolho o meu eu, e… Elizabeth M.B. Mattos – março de 2024 – Torres

” Era real. E feio. Alguma coisa não estava mais lá. A alma? Pode ser.”

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