“Gosto de saber que existem livros que ainda poderei ler – ela diz, certa de que à força de seu desejo devem corresponder objetos existentes, concretos, mesmo que ainda desconhecidos. Como acompanhar o passo dessa mulher, que sempre lê outro livro além daquele que tem diante dos olhos, um livro que ainda não existe, mas que, dado que ela o deseja, não pode deixar de existir?
O professor está ali a sua escrivaninha; suas mãos suspensas emergem no cone de luz de uma lâmpada de mesa, ora suspensas, ora pousadas de leve sobre o volume fechado, como numa carícia triste.” Li tua carta com ansiedade e certa tristeza porque ela não era escrita para mim, não estabelecia nenhuma intimidade, nada era teu ou meu: circunstâncias gerais, o exercício do tempo enfiado, comprimido numa carta. Assim mesmo o prazer do teu nome, o teu enviado modifica tudo. O dia fica inquieto dentro de mim. E eu vou depressa me olhar no espelho, e me aperto um pouco mais na blusão azul, passo batom e verifico se o cabelo está arrumado, as unhas irregulares… Suspiro enquanto coloco um pouco de perfume e me preparo para uma caminhada curta, mesmo no chuvisco. Ônix se entusiasma com os preparativos. Olho pela janela e vejo uma chuva miúda num dia cinzento. E eu confirmo: vamos. Quando voltar vou reler e reler para ler alguma coisa presa entre vírgulas que seja o meu beijo, o teu gosto.
“Ler – ele diz – é sempre isto: existe uma coisa que está ali, uma coisa feita de escrita, um objeto sólido, material, que não pode ser mudado; e por meio dele nos defrontamos com algo que está presente, algo que faz parte do mundo imaterial, invisível, porque é apenas concebível, imaginável, ou porque existiu e não existe mais, porque é passado, perdido, inalcançável, na terra dos mortos… – Ou talvez algo que não está presente porque não existe ainda, algo de desejado, temido, possível ou impossível – diz Ludmilla. – Ler é ir ao encontro de algo que está para ser e ninguém sabe que ainda será…-Pronto, agora você vê a leitora debruçada e perscruta além da margem da página impressa o despontar no horizonte de navios vindos para salvar ou para invadir, as tempestades… – O livro que eu gostaria de ler agora é um romance em que se narre uma história ainda por vir, como um trovão ainda confuso, a história da verdade que se misture ao destino das pessoas, um romance que dê o sentido de estar vivendo um choque que ainda não tem nome nem forma.” (p.78-79) Italo Calvino Se um viajante numa noite de inverno –São Paulo- Companhia das Letras, 1999
Esta data – 1999. Por onde anda este ano e estas pinturas, os desenhos e as tintas. Aonde escondi minha vontade e a lucidez? Releio tua carta. Lúcida. Precisa. Nenhum erro. Impessoal. Ou sou eu mesma que me perco na pieguice do romance como se todos os dias tu pudesses pensar que poderia ter sido. O mundo, este danado mundo que não muda nada…, não se reinventa embora o inverno esteja mais frio e os verões mais escaldantes, e as pessoas mais inquietas. Queria te dizer, parecemos passarinhos, uma gritaria num momento de falar todos ao mesmo tempo, uma correria, e um ninho feito no capricho, para poucos. O que eu espero destes dias arrastados? Aventura? Descoberta? Beijo? Risadinha e liberdade? Um café na rodoviária: redescoberta dos restaurantes do Mercado Público? A liberdade? Embora o tempo não esteja a nos esperar, eu visto a coragem e saio a caminhar pela rua Vitor Hugo em direção, em direção ao teu acaso. A minha relação com a vida é feita de coisas não levadas a cabo e meio esquecidas, daí o mal – estar que acaba por me fazer fugir. A diferença, hoje: o acaso é uma risada perdida… Eu desenho as casas, as flores pequenas, uso todos os lápis coloridos, e depois, passo o dedo para espalhar a cera… as cores se misturam, e desenho outra flor no borrão, outra casa e defino um caminho. Talvez, talvez o teu próximo bilhete tenha apenas o meu nome em cima, um beijo e o teu nome. Elizabeth M.B. Mattos – julho de 2024 – Torres – os selos comemorativos do tio Clóvis chegaram.

