“Senta um pouco aí nesta cadeira, estica as pernas. Vou buscar o vinho.” O perfume da casa, as rosas do vaso, os copos e o tinto… Tudo pronto para que o tempo seja apenas o tempo. A bandeja polida. Ah! Tanto para explicar! Quero ouvi-lo, principalmente, preciso ouvi-lo. Ele continuava imóvel com os olhos fixos nos quadros que ocupam a parede inteira: retratos. Observar, observar e esperar o momento certo. A humanidade presa na moldura, adivinhada… Sinto a surpresa dele. “Trouxeste para o Rio Grande Sul o Rio de Janeiro. Tua casa tem luz natural. O carioca carrega o verde pra intimidade da casa.” Mas aqui o inverno nos transforma por dentro, respondo. A sacada é verdes e violeta, um jardim. Aproximo a pequena mesa do sofá, vou buscar a bandeja. José abre o vinho. Lento, medido nos gestos. Silencioso. Controlo minha agitação. Guardo reserva. Mentalmente lembro-me da última carta invasiva… Do silêncio para a turbulência. Começa a ler em voz alta o parágrafo sublinhado no livro aberto, em cima da mesa grande cheia de lápis, livros, pastas e revistas: “Tédio, tempo arrastado, frio compacto. Mais tarde compreendi que a falta de liberdade não consiste jamais em estar segregado, e sim nesta promiscuidade, pois o suplício inenarrável é não se poder estar sozinho. A vida comum é fenômeno social escolhido, voluntário, ao contrário dos companheiros de presídio, estes são impostos pela sorte aziaga e niveladora de instintos e não pela vontade selecionadora de inclinações. Inconscientemente todos os detentos sofrem quando em promiscuidade, bem mais do que sozinhos com seus devaneios ilimitados.” Dostoievski. “É espantoso! Cada parágrafo é interioridade, fragmento humano. Somatório de homem, alma, e sofrimento.” Levantou a voz: “Estamos os dois confinados! E tantas vezes nos envolvemos com grupos idiotas! Idiotas, inconsequentes. Somos apanhados na rede da vaidade! Um castigo! Nunca estamos onde realmente queremos estar. Aliás, nem sabemos com quem gostaríamos de estar. Nada sabemos. Deixamo-nos levar pela rotina.” Fiquei surpresa com a expressão dos olhos, a voz.. “Reais? Sei lá… mas precisamos uns dos outros!” Voltou a falar pausadamente: “E nos jogamos no cárcere… Aceitamos o carrasco. Ser punido e receber recompensas. Apenas sorrimos quando queremos ver um sorriso. Uma mímica interna. Mas, há sempre a possibilidade de dizer não!” Ficamos silenciosos os dois, e bebemos o vinho devagar, quietos lado a lado.