Língua estrangeira

Torres, segunda-feira, 10:30, 3 de março de 2014.

Todas as histórias têm personagem ativo, bonito, bom e generoso. Giolo corresponde ao ideal. Paulista carioca de olhos castanhos. Educado. Conhecemos-nos em São Paulo, ponte aérea para o Rio de Janeiro. O voo atrasou. Passageiros de todos os horários conversam… Meia noite o embarque. Guardo o cartão com endereço. Mesbla. Meia hora depois, no segundo voo, descemos no Congonhas. Giolo estava lá. Passamos a nos ver.  A urgência presente da próxima despedida. Retorno, em breve, definitivamente, ao Rio Grande do Sul. Amigos do Leblon, de Ipanema, Copacabana, Humaitá, histórias da rua Viúva Lacerda apagados. Recomeço mais uma vez. Apaixonar, tecer planos, não. Dançamos, rimos juntos. Não velejamos. As conversas sobre música, alegria, dia ensolarado. Noites longas. Eternidade. A pintura, o nanquim, o ambiente da Aliança Francesa tem o cheiro do pecado adolescente. Se eu conseguir dimensionar maturidade. Integrar o antes com o agora, modelar vida, urgência. Retomar casa perdida, quarto rosado. Sair em busca dos castanheiros. Esquecer jacarandás, trepadeiras, ou quintal.  Assim, se reproduz o que foi outrora interrompido. Sair de casa. Conversa fechada em quatro portas. O violão, o piano, o poema. A leitura de Herman Hesse, A erva do diabo, ou Freud, Kirshnamuti. Huxley, Saul Bellow. Visitar filmes de Glauber Rocha. O sorriso certo em língua estrangeira. O idioma um escudo, tanto quanto a arte, o desenho, a tinta da cor o significado correto. Em português tropeço, na outra língua, a estrangeira, o perfeito. O melhor esconderijo. O indizível. Expectadores de nossas próprias histórias, estrangeiras.

CARNAVAL ou Natal?

Domingo, 10:30, 2 de março de 2014, Torres.

Dias ensolarados na fresca deste novo verão depois de chuvas violentas, e calores abrasadores. Acordamos cedo e fizemos boa caminhada. As pernas reclamam, e a pontada que sinto nas costas persiste. Consegui cavoucar o jardim, e lavar as janelas. Separei algumas roupas. E até passei os lençóis. Exausta, estiquei as pernas para folhear as revistas. Penso em assinar um jornal visto ter tão pouco entusiasmo por televisão. E me pergunto porque não sentar e acompanhar os festejos carnavalescos? As festas de carnaval iluminam ruas, cidades inteiras, como se fosse Natal. As pessoas se preparam 324 dias para dançar, libertas. Rezam atrás dos presentes natalinos. Dois acontecimentos anuais que se avolumam no calendário competindo com os jogos de futebol. Carnaval pode ser o melhor tempo de ser livre. Natal a mentira mais convincente. E o futebol traz o sentido de pertencimento, fazer parte do grupo certo, do clube certo. E os ídolos de todos estes eventos aquecem o coração mendigo de todos. Nestas ocasiões fazemos parte de uma crença, de um som, de um movimento, de uma vitória. E se não fazemos parte do grupo, estamos do outro lado, ao lado do que protesta com silêncio. Ou pedras. Ironia e calúnia. Ou intelectualizamos eventos. Crítica e sentimento de superioridade. Os intelectuais com seus escudos, armaduras defendendo castelos. Espiando!Elizabeth M. B. Mattos -2014 – Torresfb67479505873a2bbc571ee60d42a9de_23_IMG_6131

 

 

 

 

Fragmentos carta e outra carta

Sábado, 11 hs,  Torres, 1 de março de 2014.

Nasceu a neta carioca. Deslocamento. Angústia, depois excesso.Tempo restrito a ninar, observar, e me deslumbrar. Os bebês são fortes, frágeis, entregues, e autoritários. O calor me consome.

Volto a te escrever na temperatura amena e florida, recheada de amoras, e mimosas cheirosas, buganvílias. De Torres. Quero teu abraço, igual  ao que me deste no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagori. Quando estás perto tenho certeza que o tempo não me venceu. Fico saboreando a lembrança. Gotas de prazer. Fazes-me falta.

Em terra gaúcha soube da morte de Maria Coussirat Camargo. Aos noventa e oito anos. Imagino que guardou até o fim a enérgica posição de guardiã da obra, e do amor de/por Iberê. Cercou a exclusividade. Altruísmo evidente. Maria desenvolveu autoridade para determinar o que podia, ou não, ser feito. Assim vivem os artistas sob proteção dos escolhidos, e amorosos  companheiros.

Até que ponto o tiro que matou um homem foi determinante para o retorno ao Rio Grande do Sul. Penso em Iberê Camargo. Ou foi a doença?  Anoto, escrevo até a exaustão. Organizo. Sucesso dos carretéis, a valorização, a obra na vitrine. Como, exatamente, aconteceu? Investigo. Será que a prisão determina, fortifica? Histórias a serem contadas, ou esquecidas. Sinto saudades do amor. Teu abraço me conforta.

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“A Louise Colet

Quarta-feira, 11h, Croisset, 14 de outubro de 1846.

[…] Trabalha, medita, medita acima de tudo, condensa teu pensamento, sabes que os belos fragmentos não são nada. A unidade, a unidade, tudo aí está! O conjunto, eis o que falta a todos de hoje, tanto nos grandes quanto nos pequenos. Mil passagens bonitas, mas não uma obra. Cerra o teu estilo, faz um tecido mais leve que a seda e forte como uma cota de malha. Perdão por estes conselhos, mas queria dar-te-tudo que desejo para mim.”

In: Correspondance: première série (1830-1846). Nouvelle édition augmentée. Paris: Lous Conard, 1926. p.375-377.

Tradução de Roberto Acízelo Quelha de Souza, in Uma ideia moderna de literatura textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Fragmento da correspondência entre Gustave Flaubert a Louise Colet