Presença ausente

Meu amigo:
De manhã a leveza amanhece, e se propõe laboriosa, logo esvoaça… A cadeira, a luz, este livro, não, aquele outro. As flores não chegam. Os legumes não me parecem frescos, e não comprei carne. Desço para beber o café da esquina, ler as manchetes. Saudade preguiçosa da correspondência! Ligeira, sem censura. Lição, tema de casa, dever, presença. Sensual. E logo os poemas me invadem.
Necessária diligência. Trabalhar, verbo intransitivo: quem trabalha, trabalha, e ponto final. Há que se investigar a qualidade deste fazer, a relevância. O sentido está contido nele mesmo, na ação. Quem compra, compra alguma coisa, compra a vontade de trabalhar, transitivo direto. Quem escreve, escreve porque escreve. Intransitivo. Cartas? Transitivo direto, e indireto: escreve cartas para alguém. Expressão, exibição, vício, loucura particular. A leitura satisfaz, desagrada, degrada? Repassa, incita, deleita. Os contos saltam pelos poemas, narrativas curtas, novelas caudalosas. Monólogos, vertigem. Investigar sentimentos, objetos, luz, temperatura. O vento trabalha junto: alucina inquieta, transporta. Magia de ametista.
Tua carta foi presença ausente. Sigo te escrevendo da mesma cidade.

Sombrio da Serra, 06 de julho de 2014.

CAVALGADA ANA 068
“Eu viro frases pelo avesso. Essa é minha vida. Escrevo uma frase e viro-a pelo avesso. Depois olho para ela e viro-a pelo avesso de novo. Depois vou almoçar. […] E se saio um dia que seja desta rotina, me desespero com o tédio e a sensação de desperdício.” (p.20-21) Zuckerman Acorrentado Philip Roth.

Foto de Ana Maria Vianna Moog

Marguerite Duras

Marguerite Duras, Ernesto Sábato, e as cartas de Iberê Camargo. Iberê se quis escritor quando a dor, a doença se avizinhou. Sábato, cientista, escritor, se quis pintor. Marguerite Duras escreve pintando. A imagem se sobrepõe ao texto. Individualiza o que, aparentemente, parece pertence a todos. A imaterialidade se desenha no texto. Efervescência, paixão confessada…
“O corpo dos escritores participa de seus escritos. Os escritores provocam sexualidade a seu respeito. Como os príncipes e poderosos. […] Eles são objetos sexuais por excelência. Ainda muito jovem, aconteceu-me sentir atração por homens mais velhos pelo fato de serem escritores. Jamais fui capaz de conceber a sexualidade sem a inteligência ou a inteligência sem uma espécie de ausência de si mesmo. Muitos intelectuais são amantes desajeitados, tímidos e amedrontados, distraídos. Para mim tanto faz, a partir do momento que, longe de mim, eram escritores igualmente distraídos de seus próprios corpos. Já notei que os escritores que fazem amor maravilhosamente são muito menos grandes escritores que os que não fazem amor tão bem, que têm medo.” (p69) A vida Material, Marguerite Duras

Balanço na praça

Querido amigo:

Mágoas – tantas, todas! É preciso. Urge. Importa. Uma autodefesa. Conciliar sentimentos antagônicos. Um grito.

A vida exigindo, atiçando! E meus vinte anos esperneiam irritadiços… Velhos sentimentos desenterrados.

Há preço, etiquetas para este leilão. Não é, exatamente, partilhar, mas desfazer-se do susto.

Até deste teu gesto amigo, da cordialidade. Da dependência.

Você vai entender. Medo de sermos, afinal, descartáveis.

Estamos enraizados na velha solidão…

Sem contabilizar o ar, o cheiro, o sono, a preguiça… Sem pagadores, nem devedores.

Para você, livre. Por um momento, livre.

Depois do espelho, a praça.

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Fatalidade interior

“Ele envelhecia, se de fato já não encontrasse unicamente na ação o seu contentamento. Admirou-se de agitar problemas que, para ele, nunca tinham existido. E, não obstante, chegavam-lhe, num melancólico murmúrio, todas as coisas boas que sempre afastara de si: um oceano perdido. ‘Tudo isso está então tão perto? ’… Compreendeu que tinha feito recuar, pouco a pouco, para a velhice, para ‘ quando tivesse tempo’, tudo o que torna doce a vida de um homem. Como se realmente se pudesse ter tempo um dia, como se se ganhasse, ao cabo da vida, aquela bem-aventurada paz que imaginamos. Mas a paz não existe. Talvez não haja vitória. Não existe uma chegada definitiva de todos os correios.” (22-23).

FOTOS BETH 192

Os reveses fortalecem os fortes. Infimamente, joga-se contra os homens um jogo em que o verdadeiro sentido das coisas tem tão pouco peso. Ganha-se ou perdê-se conforme as aparências, não têm o mínimo valor os pontos que se marcam. E fica-se amarrado por causa de uma aparência de derrota.” (p.90)

Poderia ainda lutar, tentar a sua sorte: a fatalidade exterior não existe. Mas há uma fatalidade interior: há um momento em que nos sétimos vulneráveis; então, como uma vertigem, os erros atraem-nos.” (p.106-107)

FOTOS BETH 065
Voo Noturno, Antoine de Saint-Exupéry

Transição

O tempo calou. Você se perdeu no caminho, mais ou menos do mesmo jeito que apareceu, assim no repente, misturando o natural com a macrobiótica. Apertando amarras, cortando pontos, bordando, refazendo pregas desta história… Você apareceu naquela tarde do luto. No susto, a voz da morte. Você estava naquela sala. Cercamos o mito, o grito, as tintas. Das pedras gastas, o passado. Remexido passado desta memória esquecida…

Abafada tristeza do último olhar. Cartas escritas, rasgadas, extraviadas, esquecidas. A história imaginada no imenso quadro azul. Você foi passagem, transição. Ordeno a memória, esbarro em você. Ordeno as páginas da tua memória. Romance do mar nas agrestes lembranças do pintor… Elizabeth M. B. Mattos – Porto Alegre

Javier Marías

Meu amigo:
Acordei muitas vezes de noite. Abri a janela pra sentir o cheiro do vento, da terra. Doem minhas costas, as pernas respondem. É o tempo que vai passando lento, ansioso e cheio! Urgência, e lentidão exaustiva do nada. Mergulho nas velhas e repetidas leituras. E desejo que tudo volte ao mesmo lugar. Até os sentimentos deveriam ser catalogados.
Chove, faz sol, chove, faz calor. Já deves ter chegado a Porto Alegre. Embora se tenha passado um par de dias juntos, pouco foi dito. Como dois apaixonados, as raivas de ontem se desmancham nos beijos recheados de olhares mansos. A saudade plantada nesta presença fugidia. Momento de alívio quando adormeces vestida; posso afrouxar tua roupa, fechar as cortinas, colocar outro travesseiro para melhor apoiar teu corpo pequeno. Posse de silêncio conciliador. Entregue, suspiro no alívio, como se toda tensão pudesse desaparecer. Os erros se transformam em acertos, as queixas se volatizam. A beleza do corpo adormecido transforma o ambiente; as cortinas estufam ao vento. E a floração do jasmim perfuma a sala. Posso medir tua mão, teus pés sob os lençóis, tuas ancas: o vestido está colado no corpo suado. A perturbação desta contemplação tira o ar, e sinto um enjoo doce e quente desta floração tão próxima da janela. Mastigo as pequenas flores brancas… Minhas narinas abrem e fecham, tenho as mãos molhadas.
Adormeço sentada. E a tarde vai esfriando o dia. A chuva fica mais forte. Venta. O verão surpreende.Queria tomar um café contigo. Caminhar contigo. Ficar sem falar, ao teu lado. Eu penso: Se um dia tivesses me perguntado …, não contar pelo contar, mas responder é diferente. Elizabeth M.B.Mattos – Porto Alegre, 05 de julho de 2014.

Minha memória está tão cheia que às vezes não a suporto. Queria perdê-la mais, queria esvaziá-la um pouco.” (p.109) Vol.1 Febre e Lança da trilogia Seu Rosto Amanhã. Javier Marías

 

Chico César

Durante o tempo em que estivemos juntas imaginei, pensei, ponderei, revisei o sentido de cada palavra que poderia dizer… Imaginei o diálogo. Perguntas e respostas. Busquei pretexto. Separei qualidades e defeitos. Confundi amor com responsabilidade. Felicidade com abnegação. Reconsiderei pontuando. Repassei leituras adequadas, procurei autores que auxiliariam, apoiariam uma advertência, a nova posição.
Silenciosa, dobrava, ordenava o armário. Seguia abrindo caixas, retirando roupas…
Servi o café com leite, comemos bolachas. Não nos dissemos nada, seguimos escutando a música de Chico César.

 

As crianças deviam ser educadas em contato com grandes bibliotecas particulares. A convivência diária com espíritos sérios, o ambiente sábio, escuro, silencioso, a contínua adaptação a mais meticulosa ordem, no espaço e no tempo – que meio seria mais indicado para ajudar criaturas sensíveis a atravessar a juventude?”

(p.15, Ed Nova Fronteira, 1982. RJ) Auto- de-Fé, Elias Canetti

No mesmo lugar

Noturno, enorme, o silêncio deste mar… Quero sentir o mar, voltar para casa. Abrir a gaveta. O quebra-cabeça de madeira, o jogo da memória, a boneca, as bolas de gude. A estrela do mar, a concha, a torre, o balde azul… Quero brincar na areia deste mar. Em casa, encontrar tudo exatamente, no mesmo lugar.

Descaso acidentado

A sombra desta mulher desenha empenho. Presente em qualquer tempo. Desejo de homem certo. A disponibilidade esconde mistérios. A vida se imagina em orgia: fumaça, álcool, e noite. Impressiona o cigarro aceso que descola ansiedade, incerteza. Cigarro aflito. Ou consolo. Segura o tempo.
A lagoa inteira se acorda. A vizinhança desperta ao ir e vir contínuo destes passos andróginos. Dos cães que acordam. Dos pássaros que acordam. Não importa qual dia da semana, todos iguais para ela. Amoreira sem  folhas. A chuva pinga dos galhos.
Estatura mediana, feia. Queixo proeminente, olhos apertados. Cabelos tingidos, esforço na cor. Maus tratos explicam oscilações. Ruivo, alourado, depois preto. Curtos. Calças ajustadas, nunca saia rodada, nem pregas. Cachecol, casaco apertado. Ligeira para se deslocar, óculos de sol, mesmo em dia nublado. Mãos bonitas, dedos longos, ociosos. Nesta corrida entre ser, parecer, estar presente, despeja  o olhar… Mede o poder dos oito  andares cinzentos deste edifício. Ambição de calçada gramada. Ideia que faz subir escadas, lances, degraus, ou elevadores panorâmicos.Rosto pálido, desgaste de crueldade astuta. Conquistar é sucumbir. Rebater o possível desprezo. Feia, esguia, de olhos acastanhados de felino esta mulher.
Pessoas se acolhem meio ao desprezo. Por insegurança. Quando vejo a moça atravessar a rua apressada em dias de chuva, ou de sol, em horas impróprias, particulares, sinto descaso, e mal estar. É o jeito apressado. O feio apressado, e lavado? Descaso acidentado das relações. Nada se define no afeto, mas no uso um do outro.

Elizabeth M.B.Mattos – julho de 2014 – Torres

O JOGO

A força divide, estanca insegura. Pondera. Desânimo! Obstáculo. Burilar, ressaltar, descobrir o sentido. Desarmar, e retirar este azedo amanhecer. Facilidade sem esforço. Recolhimento. Dos monges, do sacerdócio, da própria dedicação. Defesa. Silenciamos a consciência, dormitamos sem vigilância, amolecidos pelo vento, pelo frio, pela chuva: janelas abertas, escancaradas venezianas… Os galhos desta árvore, desta ventania se agarram nos batentes, invadem a sala… Lá estou sem reservas… Deixo a natureza entrar. Não competir, apenas ser. Vigiada leveza desta apatia sadia. Há que se vencer. Competição calada. Exercitar a confiança silenciosamente. Sem reagir. O cansaço carrega o excesso. Felicidade descuidada. A chuva entra… Ganhamos o jogo.