Meu querido amigo Iberê:
Perdas, lacunas, dores abertas. Sim. Sinto falta da minha mãe. Amiga, cúmplice, amorosa, belicosa. E foi tão de repente! No meio de asperezas de um casamento possessivo. Não fiquei na cidade. Dia 12 de outubro… Não estava lá. Eu nunca estou… Um jogo de ausências, transparências. Quando te escrevo penso nos vernissages, festejos, aniversários, comemorações. Simplesmente não estou lá. Caço intimidade sem presença.
Quanto ao livro fico feliz. Os escritos me agradam. Tenho recebido rascunhos. O provisório, e o definitivo. Gosto. A minha solidão, meu isolamento se rompe com tuas cartas. Se não estou no mundo, o mundo está ao meu encalço. Um jogo.
Loucura viver, respirar. Acorçoados, assustados, nos imobilizamos. Projetos, construções, planos, trabalho. Afirmação de vida. Como não concordaria? Festejo. De certa forma, meu amigo, a casa é semente. As coisas sonhadas jamais conservam suas dimensões, não se estabilizam em nenhuma dimensão. E, decerto a felicidade é expansiva, tem necessidade de expansão… A casa de Santa Cruz do Sul, o sonho nas pedras, se faz lentamente. Quanto a casa de Nonoai, reafirmas raízes. Estás feliz. Lamento não ser ainda desta vez a visita de vocês. Melhoras para Maria.
“Porto Alegre, 24 – 11 – 86.
Querida Beth. Lamento que tenhas perdido tua mãe. Eu ignorava este transe. Espero que meu carinho te sirva de conforto. Minha amizade te faça companhia. Continuo pintando, pintando e pintando. Acabei mais um quadro de grande formato intitulado Reminiscências. Neste quadro eu me transformo no pescador da Emulsão Scott, com um grande peixe às costas. Quando guri fui obrigado a tomar esse fortificante, o que fazia com repugnância. Acho que toda a minha geração foi lubrificada com esse óleo de bacalhau. Beth, quando vires a Porto Alegre vem ver o que faço. Tá bom? Não cultives a solidão, amiga. É bom que voltes ao trabalho. Dispõe sempre de mim. Do amigo de sempre, o Iberê.
Porto, Alegre, 27 – 8 – 87.
Beth, querida amiga:
No momento, infelizmente, não temos condições de aceitar o teu amável convite. Maria acaba de ser operada de catarata. Ela deve permanecer por algum tempo no mais absoluto repouso. Estou otimista, acho que desta vez a cirurgia vai dar certo, o que não aconteceu quando operou a outra vista.
O livro que pretendo fazer – 10 contos ilustrados com serigrafias – quero que seja um objeto bonito, como todos os livros deveriam ser. Este livro que vai ser patrocinado por uma agência de publicidade lá de Vitória terá uma edição limitada, talvez até numerada, não sei. Tu, evidentemente, vais ter um exemplar.Beth sinto o teu isolamento, a tua solidão, e a falta que faz a tua mãe. Quem sobrevive aos seus carrega sombras e saudade. Coragem Beth é a lei da vida. Nós também estamos construindo uma casa em Nonoai (Teresópolis). Trata-se de uma casa espaçosa, com dois atelies anexos, um de pintura, outro de gravura. Essa chuva que não para, tem atrasado a obra, cujo acabamento está previsto para o fim do ano. É um tanto louco fazer uma casa nesta altura da vida. Sim, é louco, mas é uma afirmação de vida. Concordas? Beth, abraços e muito carinho.
o Iberê”