Fazer coisas é escrever?

Um sábado com feira livre do outro lado da lagoa. Estou com o verde da salada, espinafre, brócolis, feijão. As mãos com aquele cheiro doce das mexericas, bergamotas, tangerinas. Não comprei flores. Tenho os olhos molhados de expectativa… Quero dizer, mas não digo. Escrever pode ser confessar, ou é só conversa de dizer? Acho que a chuva chega hoje. Esquentou. Parece verão nesta primavera, ou ainda é inverno: estações misturadas.

2014-10-28 01.04.59

Não terminei de te escrever, já é domingo. Do sol, o dia se acinzenta, quente. Será que ainda chove?

Sigo lendo o norueguês, não é apenas o texto, tampouco o que ele conta/diz/explica que importa, mas o rastro das leituras. Tão nórdicas! Impossíveis para mim! A mágica prende. Como conseguiu “agarrar” a narrativa, esta autobiografia criança que adolesce, e se joga numa paternidade festiva no meio de amor tempestuoso… Noutro tema, outro livro, não sei se teria me posto nesta agitação. Este último volume, aliás, o quarto (ainda faltam dois, e não li Proust inteiro, e não li Musil, nem Broch)), ele descreve como foi ser professor aos dezoito anos. (E já me encontrei no mote: por que fui ser professora, foi em sala de aula que eu me fiz inteira? Vou escrever sobre isso.)  Aqueles vilarejos, montanhas, fiordes, mar!  E a febre da idade. E eu aqui na beira da minha lagoa, sentindo o cheiro do mar, querendo estar comigo mesma, e neste turbilhão. Os meus fiordes, as minhas montanhas, o meu tédio, a minha solidão, as minhas angustias, onde estão plantadas? Como posso ficar assim tanto tempo exposta ao vento, ao perfume, aos desejos sem conseguir escrever? Sonhos. Passos hesitantes. Não é o autor que importa, mas a narrativa, não é a narrativa, mas a vontade que fico de escrever. Prazer completo, sensual. E o tempo me afoga, mas liberta porque agora posso, tenho todas as horas, o dia inteiro. Se digo qualquer coisa, não importa, apenas escrevo. Vou logo fechando as janelas, desligando os telefones. Interrompo a música, e me concentro no dia. Mas o dia está cheio de ruídos, latidos, vozes, sombras. Como é complicado se isolar! Uma buzina, o alarme daquela casa… A fome, a sede. E logo um certo cansaço pesado. Uma curiosidade idiota guardada naquela caixa. Estou velha! Que chato! E estas questões de quanto mais obrigações mais energia voltam a me impacientar. Lembro do meu quarto no Rio de Janeiro. O chão cheio de livros para serem lidos, e eram lidos. Insônia do prazer. Os chansonniers. Os meus discos. Estudar e ser mãe. Audácia e entusiasmo. As crianças? Sempre estive com os filhos a minha volta. Risadas, brincadeiras, conversas preguiçosas neste mundo silencioso e confortável, cariocando. Reverencio a vida e a sorte. Muito estranho quando o último filho saiu de casa para casar, viajar, ou viver a própria vida. Estar completamente sozinha aconteceu tarde. A primeira caixa materna, a caixa família, outra caixa paterna, outra caixa de dependência, a caixa dos estudos, a caixa da obediência, não esquecer a caixa dos maridos, dos namorados. Das escolas, como professora. A caixa dos amigos, a mais confortável. Desejei sair destas caixas todas para ter a minha própria solidão criativa, de gente grande. Este desejo de eu comigo desde que me entendo como gente, mas só aconteceu agora, tão tarde, mas deve ser cedo…. Não vou contar anos, nem horas, mas me debruçar nos livros possíveis, muitos ao mesmo tempo. Em olhares, no silêncio. E recomeço. Começo e respiro agitada. Medo do tempo, da doença, da morte, e deste cheiro de vida que todos os dias escapa, pode escapar…, mas está aqui nas minhas mãos. Tenho que aproveitar. Elizabeth M. B. Mattos –  agosto de 2016 – Torres

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