A chuva parou. Parece. As árvores imóveis. Talvez aconteça de se sacudirem mais tarde. Talvez chova outra vez muito e bastante. As buganvileas estão lavadas e floridas. Eu me agarrei nas velhas leituras, e na limpeza. Lavo, tiro o pó, lustro. Empilho. E sinto o cheiro do papel que me excita. Os livros me esperam espalhados, prioridade número um, desfazer-me dos que não vou ler, dos que deixaram de ser, dos que … já estão esquecidos. Guardar os amados, os lidos, e os que lerei. Talvez. Espaço.Limpeza. Depois vou eu mesma pintar as pareces. Renovar o estofado dos sofás, e depois vou ficar bem quieta para não gastar. E também vou comer salada, muita salada, e frutas como a Magda me explicou. Pode ser que emagreça… Ou talvez abra um café livraria, e coloque o som do piano na eletrola, ou Jacques Brel cantando. E fico atrás do pequeno balcão para descobrir quantos cafés posso vender numa tarde. A Ana Maria vai trazer pão integral feito por ela, a Joana o maravilhoso bolo de laranja. Pedro prepara os sanduíches, e a Luíza serve as mesas com aquele sorriso largo, e faz as contas.
Das arrumações de armários juntei duas caixas de louças, talheres e sonhos para doações. Agora vou aprender o que é viver com Simone … ler e cantar, mas certamente, vou amar. Tenho paixões inexplicáveis. “…minha vida em seus impulsos, suas depressões, seus sobressaltos, minha vida que tenta dizer-se, e não servir de pretexto a ademanes.”
Vou me molhar outra vez se a chuva não parar nesta quarta-feira de prender o Eduardo Cunha… Trovejou, trovejou. Choveu. E fiquei com os cabelos colados no rosto porque Ônix e eu caminhamos na chuva.
“Mais uma vez, cortarei o mínimo possível. Espanta – me sempre que se reprove um memorialista por se estender; se ele me interessa, irei segui -lo durante volumes; se me aborrece, dez páginas já são demais. a cor de um céu, o gosto de uma fruta, não os sublinho por complacência para comigo mesma; ao contar a vida de outra pessoa, eu anotaria com a mesma abundância, se os conhecesse, aqueles detalhes que se dizem triviais. Não só é por meio deles que sentimos uma época e uma pessoa em carne e osso, mas, por sua não significância, eles são, numa história verídica, a própria marca de verdade; nada indicam além deles próprios, e a única razão de evidenciá -los é o fato de estarem ali: isso basta.”
“[ …] tenho mais prazer em me descobrir do que em me lisonjear, pois meu gosto pela verdade ganha, de longe, das preocupações que tenho com a minha pessoa: esse mesmo gosto explica – se pela minha história, e não me vanglorio.
“Um comunista ou gaulista contariam de outro modo esses anos; e também um operário, um camponês, um coronel, uma Elizabeth Mattos, ou um músico. Mas minhas opiniões, convicções, perspectivas, interesses, compromissos, estão declarados: fazem parte do testemunho que dou a partir deles. Sou objetiva, evidentemente, na medida em que minha objetividade me envolve.”(p.6-7)
A força das Coisas Simone de Beauvoir








