Caderno verde 1999

…no caderno perdido e achado

É verdade que, se examinarmos os fatos com mais cuidado, iremos perguntar – nos se “esquecimento “será a descrição psicológica correta do destino dessas lembranças em nosso arqueólogo. Existe um gênero de esquecimento que se caracteriza pela dificuldade em despertar a memória, mesmo quando há um apelo  externo poderoso, como se alguma resistência interna lutasse contra seu ressurgimento. (p.37)  Sigmund Freud  A Gradiva de Jensen – Editora Imago,1997

Torres, 21 de janeiro de 1999

Nem sempre posso escrever no computador – e – tantas vezes tenho vontade de pensar apenas escrevendo. Contar. Relatar o que acontece e o que, inusitadamente, deixa de ocorrer.

Como mulher tenho pensado que seria muito bom ter um companheiro – um homem ao/do meu lado para dividir o insólito. Mas, na verdade, como pessoa minhas horas estão todas preenchidas por atividades indivisíveis que se sobrepõe ou se amontoam – não consigo fazer tudo o que me proponho. Na maioria das vezes fico como expectadora da minha ansiedade diante da impotência de realizar o mínimo: as aulas, os escritos, a tese, a ordem, as leituras, a correspondência, o telefone. E a casa? Quantas vezes me deliciaria apenas ficar imóvel, quieta e silenciosa.

Os filhos? O Pedro em Torres – e já faz uma semana. Pude sentir e ter toda a alegria neste compartilhar. Trouxe telas, tintas. Joana na Escócia. Luiza dança. E o mar nunca esteve tão transparente, tão lindo! E o verão quente e amarelo!! Não chove.

Trabalho até o dia 24 de janeiro na ULBRA, depois Canoas para a Tese do Doutorado. Telefono para Búzios e descubro que F.H.T. está em Porto Alegre – desde ontem -, e desde ontem eu penso que preciso vê-lo. Estranha conexão. Na verdade, os poderes mentais são maiores, muito maiores, do que se possa imaginar. Ontem …   Na verdade, temos poucas certezas nesta vida quando se pensa amor. Muitas incertezas. Mas somos  tocados com magia. Erotismo chega com o tal amor. Não se toca sem entrega amorosa.

Quase meia noite. Joana, Luiza Ana e Pedro telefonaram. Falei com todos,– em momentos diferentes -, uma palavra uma emoção uma cumplicidade. Passei um telegrama para JAK, – e depois liguei  para saber de Gramado, parte natural de seu caminho. Não do meu. Sinto que somos o desencontro, equívoco, outra história. Pessoas trancas, aferrolhadas … E o que dizem, nada mais é do que (acho eu) um dizer vago, solto. Um jeito impessoal. O transcrever também vago, incerto. Ainda martela na minha cabeça  “teu texto é para ser lido apenas por mim” Como seria o não dizer?! Tenho/sinto medo do fato e, paradoxalmente, é justamente isso que me faz escrever. É tarde, última aula da faculdade, do curso de férias – Letras. Terminei a aula com a leitura do texto da Zero Hora sobre Iberê Camargo. E toda a emoção de um esforço voltou quente para dentro de mim. Fui crítica, –  misturo emoções. A corrida de amor desvia do caminho, meu caminho. O que eu faço? Amo? Adormeço? Sigo quieta, laboriosa . Torres ferve, – mais argentinos, desvalorização da moeda, o real. Então, minha viagem, meu sonho, meu caminho, se misturam com a rua cheia barulhenta que canta em espanhol. E. M. B. Mattos /Torres

More Than This

“[…] porque na música não existe um significado, não existe um sentindo, não existem pessoas, mas apenas atmosferas, cada uma delas com uma característica própria, como se elas fossem caracterizadas simplesmente por ser aquilo que são, cultivadas sem corpo nem personalidade, ou melhor, como uma especie de personalidade desprovida de pessoas, e em cada disco existe um número interminável dessas impressões de um outro mundo, que ressurgem cada vez que um disco é tocado. Eu  nunca descobri o que me preenchia quando ouvia música, apenas eu queria sempre mais daquilo.“(p.63) Karl Ove Knausgard, Uma Temporada no Escuro – Minha Luta 4

aberto indefinido

Estamos no Inferno destes tempos de revelações diárias. Incompreensível descompasso. A ficção não está nem pode dar conta do que acontece tal é a farsa, e os farsantes atuam/ jogam/ e gritam e dançam, e representam no palco, nos corredores, sentados na platéia … E não posso sair, estou cansada/ exausta.

… tudo parece fluir, tudo parece aberto e indefinido, ele precisa voltar e me devolver a tranquilidade, transformar o mundo num lugar nítido e sólido …  Elizabeth M.B. Mattos Torres – setembro de 2017

” Na sala de leitura eu peguei a tradução da Divina Commedia e comecei a ler sem tomar notas, o que fosse importante eu lembraria de qualquer maneira. […] Mas apesar disso eu não estava preparado para a sensação de tempo causada pelas páginas iniciais, para o fato de que aquele não era um texto sobre o século XIV, mas de fato remontava  àquela época, fazia parte daquela época, da qual eu também eu também podia fazer parte  naquele momento.

Deixai fora toda esperança, vós que entrais.

O portão do inferno, na Páscoa de 1300, Dante se perdeu no meio da vida e pretende  salvar -se vendo tudo.

Ele há de ver tudo, para assim salvar -se. […] O inferno não era um estado um estado da alma, a entrada realmente estava lá, em pleno mundo, no fundo de um precipício, rodeado em todos os lados por florestas e terras devastadas.” (p. 281) Karl Ove Knausgard A Descoberta da Escrita – Minha Luta 5 Tradução do norueguês Guilherme da Silva Braga – 1 edição – São Paulo –  Editora Companhia das Letras

 

brilho na louça

o silêncio

Quando se perde alguém a pessoa perde um pedaço do próprio corpo. Quem amamos guardamos dentro …  Presença leve, constante, sanguínea.  A memória traz de volta no tempo, o tempo. E aquele teatro e aquele jogo de estar/ ser com outro se repete na dança de feitiço, de magia. Desdobra-se o gosto o tato no cheiro do cipreste, da lavanda, no silêncio do fogo: você aos poucos esmaece com os pensamentos como espelhos. Eu perco o controle;  percebo -te em mim. Elizabeth M.B. Mattos – Torres, setembro 2017

” Continuei a ler, tendo os pensamentos a respeito dela sempre na sombra da minha consciência, de vez em quando esses pensamentos se revelavam, ela tinha morrido, ela não existia mais, a minha avó, minha avó querida. Eu não a tinha conhecido, mas o que significa conhecer outra pessoa? Eu sabia quem ela era, o que ela representava para mim, e tinha sabido desde a minha infância. E era esse o sentimento que me preenchia naquele instante, a presença repleta de ternura, o olhar dela. Que desespero pensar que havia deixado o mundo para trás apenas porque o corpo não a obedecia mais, porque o corpo negava -lhe o que havia de mais elementar. Eu precisava escrever a respeito disso, precisava escrever a respeito dela. Me levantei, sentei-me em frente à escrivaninha e escrevi o texto.

O SILÊNCIO

Com os olhos longe dos dias você aos poucos esmaece 

Com os pensamentos como espelhos eu perco o controle percebo-te em mim

Noites doces caem em mim. A escuridão adentra meus olhos.  

Quero voar. Quero crer em milagres

Percebo -te em mim. Evito a luz e a sombra. Quem sabe o que você vê. Quem sabe o que pode acontecer. O silêncio, o silêncio cresce depressa. Os dias se perdem, desaparecem sem deixar rastros. Estou sempre acordado, à espera percebo -te em mim percebo – te em mim. ” Karl Ove Knausgard – A Descoberta da Escrita – Minha Luta 5 – (p.274-275)

LINDA NA SOMBRA

Francisco Brennand

 

adquirir

…não sei bem o motivo, mas estou me afastando completamente dos meus objetivos, aliás, não sei mais quais eram estes objetivos, motivos. Nem sei por que estou lendo este livro, não aquele outro.  Tenho uma seleção séria importante em cima da mesa, e não leio. Eu perdi o embalo, o motivo o porquê de fazer algumas coisas que eram ditas prioridades Não estou entendo o que acontece, eu perdi o rumo… tenho certeza absoluta que não sei porque estou neste cruzamento. Não sei falar, não vejo, nem sinto o cheiro. Não tenho vontade. O tempo o que se nominou tempo se faz amanhecer lento, arrastado com meia dúzia de fadas e quatro demônios  que me cercam; acho divertido porque alongam a manhã… Depois, súbito, envelheço, esqueço. E logo o tempo se adiantar na manhã que é imponente (importante porque gosto do amanhecer), e a tarde desaparece no sono que mente, deslavadamente, mente e se esconde dentro de mim. Estou lúcida e amorosa, amargosa. Depois  caminho e não  chego….,não consigo,…fica tudo ali preparado para  um olhar  gesto ou alguma coisa positiva / boa / nova. A tal espera de que aconteça e acontecendo dê sentido ao que nomino dia. Surpreendentemente, não chego, não estou encontrando o caminho, e o dia já é noite. Os livros estão estranhados, desinteressantes, misterioso aberto explícito, raso e inalcançáveis. Cai no vazio a ideia importante. A tempestade levantou as telhas e sinto o vento, sinto uma certa angustia: sumiram as palavras. Desapareceram as referencias.  Todas as leituras se esvaziaram de sentido. Esqueci os bons livros, ou não eram tão bons? Não sei o que vou dizer  ou escrever, nada é relevante. Sinceramente, não sei o que pensar ou explicar; vontade de sentar na beira da calçada e olhar para céu… Será que a lua está lá, ou tem estrelas, ou são passantes. Passantes e nada se parece comigo. Estou exausta, desculpa. Estou exausta por estar trancada, incomunicável. Apenas sonho, e sono. Estou com sono. E não acho importante dizer sim ou não. Eu me perdi num hoje num agora. Eu me perdi. Eu me perdi.  Maio, junho, julho, agosto, depois setembro. Setembro pode ser um bom começo, ainda não é um bom começo, ainda posso lamentar, ser incoerente, e silenciar, pedir perdão. Detestável o que acontece neste prato raso… Nem  arte sem espanto nem palavra. Intolerante. Não se diz  N A D A. Detestável! Instável. NADA. Elizabeth M.B. Mattos – Torres, setembro 2017

“Esta vontade de adquirir conhecimento tinha um certo elemento de pânico, em momentos de revelações repentinas e terríveis eu compreendia que no fundo eu não sabia nada, e que havia pressa, eu não tinha um segundo a perder. Mas era quase impossível conciliar essa velocidade à lentidão exigida pela leitura.” (p.264) Karl Ove Knausgard  in A descoberta da Escrita (Minha Luta 5)

Pierre Bonnard 2.jpg mimosas

Pierre Bonnard

gosto diferente

…tem o absoluto da beleza … tem semente de flor pelo chão … tem o cheiro perfeito do perfeito, mas está tudo fora do lugar!

Vou arrumar, dobrar, limpar vidraças também espelhos. Colher flores do jardim … vou pedalar pela calçada que se pode pedalar caminhar no caminho da minha caminhada, nadar, correr. Preciso chegar depressa para acertar o olhar de poder  logo logo te ver.

curiosa imagem

imaginação

… lavrar preparar arar plantar … O silêncio traz você para perto deste longe!… não compreendo a sombra … quero som, quero tocar … estar onde não estou … quando imagino perto escapa … É você és tu és o que não sei. Você sabe.  O imaginado absorve, desmancha. Será que me escuta? Ou é  imaginação? Imaginação …

bom

Com o passar do tempo não me importo. Importa o tempo ele mesmo, não o passar … ou dobrar/ ou desaparecer.

Emaranhada leitura, escrita travada. Não termina a página nem o livro.

O bom é quando está do outro lado, mas você não está.

O bom agora é esperar você. Elizabeth M.B. Mattos – Torres, setembro 2917 –

bonito

primeiras mulheres

“[…] no espaço exíguo do décimo quinto andar, eu, ilusoriamente, acreditava que estaria livre da súbita tentação de querer. Lamentei, porém, que pelas frestas  da porta, ou pelas ventanas, minha intimidade fosse devassada, franqueada e escancarada pela solidão, que estava em todos os lugares.” (p.26) Galateia, a Musa de Luís Carpim – Primeiras Mulheres –

Claro! Eu me apaixono por palavras…  Simples assim o amor, – palavras. Estou sempre a perseguir palavras. Palavras! E.M.B. Mattos XYZMCLEA de Albertina