trabalhando autobiografia – pedaço de história / março 2004

DESENHO INTERESSANTE RECORTE

Balonismo depois do furacão Catarina que assustou, assombrou Torres. Fui demitida da galeria Garagem de Arte no dia primeiro de abril, e não era uma piada. Engasgada gelada assustada avisei filhos, irmãs, – faço o registro do medo, mas logo pensei: novos tempos novos rumos. De certa forma atordoada assustada, mas livre (havia escravidão peculiar a servir/ter chefe e metas a cumprir) então, estava, desavisadamente, aliviada, e sem rumo. Agora conto a história de ser marchand em mar aberto … sigo o rastro deste recomeçar, ainda outra vez, tantas vezes recomecei. Sair das cores. Da magia, da vida de amigos pintores, colecionadores, artistas. Por algum tempo toquei na luz. “E o tempo também caminha – até que se percebe logo adiante uma linha de sombra avisando – nos que também a região da mocidade deverá ser deixada para trás”.

Voltei para casa, para dentro de mim mesma, desertei da vida porto-alegrense, e me perguntei, e agora? Dar as costas para aquele mundo foi um ritual de passagem. Conheci o paraíso de ser eu mesma depender apenas de mim. E depois, cheguei ao inferno do medo.

“Mas eu não senti receio. Eu estava suficientemente familiarizado com o Arquipélago por aquela época. Paciência extrema e extremo cuidado me levariam através desta região de terras quebradas, de ares tênues e águas mortas até onde eu sentiria enfim meu comando balouçar nas grandes vagas e inclinar-me com o grandioso sopro dos ventos regulares, que dariam a ele a sensação de uma vida mais ampla, mais intensa. A estrada seria longa. Todas as estradas que levam ao que o nosso coração almeja são longas. Mas esta estrada meu olho mental podia ver num mapa, profissionalmente, com todas as suas complicações e dificuldades, mas, ainda assim, bastante simples de certa forma. Ou se é um marujo ou não se é. E eu não tinha dúvidas de que era um deles.” (p.58) J. Conrad Linha de Sombra

Como eu me senti quando cheguei a primeira vez na galeria? Não sei dizer, mas Joseph Conrad soube explicar:

[…] “,eu sabia que, como algumas raras mulheres, este navio era uma daquelas criatura cuja mera existência é suficiente para provocar um prazer desinteressado. Sente-se que é ótimo estar no mundo que ela habita.  […]. Meia hora mais tarde, pondo meus pés em seu convés pela primeira vez, fui possuído pela sensação de profunda satisfação física. Nada poderia igualar a plenitude daquele momento, a integridade fantástica daquela experiência emocional que chegou a mim sem preliminar fadiga e desencantos de uma carreira obscura.”

Eu me desligara da Ulbra (Universidade Luterana do Brasil) com a ideia de me aventurar em Belo Horizonte, pois é, uma vez tive esta enlouquecida e amorosa ideia de ser mineira, e comecei a tecer planos que se desfizeram diante da morte de Sonia Maria (minha amiga mineira, e o tal namorado, um engodo). Foi tão estranho e doloroso! Tudo se enrolou numa rede de fantasia, e de repente, não era mais nada para ser daquele jeito. A morte é definitiva; sinal de limite. Estranho! E minha vida tem estes sinaleiros, anjos, ou faróis a mostrar o caminho…  Não, este lugar não te pertence, nesta ilha não podes descer, este homem não podes ter. Este jardim não é teu. Foi sentimento, encantamento e magia a galeria. Lentamente o amor cobriu o espaço inteiro. Fico hipnotizada pelas esculturas, pelo trabalho. O mesmo sentimento de pertencimento que senti com os alunos do Colégio da Providência no Rio de Janeiro. Um passo e já fazes parte. O encanto da chegada, e depois a demissão. Posso lembrar dos dois dias. Carteira de Trabalho assinada e aquele podes ir emboraHoje, agora. Vais receber o que é preciso/teus direitos. Foi simples assim. E a vida tomou outro rumo. O imprevisto. O gozado e o estranho: eu sabia que alguma coisa tinha mudado, e tinha a tal moça rondando. Não foi surpresa, foi previsível, mas não me impediu de ficar chocada. Sair e dar as costas, ir embora. Ao manejar o veleiro de Conrad e levantar a cabeça, – faço uma leve analogia com o curso da vida em determinado momento (assumir a galeria primeiro, e ser demitida de supetão), é como estar em grande tempestade, mas não se pode desistir, ao contrário, é preciso ficar mais forte, mais destro, mais corajoso. É preciso assumir e agarrar a vida. Eu nunca pediria demissão, não ia fazer isso comigo. Eu já tinha abandonado o meu concurso do magistério no Estado num gesto de rebeldia e prepotência. Eu já tinha sido gentil e tolerante. Eu já tinha usado da humildade. Eu já tinha sido Beth, agora eu era Elizabeth, não contestei naquele momento, contestaria mais tarde, no momento certo. Contenção de despesas foi a boa explicação.

Eu era ainda suficientemente jovem, estava ainda demais deste lado da linha de sombra, para não ficar surpreso, indignado com tais coisas. ”

Eu teria que recomeçar. Retomar. Eu ia começar outra vida, como Isabel ou como Liza. Tinha sido contratada no dia 10 de julho de 2001. Saída efetiva na Carteira foi no dia 5 de abril de 2004.

Havia no ambiente uma estranha tensão que começou a me deixar incomodado. Tentei reagir contra esta vaga sensação. […]

No rosto daquele homem que eu julguei ser muitos anos mais velho que eu, tornei – me consciente daquilo que já havia deixado para trás — minha juventude.  E isso isto era realmente um parco consolo. A juventude é uma coisa maravilhosa, um poder incrível — enquanto não se começa a pensar a respeito. Eu senti que estava começando a ficar consciente de mim mesmo. Quase contra a minha vontade assumi uma melancólica seriedade. ”

Reencontro com Joseph Conrad – A Linha de Sombra: (The Shadow Line) – Uma Confissão. A lembrança deste meu período em Porto Alegre se mistura. A dança com todos os ritmos. Posso ainda fatiar o que me aconteceu. Contar de morar outra vez em Petrópolis, da Praça das Nações, das idas ao cinema, dos pequenos jantares, da visita da Nádia, daquela morada que tinha um encanto especial. Da energia de voltar a andar de ônibus. Do dia que as Torres Gêmeas caíram em Nova York, e pensei ser ficção. Do gosto de ser livre e depender, afinal, apenas de mim mesma. São muitas histórias que cobrem estes anos de voltar a Porto Alegre. Elizabeth M.B. Mattos –  Trabalhando autobiografia –  Porto Alegre – março 2004 Páscoa

Tina Zappoli a responsável pela indicação para a gerência da Garagem de Arte / rua Luciana de Abreu, Porto Alegre. Imagino que hoje seja apenas uma loja que vende sapatos!

A minha relação com a Tina nasce da amizade que tínhamos com Iberê Camargo. Ela era a marchand oficial do artista. Nesta ocasião eu fundava (com ajuda de Iberê pude montar uma exposição em Santa Cruz do Sul com a presença dele) uma galeria de arte na velha Estação Rodoviária de Santa Cruz do Sul, Irene e eu fomos cedidas do Estado para nos ocupar de/com eventos culturais na Capital do Fumo. Com ligações diretas com artistas, levamos exposições importantes. A genial Edy Lima, com  suas As vacas Voadoras foi uma das escritoras que esteve na Feira do Livro direto de São Paulo. Josué Guimarães abrilhantou nosso evento. E não vou citar todos. Moacir Scliar. Acho que tenho guardadas algumas colunas – notícia de jornal, assinadas por mim. Eu sempre rabiscando.

Meu primeiro trabalho foi no Jornal Feminino (do Canal 12 ) de Célia Ribeiro, como apresentadora, mas também ali ganhei um espaço para uma coluna de livros. Éramos uma boa equipe, – eu tinha dezoito anos. Elizabeth M.B.Mattos – maio de 2018

Bonito

Le tendre et dangereux VISAGE de l’ AMOUR

Histoires – POÈME de Jacques Prévert

Le tendre et dangereux

A terna e perigosa

visage de l’ amour

face do amor

m’ est apparu un soir

surgiu / me pegou numa noite

après un trop long jour

depois de um dia bastante longo

C ‘était peut-être un archer

Talvez um arqueiro

ou bien un musicien

ou mesmo um músico

avec sa harpe

com sua harpa

Je ne sais plus

Eu não sei

Je ne sais rien

Eu não sei nada

Tout ce que je sais

Tudo que eu sei

c´est qu’il m ‘a blessé

É que ele me tocou/feriu

peut – être avec une flèche

Talvez com a flecha

peu-être avec une chanson

Talvez com uma canção

Tout ce que je sais

Todo que sei

c’ est qu’ il m’a blessée

É que ele me tocou/feriu

blessée au coeur

ferida no coração

et pour toujours

e para sempre

Brûlante trop brûlante

Queimando queimando

blessure d´amour

ferida de  amor

2 comentários sobre “trabalhando autobiografia – pedaço de história / março 2004

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