Inventado sonho de imaginar. Nas escadas e nos estreito caminhos. Horizonte praiano. Um pouco e tanto de mar. Os passos se alargam rumo ao Mampituba. As pontes e o pó. Horas que caminham, dia inteiro de verão. O Bazar Praiano e o Hotel Farol. Filé com fritas. Os cabritos soltos nos morros. As bolas de golfe perdidas. Onde está o céu? Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 – Torres
Mês: março 2019
distraída outra vez
Felicidade começa ou se aproxima, ou se materializa quando sou / estou distraída. No susto reconheço. No detalhe a diferença. Na cadeira, no pão saído do forno. Cheiro da brisa. Vestido de margaridas, cabelo perfumado. Devagar sem pensar. Surpresa!
Encontrar / estar / tocar o procurado. Incoerente completo absoluto. Apesar de tristeza, apesar de falta. E dos amados ausentes. Do medo. Da solidão absurda. Acertar o sol, o vento, a terra, a fertilidade: abuso de alegria. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 ainda em Torres.

o menos
O menos, o que nunca existiu, foi quem mais me feriu, e, tão completamente que tudo o que veio depois, foi só depois…
Se existem outras vidas, se é mesmo possível ou verdade que seguimos…, De qual vida viemos? Responde, desastradamente, ao que somos… E.M.B.Mattos – fevereiro de 2019
saboneteira na janela
1968
Escorregar e recomeçar, cair e levantar, desesperar e voltar. Perder por dia inteiro, ou foram dois… Alternância imposta. Perdi a saboneteira vermelha, e a esponja. O tempo. Sapatos, escova, blusa laranja, fita azul, a razão. Desordem. Deveria ter gritado, talvez caminhado ou chorado, ou esquecido. Outro sabonete, outra esponja. Não consigo largar, deixar. Procurei dia inteiro. Depois, arrumar gaveta, ligar o rádio, aspirar, tirar o pó, esfregar os vidros. Poeira por todos os lados. E o lugar fora do lugar. Senti aquela vontade danada de desfazer-me disto e daquilo, inutilidade. Lembrança boba. Passado de beijo e de abraço, lembrança esquisita. Quando cheguei. Quando voltei. Surreal este perder… Até o contato. Insistência. O filme que eu queria ver. Deixo para trás o sol e o vento. Que importa? Desespero pela saboneteira. Procurei, entre um andar e outro, ducha e a banheira. Repassei passos e pensamentos. Ufa! Encontrei a saboneteira… No parapeito da janela. Elizabeth M. B. Mattos – março de 2019 – Do meu jeito! Feliz!
Um presente! como gostei! como gostei! Como sempre presente!
riscado marcado e agora triste
Triste o tempo de entender que passou, e nem passou…, afinal estás aí perto tão absolutamente tu, e tão jovem! Não passou. Não passou para mim, nem para nós… Se fecho os olhos dançamos no Juvenil, dançamos na tua casa entre irmãos, dançamos, na minha casa porque é Natal, dançamos na viagem porque trocamos de par tu e eu e ficamos nós. Sentamos no muro e conversamos, namoras a menina que mora em frente, eu me encanto contigo enquanto tímido, te escondes. Nos teus setenta e tantos, nem tantos e nos meus contados setenta e poucos, muitos, nós nos olhos um do outro, sonhamos aqueles sonhos passando em preto e branco, passados. Eu com 16 anos ou 17 anos ou ainda 15 anos pela praia caminhando, pelo mar, pelos sonhos todos de menina a escolher um par. Depois voltamos, tu me levas pela mão, irei onde quiseres, ou me deixarei ficar com minha mão na tua. Responsável atento, guardião. Esta candura e cuidado de irmã amigo, ou de amigo irmão. Não me dás um beijo. Eu te espio, eu tento desajeitada, impossível. Meu cavalheiro guardião, espada e proteção. Eu te espero e a história se estica…, vou contar.
Elizabeth M. B. Mattos – fevereiro de 2019 –Torres
Mudei de jeito, de vida. Filhos me deram a doçura de beijos abraços, risadas e brincadeiras. Areia e mar, caminhadas e brejeirices, música para dançar. Tuas artes para lá, as minhas para cá. Entre o tímido desenho juvenil, tu homem, e pai, eu mulher e mãe, nós seguimos separados. Outra calçada. As visitas terminaram. Nas festas as nossas crianças fazem roda. Trocam presentes. E nos dois olhávamos, paralelos. A cada um sua vida-caixa.
Balanço 1952 – 1919
Estas leituras e estas citações costuram colcha amiga/antiga: livros se acomodam em baixo do meu colchão já escovados, limpos e adormecem. Se esquecem de mim, e eu deles. Tanto para anotar / dizer desta vidinha enterrada. Areia remexida da lagoa sem aguapés. Cansada de não ter certeza. Exausta com o ruído: sem vontade de ir adiante. As pernas doem, desejo de massagem no corpo todo. Sono quieto, não desejado, mas calmante, apaziguado. Cheiro de cera, de limpeza, de beleza a sair pelos vidros. Da lagoa. Feliz! De repente, sem avisar bates na porta do meu quarto, e num olhar de abraço, me dizes: vou te ajudar, te aquieta. E a febre cede devagar, os pés aquecem, o corpo se remexe feliz. Abraço o travesseiro, enfio o nariz no perfume do lençol. E durmo. Nunca mais me deixarás: tua cadeira instalada junto a minha cama, tocas violão. Fechas as janelas. A penumbra, ar pelas frestas. Se eu voltar a cabeça, vejo o sol. Sem fazer força sinto que posso viver mais dois ou três anos, e terei amoras azulando os livros: editados por/com teu cuidado. Apenas para me fazer feliz, tu me fazes o presente. E os filhos chegam com flores, silêncio e alegria, como eu gosto! Elizabeth M. B. Mattos – fevereiro de 2019 – Torres Amanhã vou fazer almoço e a comida. Sempre a mesma, vai animar a festa! Pedro trouxe duas garrafas de vinho. Luiza costurou uma camisola solta que desce até os pés. Joana perfumou meus cabelos, e a Ana Maria segura minhas mãos. Os netos espiam encabulados.
Balanço de Uma Campanha
Outubro, 16 – Continuo arrumando papéis o dossiê da campanha política malogrado, na parte de discurso – para devolver tudo ao nosso ex-candidato. Vejo que na correria, perpetrei, sem pronunciá – los, os seguintes discursos, levemente retocados pelo orador. […]
Outubro, 18 – A vitória de Getúlio Vargas na eleição presidencial incentiva o folclore político que o envolve. As piadas realçam -lhe a simpatia, a esperteza, o carisma. E voltam-se contra os candidatos que o enfrentaram e que foram derrotados por eles. […]. Venceu, é o maior. Mas há também a parte calculada dos que desejam explorar o triunfo por todos os meios, visando tripudiar sobre os vencidos. O folclore getuliano dá às vezes a impressão de ser laboriosamente fabricado e distribuído. ” (p.95)
Janeiro, de 22- Tarde de chuva fina, no centro. Junto à livraria, observo minuciosamente as ruínas do tempo, que me sorriem. Para não sofrer com o espetáculo, preferia fechar os olhos. Eles, porém, inspecionam por conta própria, máquina fotográfica a funcionar independente de mim. Chove no passado, chove na memória. O tempo é o mais cruel dos escultores, e trabalha no barro.” (p.97)
Janeiro, 11 – Nosso bardo deixou hoje a casa de saúde, depois de intervenção cirúrgica com anestesia geral. Revelou espantosa capacidade respiratória, ao contrário do que se receava. E foi para a casa da Estrela Vésper, que o recebeu com carinho.
Março, 28 – Saiu Viola de Bolso, que me rendeu oportunos 2 mil cruzeiros em direitos autorais.
Leituras. Pinço em Vitor Hugo um verso que parece me definir;
“Une immobilité faite d’ inquiétude. ”
E outro, idem, em Mário de Sá – Carneiro:
“Fartam-me até as coisas que não tive. ”
Aprendemos muito com aqueles que jamais souberam de nossa existência.
Maio 16 – Portinari vem conosco de automóvel para casa. Como sempre, ele faz toda a despesa da conversação, sobre pintura. Não leva a sério a Semana de Arte Moderna, e diz:
– Em 1922, Picasso já estava enjoado de modernismo e mergulhava na fase grega. Aí apareceram nos nossos modernistas. Que é que a gente diria se um camarada falasse numa semana de arte moderna realizada em Assunção? No brasil, o cara aplica uma injeção em Uberaba e vira logo Pasteur…
Dezembro, de 31 – Escusa fazer balanço do ano. O tempo é contínuo, e a divisão em meses, convencional. Por que ter esperança no ano próximo e desacreditar o que passou? Eu é que passei, não ele. Fiz 50 anos. Perdi um irmão discreto e simples. Tive ímpetos e descaídas. Não me sinto habilitado a julgar a vida nem a mim mesmo. E seria preciso? Num conjunto colossal como o universo, que importância teria destacar um ano, uma vida, uma pessoa? ” (p.99-100) Carlos Drummond de Andrade O observador no escritório
“1954
Maio, 20 – Pouco pensei em ti, hoje, do muito que gostaria de pensar. Tua lembrança caminhou algum tempo comigo, nas ruas, mas era antes o desejo dela, de uma convivência mais intima, repetida e tranquila com a tua essência, e que mantenho tão abafada sob interesses imediatos. Perdoa – me não de te amar como queria, tanto mais quanto sou eu mesmo que me reduzo e me empobreço com tua falta. […]” (p.105)
C.D. de Andrade O observador no Escritório