éramos amadas

Não sou objetiva, aliás, muito pelo contrário, eu sou confusa. Tarefas simples se multiplicam com detalhes imprevisíveis, desvios. Conviver comigo, pode ser bem simples também porque sou de natureza tranquila, conciliatória, mas até chegar numa estratégia razoável o outro sofre. Concluo que sou mesmo uma pessoa difícil, nada submissa. Ao contrário da propagandeada doçura, sou azeda e endurecida. Explico, explico, mas não consigo ser clara! Céus! Outro detalhe que dificulta / complicada, ou sei lá como se diz: eu sou impulsiva. Acordo cheia de vontades prementes, e programas inusitados. Será o dia de lavar todos os lençóis, ou será o dia de limpar estantes, ou vou cozinhar! Vou me desfazer dos excessos, vou ser razoável, sou ser mais bonita. Vou passear. Vou comprar. Vou e vou e vou um milhão de coisas, e de repente, mudo os planos: leio, leio e escrevo e escrevo. E esqueço. O insucesso das minhas relações se pauta nestas oscilações, eu suponho. Não tomo decisões drásticas, mas meu comportamento sela/define o prazer egoísta. Estou mesmo contornando a história que deveria ser rasa e simples, linear como a regra de contar histórias. Era uma vez uma menina. Cabelos bem escuros, olhos esverdeados, mãos e pés pequenos. Quase magrela. Nasceu numa casa de beleza particular, conforto e movimento. Pai e mãe sociáveis, irmãs especialmente belas. Os grandes acontecimentos são marcados por detalhes curiosos da memória. A boneca com rosto de louça e cabelos de verdade com seu capuz vermelho e seu avental branco com a cesta de frutas e flores para a avozinha. Presente delicado. Também as bailarinas nas caixas de música. E a casa com tantas e tantas pessoas. Hóspedes. Tios e tias que entram e saem. Assim é/foi/era a casa da rua Vitor Hugo. Ou assim é a minha memória. E as lareiras e os nós de pinho, particularidades. As escadas levavam ao quarto estúdio onde estava instalado um pôele (fogão de ferro) que aquecia o quarto e a água para o chá. As descrições se fixam em detalhes: tapetes, sofás, e, poltronas grandes. Cortinas fartas e pesadas. E os alpendres com suas lajotas vermelhas. As venezianas da cada rua Vitor Hugo 229 em Petrópolis. Curiosamente ela ainda está lá, no mesmo lugar. Sem os muros e sem portões, sem os ciprestes altos, sem os cães. E viajo, na minha imaginação, volto aquelas calçadas, dobro as esquinas para chegar ao Petrópolis Tênis Club e me atiro na piscina. Ou entro na casa em frente, imponente com seus dois andares e tanto mistério. Lá, minha amiga tinha um quarto de brinquedos. Banheiro próprio, e um perfume de alegria mais acentuado ainda. Lá nós acendíamos um fogão miniatura de ferro e cromados, com portas de louça: fazíamos comidinhas especiais para as nossas bonecas enfileiradas. E os vestidos se rasgavam, os joelhos se esfolavam e não tínhamos a menor ideia de que tempo existe. Apenas o cheiro dos assados e dos doces nos levavam para o almoço. Este mundo a que nominamos infância coordena tudo o mais… Esquecemos ausências importantes, derramamos lágrimas esfoladas nas brincadeiras, e dormimos ao embalo das histórias que eram lidas e relidas. Afinal! Éramos amadas. Elizabeth M.B. Mattos – agosto de 2021

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