o bule

O BULE

O bule de chá vermelho.

O desejo de consumir me persegue: formato, cor, o bule branco inspirado no Buda. As canecas pequenas: folhas de chá flutuam sobre escultura, reproduções de Buda. Sinto o perfume da erva…

Ontem de tarde sai com a ideia de comprá-lo: examinei, olhei e larguei. Pensei nas xícaras, onde eu beberia o chá depois da infusão? Entrei na loja ao lado… Comprei fronhas, uma vermelha outras brancas. Em casa recostei-me.

Hoje acordei pensando outra vez no bule vermelho. Contabilizei. Não posso comprar pelo simples prazer de olhar… O formato? A cor, ou o desejo de beber chá? Não sei exatamente. Pensei no bule branco com o Buda… Peça exclusiva, tu me disseste, sem te sensibilizar com o meu olhar de cobiça… Olhar aguçado para o interior do objeto. Não apenas cor, formato, utilidade, mas antes de tudo, beleza. A matéria sustenta a forma, como o olhar persegue o belo.

Os bules de chá…

Claustrofóbica, sem acalmar a sensação de peso, aborrecimento que sentia sai outra vez. Não fui buscar o bule, queria ir ao cinema. O filme francês. A sessão já tinha iniciado. Dei meia volta, entrei na livraria. Separei três livros: pensei nas contas, comprei apenas um.

De volta ao quarto. Estiquei as pernas, e comecei a folhear o livro Entre Nós de Philip Roth: conversa de um escritor com seus colegas de trabalho. Iniciei por Mary McCarthy, correspondência. Depois, Conversa em Londres com Edna O’ Brien. Mulheres. Instinto ou magnetismo? Roth inicia descrevendo a rua, o prédio e depois o lugar onde ela vive.

“No escritório há uma escrivaninha, um piano, um sofá, um tapete oriental de um tom cor-de-rosa mais escuro que o papel de parede marmorizado, e pelas janelas à francesa que dão para o jardim vê-se uma quantidade de plátanos suficientes para encher um pequeno bosque”.

Volto a visualizar o bule de chá vermelho. Mentalmente o coloquei sob uma mesa imaginária naquela sala. Na descrição Roth ainda cita a famosa foto de Virgínia Woolf. O volume de obras completas de J.M. Synge aberto no capítulo de The Aran Islandme. Menciona um volume da correspondência de Flaubert aberto numa carta para George Sand. Em seguida cita uma epígrafe escolhida pela autora:

“Antes de mais nada, quero dizer que não perdoo ninguém. Desejo a todos uma vida atroz nos fogos do gélido inferno e nas gerações execráveis que hão de vir”. Malone Morre, livro de Samuel Beckett que li neste verão em Torres… Diz ele que não encontra esta aspereza na sua obra. O’Brien justifica e explica.

“Quando tenho uma explosão, depois me sinto na obrigação de ser conciliadora. Isso tem acontecido ao longo de toda a minha vida. Não sou uma pessoa naturalmente dada ao ódio implacável, como também não sou uma pessoa naturalmente dada ao amor incondicional, e em consequência disso muitas vezes entro em choque comigo mesma e com os outros!”

Logo a seguir.

“Eu reclamo da solidão, mas ela me é tão cara quanto a ideia de me unir a um homem. Já disse muitas vezes que gostaria de dividir a minha vida em períodos alternados de penitência, gandaia e trabalho, mas como você certamente compreende isso não funcionaria muito bem num casamento convencional.”

Senti o prazer da leitura…

De forma direta a escritora irlandesa reforça sentimentos que eu conheço.

Somos todos tão iguais! Ou nos buscamos a cada nova leitura?

Esqueci por um momento o bule de chá vermelho.

Estou no escritório de Edna O’ Brien em Londres, escutando a conversa.

Volto a te escrever amanhã.

Elizabeth M. B. Mattos – 2012 – Porto Alegre

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