DESENCONTRO

Abro a última gaveta daquela cômoda grande da sala de jantar, agora no canto direito. Ali estão cartas, fichas, rascunhos. Passados tantos anos sem te escrever, retomo nossa conversa. Transcrevo parágrafos de um livro! Reconheço nesta leitura o sentimento de perda; a inexperiência…  No caso deles, como no  nosso, não houve o romance, mas  reconhecimento da paixão, e  posteriormente amizade.

“Rodin era baixo, troncudo, vigoroso, com o cabelo aparado curto, e umas barbas patriarcais.  Mostrou-me as suas obras com a simplicidade dos grandes homens. Por vezes, murmurava um nome diante das suas estatuas, mas percebia-se que esse nome, qualquer que fosse, não tinha a menor importância para ele. Depois, corria a mão pelas formas da sua criação, como que a afagá-las. Vinha-me a impressão de que sob estas carícias, o mármore se amolecia, igual ao chumbo derretido. Finalmente, pegou num bocado de argila dúctil, e passou a afeiçoá-la entre as palmas musculosas. Enquanto isto resfolegava com força. Todo ele era uma forja em trabalho, crepitando fogo. Num instante tinha moldado um seio de mulher, que lhe palpitava entre os dedos.Tomou-me pela mão, chamou um fiacre e fomos até o meu atelier. Vesti rapidamente a túnica e dancei para ele um idílio de Theocrito, que André Beaunier havia traduzido especialmente para mim:

Pan aimait la nymphe Echo,

Echo aimait Satyre, etc.”

A seguir parei para explicar-lhe minhas novas teorias sobre a dança, mas não foi difícil certificar-me que ele não dava nenhuma atenção às minhas palavras. Sob as pálpebras caídas, fixava-me com olhar brilhante. Depois, com aquela mesma expressão fisionômica que adquiria diante de seus trabalhos, aproximou-se de mim. Passou-me a mão pelo pescoço, pelo peito, acariciou-me os braços, correu-me os dedos pelos quadris, pelas pernas nuas, pelos pés também nus. Pôs-se a modelar-me o corpo, como se estivesse diante de um barro mole. Enquanto isso se desprendia dele um bafo ardente, que me queimava, enlanguescia… Por todo o desejo gostaria de abandonar-me entre os seus braços, e o teria feito, se não fosse a absurda educação por mim recebida, e que me levou a recuar num gesto de pavor. Então, sem mais pensar, enfiei, às pressas, o meu vestido, mesmo por cima da túnica, e conduzi-o precipitadamente até a porta. Que pena! Quantas vezes não lamentei, depois, aquela incompreensão pueril que me privara de oferecer a virgindade ao grande deus Pan, ao poderoso Rodin!”[1]

Escolhas erradas, ou atropelos do amor? A insegurança não nos permite sonhar com estrelas, mas com margaridas no campo. A beleza complicada, simplicidade. Somos ceifados. O encontro de Isadora com Rodin ferve, mas não transborda…

Lamento o que já não posso desfazer. Penso no que poderia ter sido diferente entre nós dois…O poema inspirou Drummond: eco e  ressonância. Pan aimait la nymphe Echo,  Echo aimait Satyre, etc. Curiosa conversa entre homens de diferentes tempos.Tu não és Rodin, não sou Isadora, mas também lamento minha incompreensão…

“Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que ão amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa foi para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes que não tinha entrado na  história.”

Carlos Drummond de Andrade

Desencontro. Conheci um alguém, uma pessoa diferente ou igual, a mesma…, pois é. Outra história se fez na imaginação, por escrito. Depois voltei. Aquietei. Penso: por que tanto desencontro a cada encontro? Nenhuma voz faz eco. Olhos boca pensamento se fecham. Apenas aquelas, aquelas mesmas fantasias. Abençoado mar de Torres, na nossa memória a história.  Estamos debruçados nas sacadas. Caminhamos na areia. Nossas, nossas ondas. Elizabeth M.B. Mattos – novembro de 2018


[1] Ducan,Isadora -Minha Vida – Ed.Livraria José Olympio, Rio de janeiro,1938, p.104/105.

3 comentários sobre “DESENCONTRO

  1. Beth, achei humano, lindo e sensual ,
    como nos mais profundos sonhos que habitam no nosso interior, assim que senti este teu belo e querido texto.

  2. Não me acostes deste jeito/começo a não pensar direito/sinto a força desse efeito/quando perto do
    teu peito(refrão)
    E lá se vai meu coração/e eu mais perto do teu leito/se me acostas deste jeito, sim/acho que não
    é direito,não/
    É o poder desse feitiço o que digo ao meu coração/e que não sei nada disso/
    Quando me acostas deste jeito/lá se vai meu compromisso/desatada esta paixão/
    E contigo eu me deito/ sambinha composto em Wayne, Pennsylvania no 25 de Outubro,2018.
    (Áudio em breve).

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s