Ao subir os degraus já me despeço do embaraço que eles me causam.
Duas janelas iluminam o ambiente. Pela maior vejo o telhado das casas, e na rua paralela, jacarandás. O azul das cachopas sombreia minha cama encostada na parede. No lado oposto, o armário pintado de rosa-claro tem oito portas. A salamandra[1], uma poltrona em tecido enxadrezado. Mesa retangular embaixo da outra janela, duas cadeiras. Sobre a forração, um tapete grosso de lã com flores vermelhas. A pequena Remington. Livros pelo chão. É preciso escrever, contar do tio de sorriso manso. Voz suave. Olhos escuros presos no meu corpo. De como segurou minhas mãos. Inclinou a cabeça para escutar, e consolar. Então ele pediu para ver as pernas. Levantei a saia. Depois, esticou os braços O delicado abraço me reconfortou. Escutei que sou bonita, e que, certamente, serei moça talentosa. Silencio. E recomecei a leitura do conto de Maupassant. Os cães que gritavam ao serem jogados num poço, vivos. Arredores de Paris. O realismo impressiona. Ao ler em voz alta ainda escuto os grunhidos dos animais feridos, e famintos.
Quando ele desceu as escadas, pediu desculpas por ter me tocado. Não compreendi. Agora entendo…
Histórias confusas de conivência. Tantos anos passados! A voz estridente voa na memória, e o riso fácil me assusta. A vaidade encobre vícios. Amigo da casa sobe as escadas para conversar, ler escritos da jovem, e apalpa seu corpo. A tia puxa orelha, belisca. Alguém descobriu o sinal que tinha na virilha. Lembranças de criança sacudidas. Este homem das escadas já deve pintar os cabelos, usar colete para não ter barriga. Ou talvez esteja apenas velho, perfumado, engomado. Certamente, nunca permitiu que a filha ficasse na calçada desacompanhada, ou comprasse balas no armazém. A mulher é triste, bela, e casta. Aos amigos reserva risada fácil, mas gestos contidos. Homem sério que se acredita exemplo.
Na memória, o quarto de menina. Revistas espalhadas pelo chão. Os livros que precisavam ser lidos. E a mão apalpando seus peitos.
Não é a mãe, o filho ou o tio, que nos aborrece, mas nós que nos aborrecemos com eles. Gestos familiares, heroínas, vilões. Nem somos originais… Solidão, impossibilidade de explicar, mal-estar. E gritamos por qualquer coisa. É preciso exorcizar. Reagir, não apenas projetar o desagrado no que está próximo, neste momento.
E fazemos desagravos, nós nos contamos histórias para justificar gulodice, preguiça, desacerto. Não sou eu o desastre, mas a manobra do amigo, do filho, da irmã, da vizinha que faz a vida ser como é. Triste. Então, qualquer Maria, ou Isabel, Francisco ou Antônio, transformam-se em pivôs de estranhas insatisfações. A memória lamenta ou reforça justificativas. A tia malvada, avó algoz, irmã amada, pai compreensivo, mãe ausente. Às vezes procuramos nos encaixar na boa história. No cheiro quente do afeto. Outras, mergulhamos nestas estranhas e danosas visões… Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2012 – texto escrito anteriormente, ainda na Vitor Hugo, em Petrópolis – Porto Alegre – revisitado…
[1] Espécie de estufa móvel, usada para aquecimento de ambientes domésticos: aquela era toda de ferro e ficava em cima de um quadrado de lajotas vermelhas. Em tacho de cobre, a lenha cortada, adequada para manter o braseiro.
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